ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Considerações finais

Lúcia Lemos Dias, 2011

Com base na pesquisa bibliográfica realizada e nas práticas de Segurança Pública analisadas neste estudo, parece evidente que há, tanto na Universidade como no interior das instituições de segurança pública, uma lacuna teórica quando se pretende uma análise desta política na perspectiva de política social. Como mostra Sapori (2007), há quem não a considere sequer uma política pública, alegando o fato da política de segurança levada a efeito no Brasil ser assistemática, ou seja, não apresentar o desenho completo e racional que deveria alicerçar uma verdadeira política pública, segundo o pensamento weberiano.

O distanciamento da segurança pública das discussões teóricas que permeiam as demais políticas públicas pode ser atribuído a diversos fatores. Dentre esses, cabe destacar as leituras restritas que se prendem em aspectos puramente técnicos da atuação dos órgãos encarregados dessa política, provavelmente sem considerar que, essa precária prática social constitui-se num instrumento político apresentado pelos governos como resposta ao grave problema social da insegurança pública. Este por sua vez, vem se constituído numa questão social que afeta, ainda que seja de forma diferenciada, a sociedade como um todo, ao mesmo tempo em que tem se revelado como grande desafio ao Estado Democrático de Direito.

Ademais, observe-se que dentre os diversos fatores que tendem a impulsionar o agravamento desse problema, sobretudo, nos centros urbanos brasileiros, como sugere Julio Jacobo Waiselfisz (2010), além da desvalorização da vida do outro, uma vez que qualquer conflito interpessoal a tendência é ser levado até as últimas conseqüências, deve ser considerado que a concentração de renda, também perpassa as explicações do crescimento da violência e da criminalidade. Alerta o mencionado autor, que estudos têm indicado que os estados brasileiros mais violentos são exatamente os que apresentam grandes contrastes entre riqueza e pobreza (WAISELFISZ, 2010).

O fato, portanto, dos indicadores sociais apresentarem resultados favoráveis com vistas à melhoria das condições de vida de milhares de brasileiros, nesses últimos anos, a partir do governo Luis Inácio Lula da Silva, não significa dizer que o problema da concentração de renda e, igualmente, o quadro gritante das desigualdades sociais não deixou de ser uma questão de extrema gravidade no Brasil.

Por essas e tantas outras razões, constata-se um grave equívoco não considerar o caráter político, as contradições e interesses socais antagônicos - próprios da dinâmica de sociedades capitalistas - que perpassam a Segurança Pública. O mesmo acontece quando se analisa a forma de ação do Estado com relação ao problema da violência e da criminalidade, através da Segurança Pública, sem ultrapassar a etapa das leituras críticas que convergem para a total negação de sua legitimidade, restringindo-se a noção de oposição clara e radical entre "bem" e "mal" social.

É notório que a negação do caráter de política pública de objetivo eminentemente social à Segurança Pública só favorecerá o grupo hegemônico que, historicamente, sempre imprimiu, sem limites, sua orientação política às ações de segurança, contrariando os interesses sociais das classes dominadas.

Tais leituras, portanto, não são apenas insuficientes, na medida em que negam ou ignoram a possibilidade de condução da Segurança Pública ao status atingido pelas demais políticas públicas, com ampla discussão na sociedade e centros de pesquisa em política, favorecem a manutenção de sua forma antidemocrática. Enquanto isso, adversamente percebe-se mais claramente a importância do papel indispensável da polícia para a garantia dos direitos do cidadão, numa sociedade que se pretenda democrática, reforçando-se a posição defendida, a este respeito, pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares.

De outro lado, parece ter-se perdido de vista que a garantia da segurança, segundo os filósofos da tradição liberal, teria sido a motivação principal para a criação do Estado moderno, mediante o estabelecimento do pacto social. Apesar da relevância da temática segurança para a sociedade não ser de hoje, as discussões teóricas relativas à segurança pública não seguiram o percurso do tempo social, conforme se observa tanto na literatura da tradição liberal, quanto na tradição marxista.

No decorrer da pesquisa, identificou-se a existência de três possíveis modelos paradigmáticos, que podem ser encontrados nas políticas de segurança pública, nos dias atuais, seja através do velho modelo prioritariamente levado a efeito, no Brasil, que de forma concomitante apresenta os dois modelos tradicionais, seja através da nova política de segurança adotada pelo governo federal, que apresenta nova fundamentação teórica.

