ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

3. A nova política de segurança pública em debate

Lúcia Lemos Dias, 2011

Introdução

O presente capítulo traz dados e reflexões relativos à base jurídica e política do processo de construção de uma nova política de Segurança Pública, congruente com o Estado Democrático de Direito. Isto significa dizer que tal política pública afasta-se de paradigmas tradicionais, fundados meramente nas ideias de poder e força/violência, em conformidade com o modelo de política de segurança antidemocrático apresentado no capítulo II.

Na perspectiva jurídica, o marco inicial do processo de mudança da concepção de Segurança Pública brasileira tem como referência a Constituição de 1988 na qual, pela primeira vez, o tema foi tratado, constitucionalmente, de forma específica e associado à noção de direito, embora não dissociado do papel das Forças Armadas. Em termos de agenda governamental, a Segurança Pública passou a ser associada aos Direitos Humanos em 1996, em decorrência dos reclamos da sociedade civil e devido à exploração abusiva do uso da força/violência, caracterizado como violação estatal dos Direitos Humanos por parte de policiais. No bojo desse processo o Governo Federal criou uma Política Nacional de Direitos Humanos, focalizada, principalmente, na preservação das liberdades civis.

Visando à análise e compreensão desse processo político discorre-se, aqui, a respeito do Programa Nacional de Direitos Humanos I, II, e III, e acerca dos debates travados, no âmbito do poder público, em busca de uma resposta plausível para o complexo e crescente problema da violência e da criminalidade, que se difunde na sociedade e, ao mesmo tempo, das formas de coibir as práticas abusivas dos policiais.

Esse processo desencadeou-se com a emergência, em 2000, do primeiro Plano Nacional de Segurança Pública, que não chegou a obter visibilidade social em decorrência da sua inexpressividade como resposta ao problema em questão. A seguir, focaliza-se o novo Plano Nacional de Segurança, previsto inicialmente para os anos 2003 - 2006, e tendo sido depois estendido para o segundo mandato do então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, reconduzido ao mesmo cargo até 2010.

Tomando como referência o novo plano, vinculado ao objeto específico do presente estudo, nossa tentativa foi de fazer sua caracterização enfatizando o seu conteúdo e as formas de intervenção indicadas, com vistas a detectar elementos desafiantes que permeiam o processo de incorporação e implementação da nova política nas unidades federativas, segundo o "pacto nacional pela democratização da Segurança Pública".

3.1. Instrumento jurídico e político: a base para nova política de segurança

No intuito de fundamentar a mudança de paradigma da Segurança Pública, é indispensável considerar suas bases situadas num patamar anterior e superior às formulações jurídicas e às definições de políticas, ou seja, o dos valores e concepções filosóficos historicamente constituídos a partir da Idade Moderna.

Independentemente da terminologia utilizada, esses princípios aqui considerados como base para a construção de uma política de Segurança Pública verdadeiramente condizente com uma sociedade democrática, encontram respaldo no âmbito da Filosofia do Direito, especialmente na perspectiva do jurista espanhol Gregório Peces-Barba Martinez (1999) e de seus seguidores. Em sua visão, hoje largamente compartilhada pelos que buscam o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito, não se podem considerar legítimos os interesses - e sua expressão em ordenamentos jurídicos e práticas políticas que visem a defendê-los - que não demonstrarem coerência para com os valores, segundo ele, considerados constitutivos da "ética pública da modernidade ilustrada" e consensuais, partilhados pela maioria dos cidadãos nas sociedades democráticas: uma determinada noção de Dignidade Humana e de valores que lhe são inerentes, como a liberdade social, política e jurídica, a igualdade, enfim, todo o conjunto de Direitos que estão na raiz das definições jurídicas do Direito Internacional quanto aos Direitos Humanos.

Consoante Gregório Peces-Barba Martinez (1999), os valores têm um papel fundamental e concretizam-se nos Direitos Humanos que devem reger as relações entre os cidadãos e o Estado, de forma a que esses dois pólos não se oponham, ao contrário, tornem-se complementares. Segundo essa visão, o Estado deve servir aos valores e interesses legítimos - isto é, condizentes com a concepção de Dignidade Humana - dos cidadãos, superando-se a oposição entre o interesse individual e o interesse coletivo. A ação do Estado só é legítima, portanto, quando se orienta para a realização da dignidade humana em qualquer tipo de determinação, ação ou aplicação normativa do Estado, "a partir de direitos fundamentais, ou se, se quiser, a partir de valores prolongados em direito fundamentais como o direito à participação política ou o direito à segurança jurídica ou à jurisdição" (1999, p. 351).

Segundo o mencionado autor, portanto, para que se possa estabelecer um verdadeiro Estado Democrático de Direito, a norma jurídica terá de ter, necessariamente, um nexo inseparável com seu fundamento ético e moral, que lhe é anterior, e não pode mais ser vista apenas na dimensão formal ou consoante à visão pura do Direito, como pretende Kelsen:

(...) estas dimensões formais da norma básica não somente derivam dos valores, mas sim incorporam também princípios de organização como o das maiorias e direitos fundamentais como o de participação política. Uma separação taxativa entre dimensões formais e materiais e ainda mais uma redução da identificação de normas apenas por critérios formais, como pretende Kelsen, não respondem ao que acontece na realidade (MARTINEZ, 1999, p. 350).

Seguindo-se esta linha, neste estudo são tomados como novos pressupostos teóricos os temas democracia e Direitos Humanos, considerados pilares do Estado Democrático de Direito, conforme construção teórica apresentada no primeiro capítulo, indicando uma nova visão de Segurança Pública.

Em concordância com Martinez (1999), reconhece-se a relevância da dimensão ética e política dos Direitos Humanos, ou ainda, considera-se relevante a ênfase nos princípios éticos, assim como a importância da luta política como fundamento básico para a conquista e a efetivação dos Direitos Humanos, não obstante, obviamente não haja como exigir sua garantia pelo Estado, através de uma política pública, se os direitos não forem previamente formalizados.

Em outros termos, implica dizer que a prescrição de determinado direito no ordenamento jurídico, - que, por sua vez, não se dissocia dos valores e de concepções político-filosóficas da realidade social, historicamente construídos, conforme explicitado pelo autor, - é determinante para a configuração de uma determinada política pública.

A Constituição brasileira de 1998 apontou para uma ampla agenda de reformas com relação à intervenção do Estado na sociedade, exigindo mudanças no desenho das políticas públicas. No que concerne ao tema Segurança Pública, antes de 1988, as Constituições brasileiras (1) existentes anunciavam o direito à segurança de forma pontual e abstrata, e apenas no capítulo relativo aos Direitos e Garantias Individuais. O tema segurança só era retomado no título relativo às Forças Armadas, mas compreendido como segurança nacional.

A Constituição de 1988, a exemplo das anteriores, também anuncia a segurança, inicialmente no Título II, Dos Direitos e Garantais Fundamentais, Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, sendo acrescentado o direito à vida, conforme consta do caput do Art. 5º, que se transcreve: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade".

Mas, diferentemente das demais, a Constituição de 1988 reserva espaço especifico à temática da Segurança Pública no Capítulo III, no artigo 144, ao afirmar:

Segurança Pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia ferroviária federal; IV - policiais civis; V - policiais militares e corpos de bombeiros militares (BRASIL, 2005).

Destaca-se, nessa regulamentação, a ênfase dada à universalização do direito à segurança, ao mesmo tempo em que situa a Segurança Pública no âmbito da cidadania, ao reconhecer o Estado como responsável pela garantia desse direito. Segundo Cerqueira (2001), a segurança foi elevada ao status de direito da cidadania, em termos formais, correspondendo à noção de Direitos Humanos. Contudo, não fica suficientemente claro e cada unidade membro da Federação responde por sua política de segurança, embora perante as outras nações e órgãos internacionais o presidente da república responda pela política de segurança do país.

Isso significa dizer, por exemplo, que o Governo Federal, mesmo podendo ser responsabilizados perante os organismos internacionais pelos problemas apresentados pela Segurança Pública nos Estados, não tem poderes para interferir na condução da política dos governadores estaduais que dispõem de plena autonomia.

Convém destacar que a Segurança Pública, ou melhor, o direito à segurança não foi contemplado no Título VIII, da Constituição, que versa sobre a Ordem social e regulamenta os direitos sociais mencionados no teor do Art. 6º. Nesse artigo é feita menção ao "direito à segurança", junto aos demais direitos de cunho social, não sendo, entretanto, regulamentado de forma detalhada, nesse Título, como o foram os demais.

Comparando-se o tratamento dado ao tema Segurança Pública ao dispensado aos temas de cunho social na Constituição Federal de 1988, constata-se ambigüidade por parte dos constituintes, com relação ao reconhecimento do direito à segurança como um direito social.

A Segurança Pública foi tratada, porém, em capítulo específico, no Título V da Constituição, que trata da Defesa do Estado e das Instituições Públicas, juntamente com os temas Estado de Defesa, Estado de Sítio e Forças Armadas. Daí, certamente, uma das razões para que o direito à segurança sempre apareça associado com a garantia da ordem pública, distanciando-se dos temas cidadania e direito humano à segurança. Nesse sentido, apoiando-se no pensamento de Cerqueira (2001), Luciano (2003), Cardoso (BRASIL, 1997) e Bova (1999) deve-se fazer a distinção entre Segurança Pública e ordem pública, ao mesmo tempo em que se faz indispensável abrir o debate sobre o direito humano à segurança, articulado à dimensão social.

No geral, ressente-se da falta de critérios e elementos que possam nortear a política nacional de Segurança Pública. Como forma de suprir essa lacuna, coloca-se como urgente a regulamentação da Segurança Pública, a exemplo do que ocorreu com as demais políticas públicas. Até hoje não há norma de caráter objetivo que supra as lacunas do artigo 144, deixadas pelos constituintes, sobretudo com relação aos critérios democráticos que devem nortear essa política, apresentando-a, preferencialmente, na interdependência para com os Direitos Humanos e, sobretudo, considerando a devida distinção entre Segurança Pública e ordem pública. Nesse sentido, vale observar, apoiando-se em Fontoura et al (2009, p. 137), que os parlamentares deixaram na "Segurança Pública um arcabouço institucional, fortemente militarizado e marcado por atuação importante das Forças Armadas".

Por conseguinte, merece ser observada a notória contradição existente na Constituição Federal, na medida em que ela mantém as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros como forças auxiliares e reservas do Exército, embora determine sua subordinação e a da polícia civil aos governadores. Desse modo, fica indicada na própria Constituição uma ambigüidade quanto à subordinação das Polícias Militares, que devem responder a dois gestores distintos: o governo em âmbito estadual e, ao mesmo tempo, o Governo Federal, em virtude de sua vinculação às Forças Armadas. Como resultante dessa vinculação, os funcionários públicos da área de Segurança Pública, mais diretamente os policiais militares, são submetidos a um conjunto de normas que diferem dos demais servidores públicos, por se inspirarem na legislação do Exército, através do Regimento Disciplinar Militar e do Código Penal Militar, além de serem julgados por Tribunais Militares.

O Regimento Disciplinar Militar, adotado pelas polícias militares, "é considerado, no meio policial militar, como um dos mais importantes instrumentos normativos de controle dos policiais militares [...]" (MOURA, 2007, p. 237). Este documento vem sendo discutido por alguns policiais militares e estudiosos da área que consideram suas medidas discriminatórias, autoritárias e divergentes dos princípios constitucionais e, conseqüentemente, do Estado Democrático de Direito. A revisão desse regimento foi apontada como medida indispensável pela nova política de Segurança Pública.