O modelo que se fundamenta no uso da força/violência tem como origem a leitura d'O Leviatã, de Hobbes. O autor justifica a concentração do poder e o uso da força física pelo soberano, que deve garantir em troca a segurança do indivíduo, através do uso pleno da violência. A esse paradigma associa-se, posteriormente, Max Weber, responsável pela criação da categoria teórica "monopólio legitimo da violência pelo Estado", fortemente difundida na cultura tradicional que permeia a segurança pública.

A versão autoritária desta concepção, que culmina para o recrudescimento da força, se faz representar pela Doutrina da Segurança Nacional, que deu sustentação a ditadura militar, iniciada em 1964, introduzindo na Segurança Pública a idéia de combate contra o inimigo interno, ou seja, a estratégia de força sem limites, para defender o Estado, segundo análise realizada no capitulo I.

Um segundo paradigma vinculado à teoria liberal tradicional, defendida por Locke, tem como referência os direitos civis, ou seja, uma visão restrita de direitos humanos. Considerado como o autor que defende os interesses da burguesia, Locke aparece como pioneiro da defesa do direito ao patrimônio. A defesa do patrimônio privado ganha ênfase no objetivo da política segurança pública, que vai se amoldar com a garantia da segurança do Estado. Assim, o sujeito de direito da segurança converge para os cidadãos possuidores de bens e/ ou o interesse de segurança do próprio Estado.

Esses dois paradigmas tendem a se destacar, um pelo modo de fazer segurança e o outro pelo objetivo priorizado na política de segurança pública, inclinando-se pela garantia do direito ao patrimônio em detrimento do direito a segurança do cidadão. Deste modo, unificam-se, incorporando o autoritarismo político e social, explicitados respectivamente através da concentração de poder, preferencialmente, associado ao uso abusivo da força, de forma discriminatória.

Com base nesses elementos teóricos, vai sendo construída a representação de práticas sociais, em Segurança Pública, que perpassam o não respeito ou pela negação de direitos da maioria da população situada na classe dominada, a qual não dispõe de bens, como também de grupos sociais discriminados culturalmente, tais como: os negros, as mulheres, as crianças e os adolescentes, os idosos, os homossexuais.

Um terceiro modelo encontrado na literatura, sinalizado por diversos autores, citados na introdução deste trabalho, acompanha a correlação de forças que se dá atualmente na sociedade. Esse por sua vez, associa-se aos grupos sociais, que defendem a mudança da segurança pública, a partir da incorporação dos múltiplos sujeitos de direito, de acordo com suas necessidades especificas e gerais, historicamente não contemplados com o direito à segurança.

Esse novo modelo teórico apresenta como fundamento o Estado Democrático de Direito, elegendo como paradigma os direitos humanos, numa perspectiva ampliada, perpassando os direitos civis, políticos, sociais e culturais, de modo a incluir as múltiplas demandas decorrentes da nova configuração do problema da violência e da criminalidade, sem abandonar a perspectiva de monopólio legítimo da força, mas o uso da força deve ocorrer consoante o respeito aos direitos humanos.

Assim sendo, além de preocupar-se com a intervenção preventiva em segurança pública de cunho social, esse modelo teórico defende a ação repressiva qualificada, observando os parâmetros legais. Em outros termos, significa dizer que o novo paradigma não vê o monopólio legítimo da violência como fundamento prioritário, nem exclusivo para a política de segurança pública, além de não considerar que os objetivos possam justificar meios injustos e ilegais de fazer segurança.

Essa nova perspectiva teórica que fundamenta a política de segurança pública, vinculada ao SUSP, vem ganhando força na academia à medida que se constata a incapacidade do velho modelo de segurança, que se apóia no discurso do monopólio da força, associando-se a visão restrita de direitos humanos, para responder aos reclamos da sociedade relacionados à questão da segurança pública.

Veja-se, abaixo, o desenho representativo dos três possíveis modelos (1) teóricos de segurança pública, identificados nas políticas de segurança brasileira analisadas.