Convém lembrar que, se na nova ordem jurídica o foco da Segurança Pública passa a ser a garantia do direito à segurança de todos, faz-se necessária uma revisão não só dos meios de execução dessa prática social, como também dos seus sujeitos de direito, seus objetivos e seu conteúdo, sem esquecer um tratamento para seus profissionais em consonância aos Direitos Humanos. Constituída a nova ordem jurídico-política, a velha política de segurança, apresentada no capítulo II, inspirada essencialmente em princípios autoritários e no uso indistinto da força, com vistas à garantia da ordem pública, não poderia continuar prevalecendo.

Como argumenta Cerqueira (2001, p. 33),

(...) querer tratar de justiça, polícia e criminologia, esquecendo-se que estas questões estão envolvidas na ordem política, é somente perder tempo com raciocínios e palavras brilhantes e de efeito, e, ainda mais, enganar-se e enganar a opinião pública.

Em síntese, admitir a continuidade, num Estado Democrático de Direito, de uma política pública que não observe as novas necessidades sociais emergentes e a dinâmica política da sociedade tende a gerar uma grande crise nessa política pública.

Talvez, se a Constituição Brasileira fosse plenamente aplicada poderia até ser desnecessária a instituição de um Programa Nacional de Direitos Humanos, uma vez que a determinação de promoção e do respeito ao conjunto dos Direitos Humanos já se encontram contemplados na Constituição Federal desde 1988. A conquista e consecução efetivas da universalização dos direitos, proclamada na nova Constituição, exige, porém, um maior fortalecimento das instituições e de suas respectivas políticas públicas.

Nesse aspecto faz-se necessário relembrar a Marilena Chauí (2007, p. 90), ao discorrer sobre o autoritarismo social, instalado na sociedade brasileira, considerado pela referida autora como um lastro favorável ao paradoxo existente no Brasil entre a igualdade formal dos direitos, e, de outro lado, a idéia de que alguns são mais iguais que outros, dando margem à garantia de privilégios e não à de direitos.

Devem ser lembradas, ainda, como mostra Bauman (1999), as "conseqüências humanas", advindas da globalização que, se para alguns é "sinalização de liberdade, para muitos outros é um destino indesejável e cruel". Alega ele que a liberdade (de ir e vir), no mundo globalizado, transformou-se em mercadoria cara, de acesso desigual, chegando a constituir-se num elemento estratificador. A segregação espacial faz parte do processo de globalização e é evidente pela separação e exclusão dos pobres. Esses, que permanecem localizados, separados e excluídos, destituídos, sobretudo, de poder de consumo, são os anormais ou à margem da lei, a eles deve ser destinada toda a força repressiva estatal, segundo os resquícios da concepção de poder que resta "da antiga iniciativa política nas mãos cada vez menos frágeis da nação-estado". Uns poucos são globalizados, a maioria permanece localizada e "ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social" (BAUMAN, 1999, p. 8).

A sociedade atual, caracterizada pela valorização do consumo, mantém ainda uma diferença profunda em relação à fase industrial da sociedade moderna, caracterizada como "sociedade de produtores", diferença esta que se manifesta em termos de "ênfase e prioridades". Na fase industrial, a sociedade era focada na produção, enquanto na forma atual supervaloriza o consumo. Essa mudança de ênfase "faz uma enorme diferença em praticamente todos os aspectos da sociedade, da cultura e da vida individual" (BAUMAN, 1999, p. 88), recolocando a pauta dos Direitos Humanos como discussão fundamental.

A representação social das "conseqüências humanas" geradas pela globalização, extraída sinteticamente de Bauman, tem semelhanças com a realidade brasileira, sobretudo após a ditadura militar. O país encontrava-se em profunda crise sócio-econômica, mas, contraditoriamente, os governos civis eleitos, optaram pelo fortalecimento do projeto econômico, denominado por Boaventura de Souza Santos (2002c), de "globalização neoliberal".

O movimento de globalização da economia não é novo. Tem sua origem na formação e na expansão do próprio capitalismo. O que existe de novo, nesse movimento, é "a intensificação exponencial das relações transfronteiriças e as novas tecnologias de comunicação e informação, que reproduziram alterações profundas nas escalas espaciais e temporais da ação social" (SANTOS, 2002a, p. 17). Além de interpenetrar os vários campos, seja o social, o político, o econômico, o cultural gera impactos em níveis múltiplos e, assim, contribui para a expansão e agudização da violência e da criminalidade.

Neste sentido, Liszt Vieira (2004) faz notar que tanto ocorre a mundialização da economia quanto a globalização da pobreza, do desemprego, da forme, dos problemas sociais, enquanto os projetos nacionais são reformulados em função das regras impostas pelos grupos que detêm a hegemonia da internacionalização da economia. Desse modo, verifica-se a redução dos espaços de intervenção direcionada à questão social por parte dos Estados -nações, que tendem a priorizar, em suas agendas políticas, os interesses dos países regentes do movimento de globalização.

O neoliberalismo, além disso, rejeita, segundo Antonio José Avelãs Nunes (2003, p. 38), a redução das desigualdades, seja em nome da equidade ou da justiça social. Empregar as políticas públicas como um instrumento com vistas à garantia de direitos, em nome da justiça social distributiva, significa, para o neoliberalismo, um atentado contra a liberdade individual. Todo o pensamento neoliberal é constituído em nome da preservação e do respeito à liberdade econômica, sobretudo à liberdade de adquirir bens. Neste sentido, ele reduz drasticamente as funções sociais do Estado, segundo uma estratégia de destruição da noção de direitos sociais, ou seja, de não reconhecimento do direito de acesso aos bens sociais em função do pertencimento a uma sociedade, descaracterizando assim, a noção de cidadania. Segundo a ideologia neoliberal, "ao gozo dos benefícios deve corresponder uma contrapartida: o desempenho de trabalho ou o seu pagamento." Esta concepção difere claramente da visão do Estado de bem-estar social, que se propõe a assegurar os direitos sociais a todos os cidadãos, em pé de igualdade, independentemente da sua vinculação ou não ao mercado de trabalho (LAURELL, 1997, p. 155). Além dessas leituras sobre o neoliberalismo, também deve ser considerada a relevante observação de Boaventura de Sousa Santos (2002b, p.21), quando diz que o "débito social mundial é muito antigo. Não é de agora, não é do período do neoliberalismo, é muito mais antigo que isso e este último período alimenta-se de uma história que é antiga e da qual é difícil que a gente escape neste momento". Alerta o referido autor para o fato de que a política dominante é antissocial: "Se a política que nós temos fosse, ela própria, uma política social, no seu conjunto, nós não precisaríamos de políticas sociais, no sentido restrito" (SANTOS, 2002b, p. 21).

Há, porém, outra questão abordada pelo mesmo autor quanto ao que ele denomina de globalização contra-hegemônica. Boaventura de Sousa Santos (2002c) chama a atenção para o fato de que, apesar das abordagens preferenciais da globalização neoliberal se darem sob a ótica dos vencedores, de forma tão absoluta que os perdedores parecem ser retirados de cena, ao analisar-se criticamente a globalização neoliberal, verifica-se a emergência de uma globalização contra-hegemônica. Esta consiste num processo político de resistência ao projeto neoliberal globalizado, norteado por um projeto alternativo de sociedade (2) que vislumbra o respeito e a promoção dos Direitos Humanos, tendo como referência o multiculturalismo emancipatório (3). Nesse sentido, chama atenção para o Fórum Social Mundial, configurado como um evento articulador das diversas lutas sociais, em torno de um projeto alternativo de sociedade, contrário à supremacia do capital global ou globalização neoliberal (SANTOS, 2002c).

Para efeito deste estudo, cabe ainda destacar que alterada a organização jurídico-política, no Brasil, a partir de 1988, com o advento do Estado Democrático de Direito, a opção política dos governos civis, convergiu para um projeto econômico e político inspirado na ideologia da "globalização neoliberal", contribuindo sobremaneira para acentuar o paradoxo entre a formalidade constitucional dos Direitos Humanos e sua efetivação. Em outros termos, pode-se dizer que a opção política dos governos brasileiros tendeu a não observância da efetivação plena dos Direitos Humanos, divergindo das promessas do Estado Democrático de Direito.

Neste cenário, a participação popular e a representatividade política tornam-se alvos de ações e fatores restritivos, em total descompasso com as promessas democráticas ou, como diria Santos (2001), esses dois elementos, essenciais para o avanço democrático, passam a ser tratados como patologias. Assim, vão-se perdendo cada vez mais "as referências públicas nas quais sempre se projetaram, para o bem ou para o mal, esperanças de progresso, de igualdade e de justiça" (TELES, 2004, p. 66).

Além desse quadro desfavorável à afirmação dos direitos pelo Estado, seus agentes, que deveriam agir como defensores e promotores dos Direitos Humanos, inspirados, ao contrário, numa cultura antidemocrática, herdada historicamente e reforçada em conjunturas específicas, tendem a confundir política de Segurança Pública com prática social violenta, optando por ações que culminam em violação de direitos, num contexto em que é atribuído papel importante aos aparelhos de controle repressivo, como mostra Loic Wacquant (2003).

Segundo o relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, de 1998 (4), a violência e a impunidade de policiais destacaram-se entre os fatos negativos relacionados aos Direitos Humanos, sobretudo na década de mil novecentos e noventa. O mesmo relatório ressalta o fato de que os policiais militares acusados do assassinato, seja de 19 trabalhadores no Pará, em 1996, no chamado "massacre de Eldorado de Carajás", seja do conhecido "massacre de Corumbiara", que resultou na morte de 12 trabalhadores rurais, em Rondônia, no ano de 1995, até aquele momento, continuavam a trabalhar normalmente em suas corporações, como se não fossem responsáveis ou sequer suspeitos por esses crimes. (BRASIL, Relatório Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal - 1997).

Pesquisa realizada pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER) revela que, de "301 ações de policiais militares que resultaram em mortes ou ferimentos de civis no Rio de Janeiro, de 1993 a 1996, não foi condenado um único PM". A Ouvidoria de Polícia de São Paulo, segundo o relatório supramencionado, teria registrado que a Policia Militar daquele Estado foi responsável pela morte de 466 pessoas no ano de 1998, representando um crescimento de 15% se comparado ao ano anterior. No mesmo ano, a Human Rigths Watch America indicou que a Polícia Militar do Rio de Janeiro teria assassinado uma média mensal de 60 pessoas no mesmo período (5) (Apud, BRASIL, Relatório Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal - 1997).

Apesar destes dados se restringirem a dois Estados brasileiros, isso não quer dizer que os demais sejam diferentes, pois a banalização da violência policial espalha-se por todo país. Segundo Cerqueira (2001), não há como ocultar a prevalência, no Brasil, da Segurança Pública concebida como política de combate ao inimigo interno, ou seja, inspirada unicamente no uso da violência para eliminar "o inimigo interno", que se encontra na sociedade.

Desse modo, vem à tona um problema que, aparentemente, teria sido superado com a transição do regime militar para o regime democrático. Segundo Cardia (1997), num primeiro momento, havia a impressão de que a figura do suspeito (como culpado) até que se prove o contrário (isto é, a inocência) havia desaparecido, enquanto as classes média e alta deixavam de ter medo da polícia. Contudo, foi constatando-se que a polícia não mudou de fato, voltando a ser percebida menos como fonte de segurança e mais como agente de força sem limites, sobretudo quando o crime era praticado por cidadãos pobres e/ou negros. Fica, portanto, caracterizada a sobrevida do autoritarismo no Estado Democrático de Direito.