Modelos teóricos

Além desses três modelos encontrados, um quarto elemento teórico relevante deve ser considerado na segurança pública em geral, e do Estado da Paraíba em particular. Esse elemento refere-se ao patrimonialismo, teoricamente trabalhado por Raimundo Faoro (2001) e Sérgio Buarque de Holanda (Apud, Marco Mondaini, 2008), dentre outros.

Segundo os dados analisados, o patrimonialismo que se caracteriza pela distorção do caráter público do Estado, representado pelo interesse da coletividade, em detrimento de interesses privados (FAORO, 2001), persiste na cultura política paraibana, atravessando as instituições da política de segurança pública, na medida em que essas instituições aparecem envolvidas com interesses particulares, sobretudo em processos eleitorais, conforme demonstrado no capítulo 4.

Os modelos teóricos aqui analisados demonstram que a decisão de mudar uma política pública, com fortes raízes históricas, que perpassam principalmente aspectos de natureza cultural, deve-se considerar desde o princípio estratégias plausíveis, com vistas à sensibilização e envolvimento da sociedade, de seus gestores e implementadores, em relação ao novo modo de pensar e fazer política pública. Nesse aspecto, deve-se lembrar que a opção política, assim como o objeto, objetivo e sujeito de direito priorizados numa política social não podem ser dissociados do quadro teórico que lhe dá sustentação.

Embora a opção política do governo federal seja o modelo de segurança pública democrático, sustentado pelo paradigma dos direitos humanos numa perspectiva ampliada, constata-se que o fracasso da mudança democratizante da política de segurança na Paraíba, decorre essencialmente do predomínio da cultura tradicional que se apóia exclusivamente nos paradigmas da força e da prioridade à defesa do patrimônio. Decorre daí a necessidade de mudança cultural, significada pelo modo de sentir, pensar e agir dos que fazem a segurança pública no Estado da Paraíba, focada na cultura dos direitos humanos.

Em conseqüência dessas constatações, defende-se por convicção que a Segurança Pública deve ser necessariamente tratada como as demais políticas públicas de cunho social, típicas do Estado Democrático de Direito, assim como deve ser fundamentada teoricamente nos temas Democracia e Direitos Humanos, de forma indissociável e ultrapassando os limites da visão liberal tradicional, contemplando-se aspectos políticos e sócio-econômicos, segundo leituras ampliadas desses dois temas. Se assim não for, diante do papel relevante atribuído à Segurança Pública num Estado Democrático de Direito, com vistas à garantia dos direitos dos cidadãos, conforme estabelecido nos documentos nacionais e internacionais relativos aos Direitos Humanos, certamente será atestada a fragilidade do Estado, quanto à proteção dos direitos dos cidadãos. Enquanto isso, se verifica a sobreposição da ideia de Estado forte, em nome do monopólio legítimo da violência, priorizando-se o uso abusivo da violência e sem atender as necessidades reais de segurança dos cidadãos.

A concepção e a metodologia de promoção dos Direitos Humanos, por sua vez, têm recebido diversas contribuições advindas da discussão teórica e política travada na sociedade sobre a Segurança Pública na perspectiva democrática. Essas contribuiçõesimpulsionam os atores sociais envolvidos a ultrapassar os estreitos limites da concepção liberal tradicional desses direitos. Assim, a prática social e o exercício democrático, dos dias atuais, vão também trazendo respostas às críticas marxistas à versão burguesa dosDireitos Humanos, a exemplo do passado quando se verificou a luta dos trabalhadores pela ampliação dos direitos políticos e pela garantia dos direitos sociais - traduzidos hoje na existência de várias políticas sociais.

A pesquisa empírica aqui apresentada confirma que os aspectos teóricos acima levantados repercutem no processo de mudança da Segurança Pública de várias formas, justificando o foco deste estudo sobre o campo político-cultural articulado com aspectos objetivos que incidem na forma de sentir, pensar e agir acerca da Segurança Pública. Pelos dados colhidos junto aos policiais entrevistados, compreende-se que a introdução da nova política de Segurança Pública, balizada numa concepção de política pública democrática, tende a gerar um choque cultural junto aos profissionais da área, os quais se encontram, ainda, fortemente arraigados a elementos de uma cultura políticaantidemocrática, representada pelo autoritarismo político e social.