Diante desse quadro, entidades da sociedade civil fortalecem a luta em torno da questão da Segurança Pública, sob a liderança do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o qual incorpora como objeto de luta nacional a defesa dos direitos civis dos presos comuns, vítimas do uso abusivo do monopólio da força. A articulação desse Movimento com órgãos internacionais permite que as denúncias de violação alcancem a comunidade internacional que passou a exigir do Estado brasileiro o fim dessas práticas.

A não observância do respeito e da garantia dos direitos parece não ser exclusividade do Brasil, uma vez que a Conferência Internacional dos Direitos Humanos de Viena (6), 1993, reafirmou a "importância de garantir a universalidade, a objetividade e a não seletividade na consideração de questões relativas aos Direitos Humanos" (7) (ONU, Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, 2001, p.190). Como estratégia política, a referida Conferência fez constar, no documento Declaração e Programa de Ação, a recomendação de criação, pelos Estados membros da ONU, de uma política específica voltada para a defesa e a promoção dos Direitos Humanos (ONU, Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993, 2001).

Em virtude dessa recomendação e o quadro de denúncias de amplo conhecimento público, em nível nacional e internacional, relativas às violações de direitos praticadas, sobretudo, por policiais militares, o Governo Federal anunciou, em setembro de 1995, a elaboração de uma Política Nacional de Direitos Humanos para o Brasil.

Essa política culminou com a criação do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH, elaborado sob a coordenação do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo - NEV/USP, envolvendo diversos segmentos da sociedade civil, através de oficinas regionais (8), além de debates com vários órgãos nacionais da sociedade civil.

O Programa, apresentado à sociedade brasileira em 1996, enfatiza o estabelecimento de uma relação democrática entre sociedade e Estado, ao mesmo tempo em que destaca a necessária participação de toda a sociedade para a construção de uma sociabilidade democrática e sem violência. Em seu texto, declara que o lançamento do Programa

(...) abre uma nova dinâmica. Governo e sociedade civil respeitam a mesma gramática e articulam esforços comuns. O Programa passa, desta forma, a ser um marco referencial para as ações governamentais e para a construção, por toda a sociedade, da convivência sem violência que a democracia exige (BRASIL, PNDH 1, 1996).

Em suas metas de curto, médio e longo prazo foram destacados temas relacionados à violência, à criminalidade, à ação policial e aos grupos social e culturalmente vulneráveis, apontando para a necessidade de mudança na política de Segurança Pública do país. A partir de então, o Programa passou a nortear as discussões políticas relacionadas aos problemas apresentados na área de Segurança Pública, ao mesmo tempo em que serviu de justificativa para a inserção do tema Direitos Humanos no currículo das Academias de Polícia.

Para as instituições policiais, a introdução do debate sobre o tema Direitos Humanos, associado à nova configuração de Estado e/ou aos temas democracia e cidadania, significava um choque de cultura, enquanto os Direitos Humanos representavam uma contraposição ao uso abusivo do monopólio estatal da violência que sempre serviu de parâmetro para a ação policial.

De forma geral, durante a década de 1990, no Brasil, o debate em torno dos Direitos Humanos centraliza-se na questão da garantia dos direitos civis e políticos. Num contexto de agudização da questão social, porém, sentia-se a falta do debate sobre a garantia e respeito aos direitos econômicos, sociais e culturais. As discussões sobre esses direitos ganharam destaque na IV Conferência Nacional de Direitos Humanos, em 1999, na qual se reivindicou ao Governo Federal que direitos de cunho coletivo fossem tratados na política de Direitos Humanos com a mesma importância dada aos direitos individuais.

Em atendimento a essa reivindicação, o Governo Federal desencadeou o processo de atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos que transcorreu de forma participativa, sob a liderança do Movimento Nacional de Direitos Humanos. Conseqüentemente, em 2002, foi lançado o II Programa Nacional de Direitos Humanos, contemplando os direitos sócio-econômicos e culturais, conhecidos como DESC (BRASIL, PNDH 2, 2002).

Constata-se, assim, o avanço na Política Nacional de Direitos Humanos, na medida em que passam a ser tomados de forma indiscriminada e indissociável, incorporando-se suas múltiplas dimensões, orientando-se pelo respeito às diferenças sociais e culturais, em conformidade com as recomendações da Conferência de Viena.

Um segundo processo de atualização dessa política teve como subsídio as resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 2008, e propostas aprovadas em 50 Conferências nacionais temáticas efetivadas desde 2003, passando, portanto, por amplo debate imbricado à questão das políticas públicas. Tal debate continuou sendo aprofundado no ano de 2009, com a participação de representantes de diversos setores da sociedade civil e de órgãos públicos. Em 21 de dezembro de 2009 foi formalizado, pelo governo federal através do Decreto nº 7.037, o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (BRASIL, PNDH 3, 2010).

O PNDH - 3 apresenta como prioridade o desenvolvimento da cultura democrática no âmbito do poder público, assim como na sociedade, elegendo como foco o fortalecimento da relação Estado e sociedade. Isso se fará com várias ações e instrumentos propostos pelo programa: a ampliação de espaços de controle e participação popular e o fortalecimento das políticas públicas, a partir da universalidade, indivisibilidade e interdependência das várias dimensões dos Direitos Humanos; o reforço do caráter laico do Estado brasileiro; uma opção clara pelo desenvolvimento sustentável em que o ser humano deve ser tomado como sujeito de direitos; e ênfase no respeito à diversidade, no combate às desigualdades sociais e na erradicação da fome e da extrema pobreza (BRASIL, PNDH 3, 2010).

O referido programa está estruturado em seis eixos orientadores, seguidos de diretrizes e objetivos estratégicos. O IV eixo trata do tema segurança Pública, acesso à justiça e combate à violência, o qual está subdividido em sete diretrizes. Dentre essas, merecem destaque aqui as diretrizes direcionados diretamente à política de segurança pública, que são respectivamente as seguintes: diretriz 11 - democratização e modernização do sistema de segurança pública; diretriz 12 - transparência e participação popular no sistema de segurança pública e justiça criminal; diretriz 13 - prevenção da violência e da criminalidade e profissionalização da investigação de atos criminosos; e, diretriz 14 - combate à violência institucional, com ênfase na erradicação da tortura e na redução da letalidade policial e carcerária (BRASIL, PNDH 3, 2010).

Percebe-se que o tema democracia, prevenção da violência e da criminalidade, além da participação popular ganharam destaque no PNDH 3, reforçando o que já estava posto no Sistema Único de Segurança Pública, assim como no Programa Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI, criado em 2007, também vinculado ao SUSP.

O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 ocasionou um fato inédito, uma vez que 31 ministros subscreveram a exposição de motivos solicitando a sua institucionalização através de decreto ao Presidente da República. Outro dado significativo refere-se à discussão política travada em torno do novo programa, sobretudo envolvendo setores sociais tradicionais, como as Forças Armadas, os latifundiários e a Igreja Católica, além da mídia, por entenderem estes que seus interesses teriam sido contrariados, destacando-se entre eles os direitos que perpassam a questão agrária, o tema relativo ao aborto e a laicização do Estado, a revisão da lei da Anistia, com possibilidade de discussão dos crimes praticados pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar e a sinalização para a democratização dos meios de comunicação.

Embora, sejam temas que atravessam aspectos político-ideológicos, vale destacar que alguns não são novos, tendo recebido apenas nova redação. O que há de novo é que o Programa foi lançado num contexto em que grupos opositores ao governo do Presidente Lula constataram, mais uma vez, sua vasta aprovação nacional.

Os confrontos políticos gerados em torno do novo Programa representam bem o desafio a ser enfrentado por qualquer tentativa de superar a distância existente entre a formalidade dos Direitos Humanos e a sua efetivação pelo Estado brasileiro. Por conseguinte, fica evidente que cada vez mais se faz necessário o fortalecimento da luta em prol da defesa e da promoção desses direitos.

Neste sentido, cabe lembrar o óbvio: a harmonia, por vezes percebida na sociedade, sobretudo quando se trata dos Direitos Humanos, é apenas aparente. Destarte, a figura do Estado Democrático, sob a ótica dos Direitos Humanos, deve ser vista como um campo de conflito entre interesses divergentes, em permanentemente disputa, de forma silenciosa ou declarada, numa sociedade capitalista, movida por interesses divergentes, no âmbito das questões econômicas, políticas e culturais.

Por outro lado, as limitações a serem enfrentadas com vistas ao cumprimento da política nacional de Direitos Humanos não são poucas. Como mostra a Professora Laura Tavares Soares (2003), a garantia de direitos não é pensada como parte integrante do desenvolvimento econômico, ficando, portanto, as políticas de efetivação de direitos a depender da agenda fiscal. Destarte, com os problemas sociais fora da agenda pública, tende-se à acentuação da vulnerabilidade dos grupos sociais mais desfavorecidos, enquanto aumentam as ameaças sociais e situações de risco relacionadas ao fenômeno da violência e da criminalidade. Wacquant (2003) afirma que a resposta empregada preferencialmente pelo Estado, frente ao agravamento da questão social, consiste no fortalecimento da repressão policial, principalmente para as comunidades socialmente mais vulneráveis. Ainda que a Segurança Pública seja uma política pública relevante aos interesses dos grupos do poder político e econômico, não recebe a atenção e a valorização devidas por parte do Estado brasileiro.

3.2. A ampliação do debate e o posicionamento dos poderes públicos: sinalização de mudanças da Segurança Pública

No Brasil, nos últimos anos do século XX, a Segurança Pública converteu-se em tema de debate político ou, nos termos de Sapori (2007), tornou-se um problema social que preocupa a todos, passando a ocupar o espaço público, através de variados atores sociais ou entes institucionais. Assim, diante de uma crise latente, de âmbito nacional e de ampla repercussão pública, o Governo Federal sentiu-se obrigado a apresentar uma resposta mínima à sociedade. A recém criada Secretaria Nacional de Direitos Humanos, em 1997, recebeu então a atribuição de dirigir um grupo de trabalho designado pelo Presidente da República, com os objetivos de realizar a "avaliação do sistema de Segurança Pública" e de apresentar propostas "que pudessem ser implementadas imediatamente" (BRASIL, Documento Medidas Mínimas de Reforma da Segurança Pública, 1998, s/n). Essa seria a primeira expectativa criada pelo poder público de inclusão do tema Segurança Pública na agenda governamental.

Os trabalhos desse grupo, conforme se verá pelo teor das propostas que gerou, nortearam-se pelo tema Proteção do direito à vida, do I Programa Nacional de Direitos Humanos, marco fundamental para as discussões sobre a Segurança Pública em interface com os Direitos Humanos, tendo como eixo o Estado Democrático de Direito. Decorridos três meses, com apenas seis reuniões de trabalho, em agosto de 1997, o grupo apresentou o documento Medidas Mínimas de Reforma da Segurança Pública, em forma de relatório, contendo 43 propostas (9) para a reforma da política de segurança.