Neste sentido, confirma-se a hipótese, norteadora deste estudo, de que a dimensão cultural é preponderante no processo de mudança efetiva da prática da Segurança Pública. Isto significa dizer que a construção de uma política pública democrática jamais poderáser dissociada de uma pedagogia transformadora da forma de sentir, pensar e agir dos governos, dos seus dirigentes e, sobretudo, dos seus implementadores diretos, os policiais. Em outras palavras, confirma-se que a democratização da Segurança Pública no Brasil depende inevitavelmente da mudança da cultura política dos atores institucionais, sobretudo dos policiais, principais protagonistas de sua aplicação na prática, e daqueles que detém o poder de decidir sobre o desenho dessa política.

Demonstrou-se nas declarações dos policiais entrevistados que a resistência à mudança da política de Segurança Pública não decorre apenas dos policiais de forma isolada; essa resistência parece ser originária da própria instituição policial que ignorou a existência de uma nova política, quando não se preocupou em repassá-la aos seus profissionais. Esse distanciamento institucional da nova política pode levar ao entendimento de que essa política de Segurança Pública representa uma ameaça ao status quo daqueles que compõem o grupo hegemônico da Polícia Militar.

Cabe destacar que a análise da cultura que perpassa o desenho da política de Segurança Pública, assim como as suas instituições e o modo de sentir, pensar e agir de seus profissionais, não deve ser concebida de forma dissociada do contexto sócio­econômico e político no qual a política, as instituições, os governantes e os policiais encontram-se situados. Assim, indica-se que o velho modelo de Segurança Pública, inspirado meramente na força e na garantia do direito da propriedade, historicamente caracterizada como negação de direitos da grande maioria da população, ainda pode encontrar forte eco na sociedade.

Constatar o que se acaba de afirmar, significa dizer que a manutenção da cultura antidemocrática na política de Segurança Pública tem correspondência com interesses de grupos sociais, que se vinculam às classes dominantes. Ou seja, o velho modelo de Segurança Pública constitui-se num instrumento político extremamente favorável a ordem social vigente, enquanto a nova política se apresenta em contraposição a essa prática. Esta, por sua vez, balizada em princípios democráticos, tem como objetivo primordial a garantia e o respeito aos Direitos Humanos, significando, portanto, de certo modo, o rompimento com essa história de instrumento de poder violento a serviço das classes dominantes.

Se a velha política de segurança não encontrasse eco na sociedade, certamente haveria preocupação em transformá-la, por parte dos representantes políticos que chegam ao governo paraibano, seja com objetivo de garantir a sua eleição ou mesmo tendo em vista a necessidade de legitimação de seus governos. Mesmo com toda precariedade demonstrada pela Segurança Pública, na Paraíba, até hoje ela não chegou a constituir em objeto de disputa de política. Isso faz crer que o velho modelo de segurança não ameaça a legitimidade dos governos, ao contrário, conforme dados levantados, este modelo tem correspondência aos interesses privados de candidatos aos cargos de governo, que chegam a apoiar-se na instituição policial para garantir seus interesses político-eleitorais.

Acrescentem-se, ainda, os desafios políticos decorrentes da ausência de maior engajamento de parlamentares com o processo de democratização da segurança pública, considerando-se que, até a presente data, não foi formalizado o Sistema Único de Segurança Pública, incluso no Projeto Lei, criado pelo governo federal, em 20007. O referido Projeto de Lei "Disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, nos termos do § 7º do art. 144 da Constituição institui o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP e dispõe sobre a segurança cidadã e dá outras providências".

Outro entrave ao processo de democratização da Segurança Pública, identificado pela pesquisa, é a permanência da doutrina militar, sobretudo nas Polícias Militares, constitucionalmente vinculadas às Forças Armadas. Essa influência reveste-se de grande peso histórico, já que não teve como marco fundador o recente período de ditadura militar iniciado em 1964. Os dados históricos levantados revelam que a militarização da Segurança Pública é resultado de um processo cuja origem se pode reconhecer em fatos concretos que atravessaram a história da sociedade brasileira desde a Primeira República (1889 -1930), como os apontados por Aliomar Baleeiro (1999), nos quais foi registrada a intervenção do Exército Brasileiro no cenário social, assumindo o papel de relevante protagonista na política do país.

Note-se que, desde a primeira Constituição brasileira, os assuntos relativos à segurança sempre foram incluídos na seção dedicada à Defesa Nacional, o que indica uma longa história de não distinção entre a garantia do direito do cidadão à segurança e a segurança do Estado, embora, em termos formais, a vinculação da polícia estadual às Forças Armadas date apenas da Constituição Federal brasileira de 1946.

A ditadura militar instalada no país em 1964, entretanto, foi responsável pelo recrudescimento da noção de segurança como força/violência, ao apoiar-se na Doutrina de Segurança Nacional, consolidando a ideia de Segurança Pública como combate ao "inimigo interno" e contribuindo para a banalização da ação violenta na Segurança Pública como prática social isenta de preceitos legais.

Conforme depoimentos levantados na pesquisa empírica, ainda hoje persiste na cultura policial a ideia de sociedade, enquanto inimiga do Estado, assim como parte-se do pressuposto de que a grande maioria da população se apresenta como suspeita da prática do crime, se constituindo em alvo da ação policial, até que se prove o contrário.

Ao introduzir a Doutrina de Segurança Nacional como referência para o pensar e o fazer a política de Segurança Pública, a ditadura militar reforçou significativamente, nos órgãos de segurança, a noção de poder e força típica dos Estados de regimes autoritários, de tal modo que, mais de vinte anos após o fim da ditadura militar e a reinstauração do regime democrático, constata-se ainda a supremacia da cultura de poder e força frente à cultura dos Direitos Humanos. Não se pode conceber que um quadro teórico que dá sustentação a um Estado autoritário, dizendo-se em situação de guerra, cuja preocupação principal se focaliza na eliminação do inimigo, seja adequado para uma política pública que se inspire e objetive a garantia de Direitos Humanos. Mais grave ainda, quando esse quadro teórico, que encontra forte eco no discurso do monopólio da violência, tem como base político-social uma sociedade na qual persistem valores antidemocráticos sustentado pelo autoritarismo social, consoante entendimento de Evelina Dagnino (2004) e nos termos de Marilena Chauí (2007).

Esses são, certamente, grandes desafios a serem superados para que o processo de democratização da Segurança Pública deixe de ser um fracasso. Um modelo tradicional de segurança, assim arraigado nas instituições policiais, faz com que estas resistam orgânica e politicamente a tudo o que lhes parece ameaçar o poder que concentram. Confere-se, portanto, cada vez mais um papel fundamental à Sociedade Civil, principalmente àqueles órgãos que atuam na área dos Direitos Humanos, para a mudança de uma política pública, desde que estejam conscientes de que essa mudança passa essencialmente pela mudança cultural aliada ao poder de pressão dos grupos sociais, capazes de alterar a correlação de forças que impede o avanço em direção a uma política de Segurança Pública democrática.

Como sugerem o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2002b) e o Professor Gregório Peces-Barba Martinez (1999), a formalização do Estado Democrático de Direito, ou seja, o reconhecimento formal dos Direitos Humanos, por si só, não resolverá as necessidades concretas da sociedade. Regras formais democraticamente definidas certamente são indispensáveis para a construção de uma política pública democrática, sobretudo a da Segurança Pública que se mantém em simbiose com o regime de governo e que deve ser, obrigatoriamente, articulada com a organização político-jurídica. Mas não pode ser dispensada a compreensão da Segurança Pública situada na relação Estado e sociedade, espaço-tempo da cidadania (SANTOS, 1999), encarada e discutida como política pública, contribuindo com novos elementos significativos para o processo de construção de uma política democrática, que convirjam para a participação popular e o controle social dessa política, ou, em outros termos, para uma democracia participativa (SANTOS, 2002b) e/ou uma cidadania ativa (BENEVIDES, 2003).

Sem o exercício democrático, manifestado pelo poder de pressão das forças sociais, e sem o devido monitoramento da Sociedade Civil, dificilmente a Segurança Pública atravessará o "ritual de passagem" (2) de uma política autoritária para uma política pública democrática. Isto posto, defende-se que o tema Democracia associado aos Direitos Humanos passe a ser visto tanto como meio quanto como fim do processo de mudança dessa política, que sempre se apresentou como instrumento político a favor de grupos sociais vinculados ao poder econômico e político.