Essas propostas versam sobre: a) Controle externo e interno das polícias; b) integração das polícias, com reforma no sistema de comando; c) a atuação das guardas municipais na Segurança Pública, d) a descentralização, desverticalização das polícias e aproximação destas à comunidade; e) desburocratização do inquérito policial; f) a formação do policial em consonância com os valores democracia, cidadania e Direitos Humanos, voltada para a proteção do cidadão e a resolução de conflitos, com ênfase no papel do policial na proteção do cidadão, e na assistência a vítimas; g) valorização dos profissionais da segurança, com revisão dos regulamentos disciplinares arcaicos, considerados violadores de direitos dos policiais, redução das desigualdades entre policiais através da diminuição do número de níveis hierárquicos, estabelecimento de planos de carreira para as polícias militares, que possibilitasse aos praças das Polícias Militares o acesso ao nível de oficiais e aos agentes das polícias civis chegarem ao cargo de delegado; h) intensificar o controle das armas de fogo; i) incentivar o desarmamento e desincentivar o comércio de armas.

É indispensável destacar, contudo, que esse documento deixou intocadas várias questões delicadas como, por exemplo, a da vinculação da Segurança Pública às Forças Armadas, mais precisamente ao Exército. Deixou ainda intocada a questão da desmilitarização das Polícias Militares, vista pelos defensores dos Direitos Humanos como crucial para promoção do direito à segurança do cidadão. Referindo-se a isto, o Deputado Hélio Bicudo considerou que toda a discussão e as propostas apresentadas não alcançariam resultado algum, uma vez que o núcleo da questão não teria sido tocado. Para ele a militarização das polícias estaduais seria o problema central da Segurança Pública brasileira (Apud, HOFFMAN, 2010).

A esse respeito, Zaverucha (2005) lembra que as Forças Armadas ainda se encontravam vinculadas a interesses de determinados grupos políticos do país e, certamente, mantendo sua influência no âmbito da Política de Segurança Pública levada a efeito nacionalmente. Um claro sinal disso seria o fato de que a militarização das polícias estaduais, assim como a estratégia de combate ao inimigo, herdadas da cultura militarista gestada ou fortalecida no período da ditadura militar, que tão bem se coadunam com o uso abusivo do monopólio da violência, não foram objeto de alterações nas propostas apresentadas pelo grupo de trabalho de 1997.

A indicação de um general do exército para a Secretaria Nacional de Segurança Pública, criada com o objetivo de formular e implementar uma política nacional de segurança para o Brasil, conforme sugestão do grupo de trabalho, parecia sinalizar claramente que o Presidente da República não estava convicto da necessidade de mudanças de cunho democrático para essa área ou, pelo menos, considerava indiferente a atuação de um civil ou de um militar para conduzir uma política pública de segurança.

Esses fatos ganham novos significados se levarmos em consideração que, ainda durante o processo de trabalho do grupo que gerou o documento Medidas Mínimas de Reforma da Segurança Pública, deflagrou-se, em dezessete Estados do país, uma crise sem precedentes nas instituições policiais, fruto da precariedade das condições de trabalho e da desvalorização dos profissionais, resultante da debilidade a que havia sido submetido todo o sistema de Segurança Pública. Esse quadro de crise institucional demarcava-se, principalmente, através: a) do sucateamento da estrutura física dos órgãos; b) da falta de infraestrutura; c) da inexistência de uma política de saúde para o trabalhador policial (com atendimento médico, sociopsicológico e odontológico); d) da falta de um plano de cargos e salários dignos; e) da alta periculosidade do trabalho dos policiais, decorrente da estratégia de ação policial realizada prioritariamente pelo confronto armado, expondo, freqüentemente, a vida desses profissionais; f) as relações de subordinação e os casos de abuso de poder por parte dos superiores, sofridos pelos profissionais da Polícia Militar, devido ao modelo de relações internas determinado por Regimentos Disciplinares inspirados em normas do Exército (10).

A esses problemas, somam-se a imagem social negativa criada pela sociedade acerca dos profissionais da área em razão das práticas violentas e discriminatórias levadas a efeito por policiais, além da ineficiência e da ineficácia da política de Segurança Pública, culminado numa crise de legitimidade política sem parâmetros históricos de comparação.

Esse movimento, iniciado em Minas Gerais, estendeu-se a outros Estados (11), em razão da insatisfação generalizada dos policiais. Nesse contexto, difundiu-se o sentimento de luta por direitos pelos policiais nos diversos estados brasileiros, contando com a solidariedade de entidades da sociedade civil que reconhecem como justa a luta desses profissionais.

Diante do clima de descontentamento social e preocupação generalizada, em nível nacional, devido aos problemas de amplo conhecimento público na área de Segurança Pública, o Presidente da Câmara Federal criou uma Comissão Especial em Segurança Pública para discutir matérias relacionadas à temática. Promoveram-se audiências públicas (12) com a participação de expositores convidados dos poderes públicos e da sociedade civil. A Comissão deslocou-se para alguns Estados a fim de discutir os problemas relacionados à Segurança Pública com os representantes dos poderes públicos locais. Seus trabalhos tinham como objetivo, também, subsidiar o processo de votação de emendas à Constituição, já em andamento, e a elaboração de novas emendas a serem encaminhadas ao Congresso Nacional, requerendo-se procedimento de urgência em razão da crise.

De forma geral, em sete audiências públicas realizadas na Câmara dos Deputados, os debates travados entre convidados, representantes dos poderes públicos e parlamentares da Comissão foram tensionados por duas posições, uma insistindo na necessidade de mudanças na política de Segurança Pública com vistas à sua adequação aos Direitos Humanos e outra defendendo o velho modelo de Segurança Pública, balizado na ideologia de segurança nacional (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997).

Destarte, as discussões perpassaram temas diversos como a extinção da Polícia Militar como força auxiliar do Exército, tendo como alvo a sua desmilitarização, a revisão dos direitos políticos dos policiais e a inconstitucionalidade da greve dos policiais, a criação de um fundo nacional para Segurança Pública, a melhoria salarial, a revisão dos Regimentos Disciplinares, a criação de programas psico-sociais para os policiais, a unificação das polícias e/ou integração das suas ações, a revisão da ideologia de segurança nacional que permeia a Segurança Pública baseada, sobretudo, na idéia de combate ao inimigo, a necessidade de garantir-se a vinculação da segurança com os Direitos Humanos, e outros.