O conhecimento mais interessante e talvez inovador das questões relativas à mudança da Segurança Pública, produzido por esta pesquisa, deveu-se sem dúvida ao estudo empírico focado na Paraíba, a partir do Plano Estadual de Segurança Pública (2003 - 2007) e das tentativas de aplicação concreta de suas propostas. O Plano representaria a intenção do governo do Estado em colaborar com o "pacto nacional pela democratização da Segurança Pública" e traduz essa opção, sobretudo ao priorizar o Policiamento Comunitário. A pesquisa sobre a prática real, cujo principal instrumento foi a coleta de depoimentos dos próprios policiais, revelou, entretanto, que a prevenção em Segurança Pública, considerada como uma das melhores possibilidades de democratização da segurança, não consegue instituir-se como política de governo nem tampouco como política pública estatal. Mesmo com os incentivos financeiros do Governo Federal para a implementação do Policiamento Comunitário, ficou claro que não tem havido real interesse dos poderes estaduais em institucionalizar essa prática.

Ainda que alguns entrevistados reprovem expressamente o velho modelo de Segurança Pública, em razão de sua ineficiência e ineficácia como resposta ao problema da violência e da criminalidade, e que os policiais militares das patentes inferiores, principalmente, também manifestem explicitamente seu descontentamento pela permanência da ideologia militar na Segurança Pública, não se pode daí deduzir que haja uma grande receptividade ao tema dos Direitos Humanos, princípio norteador da nova política de Segurança Pública.

No caso estudado, encontram-se indicações de que a resistência à prevenção em segurança, mais precisamente ao Policiamento Comunitário, deve-se também à sua característica democratizante, percebida como redução do poder do Estado e de seus agentes. De fato, essa prática social põe limites ao exercício do poder público, na medida em que exige a participação da sociedade em todo o seu processo, desde o diagnóstico, passando pela definição de prioridades, pelo encaminhamento das possíveis saídas para os problemas, até o monitoramento e controle social da prática dos funcionários, sem o que não pode manter-se nem alcançar algum sucesso e reconhecimento social, segundo o que a pesquisa verificou.

Apesar da precariedade das experiências concretas analisadas, constatou-se que o Policiamento Comunitário pode vir a ser um instrumento favorável à superação do discurso tradicional de Segurança Pública como garantia de ordem pública numa perspectiva autoritária, substituindo-o por uma linguagem socialmente construída, que incorpore os Direitos Humanos e uma concepção democrática de ordem pública, sem ignorar as desigualdades e os antagonismos sociais que permeiam a sociedade capitalista brasileira.

Com efeito, confirmando-se a hipótese de que os maiores entraves para a democratização da política de Segurança Pública e para sua efetivação como política de Estado situam-se no âmbito da cultura, mas perpassando também aspectos socioeconômicos, a análise permitiu a indicação de saídas que apontam para direções distintas, seja da parte do poder instituído, seja do lado da sociedade.

Da parte do poder instituído as saídas apresentam-se em dois sentidos. Diante dos entraves identificados a partir do poder estadual, entende-se que caberia ao governo federal, que reconhece a necessidade de mudança da política de Segurança Pública em nível nacional (3), através de novo desenho de política, a exemplo do Sistema Único de Segurança Pública, - o qual representa um choque cultural para os grupos oligárquicos que se revezam no poder do Estado, como ocorre na Paraíba -, pensar estratégias políticas de difusão da nova política de segurança, numa perspectiva político-pedagógica a serem implementadas junto a sociedade civil, seja com apoio das igrejas, universidades, dentre outros órgãos. Percebe-se, também, como falha do governo federal não criar estratégias de difusão da nova política, junto às instituições policiais, de modo que possam ser vencidos entraves em nível das instituições.

Conscientizado de sua responsabilidade diante do grave problema social, relacionado à violência e à criminalidade, assim como da necessidade de mudança da Segurança Pública, uma das saídas recomendáveis ao governo estadual seria o fortalecimento das práticas de cunho político-pedagógico dirigidas aos policiais militares, sobretudo aos de patentes inferiores, que se encontram na base e confrontam-se concreta e cotidianamente com os reais problemas da Segurança Pública. Tal saída depende da criação de espaços/tempos educativos e democráticos, que permitam o confronto e a autocrítica das distintas formas de pensar, sentir e fazer Segurança Pública, de modo que novos formatos dessa prática social sejam percebidos como possibilidades, desejados e desenvolvidos.

Do lado da sociedade, coloca-se como sugestão a ampliação do debate teórico e político sobre a democratização da Segurança Pública e seu vínculo com uma visão ampliada dos Direitos Humanos, visto como caminho indispensável para a construção de uma nova visão e uma nova prática de Segurança Pública, coerentes com o Estado Democrático de Direito. Por conseguinte, quebrados os preconceitos e as resistências, superados os desentendimento sobre a Segurança Pública, caberá à sociedade organizar-se, construir propostas consensuais e pressionar os poderes instituídos para uma efetiva mudança dessa política, a serviço da democracia e como resposta adequada ao complexo problema da violência e da criminalidade que tem se difundido na sociedade.

De acordo com a declaração de policiais entrevistados, ficou sinalizada a importância do papel das Universidades no processo de democratização da Segurança Pública, cuja contribuição deve ir além da fomentação da pesquisa, do estudo e do debate teórico, principalmente quando se trata da necessidade concreta de criar espaços e condições propícias para o debate político entre sociedade civil e instituições policiais. Nesse aspecto, coloca-se como indispensável o fortalecimento da articulação do trinômio ensino-pesquisa e extensão em Segurança Pública, nas universidades, com vistas ao atendimento das demandas social e institucional emergentes, nessa área.

Neste aspecto, merece destaque, a criação da RENAESP - Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública, em 2005, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. A referida rede focada na promoção de cursos de pós-graduação lato sensu, nas Universidades brasileiras, em segurança pública e temas afins, constitui-se na tentativa de sensibilizar as Universidades para a importância de seu papel na construção de uma nova política de segurança. No entanto, devem ser levados em consideração os entraves enfrentados nas Universidades no processo de execução dos citados cursos. A sua introdução, no caso específico da UFPB, tem sido marcada por dificuldades as mais diversas, seja diante das barreiras de caráter administrativo-normativo, político-financeiro, seja diante da falta de disponibilidade de recursos humanos. As tentativas de solucionar essas barreiras têm demonstrado que iniciativas dessa natureza demandam a sensibilização, mobilização, articulação e responsabilização dos diversos Ministérios e demais gestores públicos que possam estar envolvidos, de modo que as propostas de ação cheguem aos órgãos executores, como política institucional, e não como prática voluntarista de determinado profissional disposto a enfrentar os inúmeros desafios.

Certamente este trabalho acadêmico deixou sem respostas satisfatórias ou mesmo sem nenhuma resposta diversas questões com que se deparou ao longo da pesquisa. Resta, portanto, a sugestão de alguns problemas que exigiriam análises mais extensas e aprofundadas. Destaca-se entre eles a configuração concreta de uma política de Segurança Pública com natureza de política social, segundo a convicção de que é impossível dissociar problema da violência e da criminalidade da questão social. Por outro lado, não pode ser negligenciada a realização de estudos sobre a difusão da cultura da violência na sociedade, sobretudo levando-se em consideração a influência dos valores que conformam as sociedades capitalistas, a exemplo do consumismo desenfreado e o individualismo exacerbado.

Diante do reconhecimento da relevância do papel da cidadania democrática no processo de construção e implementação de nova política pública de segurança, outra temática importante a ser estudada diz respeito à participação popular e Segurança Pública. Avaliação realizada em agosto último, por exemplo, na Paraíba, sobre a I Conferência Nacional de Segurança Pública, indicou que os problemas constatados no processo de organização dessa Conferência, assim como a sua estruturação considerada pouco democrática e o poder de pressão social alcançado, seriam decorrentes da debilidade apresentada ainda pela sociedade civil, em relação ao complexo problema da violência e da criminalidade.

Considerando-se que a concepção democrática dos Direitos Humanos é o fundamento mais essencial das propostas de mudança para uma nova visão e nova prática de Segurança Pública, é indispensável que se investigue a fundo as condições necessárias para sua aceitação tanto pelos agentes do poder público quanto pela sociedade em geral.

Por fim, coloca-se como sugestão de estudo a temática que envolve o federalismo, o Estado brasileiro e a Segurança Pública. Um dos aspectos que chamou a atenção, nesse estudo, refere-se aos limites à reforma da Segurança Pública impostos pela ambigüidade resultante da relação jurídica entre poder público estadual e poder público federal e suas respectivas jurisdições. Nessa problemática estão envolvidos não só aspectos de cunho político-partidário e diferenças de cultura política, mas também a questão dos recursos financeiros destinados à política de Segurança Pública. A ideia de criação do Fundo Nacional de Segurança Pública continua a ser considerada relevante, em face das dificuldades apresentadas pelos governos dos Estados para o custeio das despesas nessa área. Entretanto, esta pesquisa revelou que esse mecanismo tem funcionado muito mais como instrumento político-financeiro de barganha entre os governos do que para a viabilização da Segurança Pública democrática nos Estados. Constatou-se, de fato, a não aplicabilidade do montante de recursos do Fundo anunciado pelo Governo Federal para ser gasto a cada ano, faltando esclarecer-se se esse fato decorre do não cumprimento, pelos governos estaduais, dos critérios estabelecidos para a participação no programa ou decorre de falta de empenho do Governo Federal. Nesse aspecto, dada a relevância social da política de Segurança Pública, há que indagar-se se não se deveria definir constitucionalmente um percentual mínimo do orçamento público a ser obrigatoriamente aplicado pelos governos nessa política pública, do mesmo modo que a Constituição Federal brasileira já estabelece um percentual mínimo do orçamento público a ser gasto pelos governos com a educação e a saúde.

Mesmo atribuindo-se, neste estudo, ao Policiamento Comunitário a capacidade de avançar para a democratização da Segurança Pública, e tendo-se constatado a grande aceitação dessa nova filosofia de ação policial pela sociedade, conclui-se que este deve ser encarado como urgente tema de pesquisa. Indispensável se faz que se adquiram elementos teóricos, político-pedagógicos suficientes para orientar a formação dos policiais e da população. Não deve, portanto, ser perdido de vista que o sucesso dessa prática social depende essencialmente da participação de ambos em todas as suas etapas de implementação e manutenção, desde a elaboração de diagnóstico social, a mobilização e a organização da sociedade, além do controle social, que se constitui em relevante papel atribuído à sociedade, numa política pública democrática.

Esse trabalho representa a crença de sua autora de que não se deve cruzar os braços diante dos desafios, portanto, por mais entraves que possam existir, quando se procura responder efetivamente os complexos problemas relacionados a Segurança Pública, como nos inspira o Sociólogo Luiz Eduardo Soares e a Professora de Serviço Social Miriam Guindani (2007), sempre é possível pensar e implementar saídas, desde que haja o envolvimento efetivo da sociedade civil e dos poderes públicos. O que não pode ocorrer é a falta de indignação, de compromisso e de esperança como se as tantas vida ceifadas cotidianamente fizessem parte de um retrato social explicado meramente pela naturalização da violência e da criminalidade.

Cabe ao Estado brasileiro, o dever de não se omitir diante do seu valioso papel de garantidor do direito à segurança de todos os cidadãos indistintamente, numa perspectiva ampla, perpassando o direito à vida digna, à integridade física, à proteção do patrimônio, enfim ao bem estar social dos cidadãos. Recai, também, responsabilidade à sociedade civil, enquanto agente político indispensável em qualquer processo de construção social, sobretudo com características democrática. Trilhando nesse caminho é que se alcançará o necessário nexo, entre o poder estatal e os Direitos Humanos, defendido por Costa (2006), num Estado Democrático de Direito. Caso contrário, mantendo a Segurança Pública balizada em direitos restritos, referenciada por uma cultura política antidemocrática e discriminadora, obviamente prevalecerá a supremacia do poder e da força contra a cultura dos direitos, conservando os interesses de grupos político e economicamente privilegiados de sempre.

Notas

1. Trata-se de uma primeira tentativa de sistematização dos modelos teóricos de segurança pública, cabendo, portanto, estudos mais aprofundados sobre o assunto.

2. Expressão antropológica difundida pelo antropólogo Arnold van Gennep, aqui utilizado metaforicamente.

3. Através da Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão federal, responsável pela coordenação da segurança em âmbito nacional.