O clima predominante foi de confronto de idéias. Estiveram presentes nas audiências públicas tanto os defensores da cultura dos Direitos Humanos, como os representantes da posição contra mudanças, adeptos da ideologia de segurança nacional, que restringiam seu olhar apenas para a melhoria salarial e as condições de trabalho dos policiais. Tal divergência de visões ocorria tanto entre os integrantes da Comissão, quanto entre os dirigentes públicos convidados, segundo consta dos relatórios das sete audiências.

Merece destaque, aqui, a exposição do General de Brigada Alberto Mendes Cardoso, Ministro da Casa Militar da Presidência da República, que assessorou o Governo Federal, por ocasião das greves das polícias, na maioria dos Estados brasileiros. Ele fixa sua posição contra o processo de greve deflagrado pelas polícias, assim como na defesa da militarização da Segurança Pública, alegando que, em "situação de grave perturbação da ordem pública", restaurar essa ordem é missão da Polícia Militar, que foi "adestrada" para tal fim. Segundo o general, na falta dessa força pública intermediária, exercida pela Polícia Militar, ter-se-ia de recorrer às Forças Armadas, o que significaria militarizar o conflito social (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 6). Argumenta, ainda, que a Polícia Militar atua em duas vertentes, uma relacionada ao policiamento preventivo e ostensivo, que remete à Segurança Pública, e outra correspondente à restauração da ordem pública. Por conseguinte, a organização e o treinamento da polícia deveriam ser orientados a elas. Indispensável, portanto, "coesão, doutrina e adestramento para ser empregada em massa, necessitando para tanto de disciplina e respeito à hierarquia" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p.6). Logo, pensar em desmilitarizar a polícia, segundo sua visão, requer pensar na criação de outro órgão que supra essa lacuna, quando se trata de atuar junto às massas, na garantia da ordem pública. Esse entendimento é reforçado quando o General justifica a atribuição constitucional do papel de força auxiliar do Exército à Polícia Militar. Diz ele: "Quando se pretende a polícia como força auxiliar do Exército é justamente nessa faceta da restauração da ordem pública". Melhor dizendo, a Polícia Militar deve auxiliar o Exército na função de garantia da ordem pública, já que o Exército "é treinado, organizado, equipado para defesa externa. Ele não tem equipamentos e adestramentos específicos para essas atividades, por exemplo, de controle de distúrbios" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 23).

De outra parte, para o Deputado José Genoino, pelo fato de a Polícia Militar, responsável pela segurança do cidadão, ter essa função de auxiliar do Exército na garantia da ordem pública, seria confundir Segurança Pública com Forças Armadas (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997)

Corroborando esse pensamento, o Deputado Luiz Eduardo Greenhalgh declara que "temos uma legislação - a partir da Constituição - que ainda prevê as regras e princípios da doutrina de segurança nacional". Sem essa desvinculação, continuará "se fazendo confusão entre Segurança Pública e segurança nacional" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, 43).

Neste mesmo sentido, mas em outros termos, coloca-se Cerqueira (2001) ao contestar o modelo de Segurança Pública, sobretudo, pelo fato de apoiar-se num quadro teórico de viés militar, herdado da ideologia de segurança nacional e orientado pelo combate ao "inimigo interno".

Destaca-se, ainda, a favor da mudança da Segurança Pública, o então Secretario Nacional de Direitos Humanos, José Gregori, com um passado de luta pela defesa dos Direitos Humanos, também, participante do debate na Audiência Pública, promovida pela Comissão Especial de Segurança Pública. Em sua exposição, ele preocupou-se em convencer os parlamentares da necessidade urgente de reforma da política de Segurança Pública. Com esse intuito privilegiou como foco de sua fala o documento Medidas Mínimas de Reforma da Segurança Pública, enfatizando a necessidade da interdependência da Segurança Pública com os Direitos Humanos, chegando a afirmar que as "polícias que alcançam melhores resultados no enfrentamento da criminalidade são aquelas que mais respeitam os Direitos Humanos" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 19). Seu discurso culmina num novo conceito de Segurança Pública, apresentado pelo Grupo de Trabalho, em que convergem o bem-estar da sociedade e a defesa do Estado Democrático de Direito, sob a égide da cidadania e dos Direitos Humanos. Argumenta que, segundo os termos do documento, há respaldo legal para um conceito de segurança sustentável.

Tal formulação pressupõe a construção de um modelo de desenvolvimento que fortaleça a democracia, reduza as desigualdades sociais e os desequilíbrios regionais e paralelamente compatibilize as prioridades nos campos político, social, econômico e militar com as necessidades de segurança (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 19).

Em seu depoimento, outro convidado da Comissão, o Professor Titular de Direito Constitucional da USP, Dalmo Dallari, afirma que é:

(...) absolutamente necessário o respeito aos direitos adquiridos não no sentido de estabelecer uma imobilidade do setor público, mas no sentido de preservar aquilo que já está incorporado ao patrimônio do cidadão, como também é absolutamente necessária, evidentemente, a preservação da dignidade das pessoas envolvidas (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p.4)

Dallari alerta para a necessidade de superar-se a tradição que coloca o policial acima da lei, quebrando-se o mito de que para "o policial não há lei, não há limite, porque ele está protegendo a sociedade". Pois, para "proteger a sociedade, ele deve, entre outras coisas, atuar dentro da ordem jurídica própria dessa mesma sociedade". Afirma, ainda, a necessidade de transformações profundas com solução de continuidade, de forma sistematizada com objetividade, mas sem a ilusão de que uma simples lei ou decreto vai resolver o problema. Diante disto, para ele, coloca-se como mister o processo "de mudança de mentalidade dos policiais, dos governantes e do próprio povo" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 4-5).

Pronunciou-se, ainda, Dalmo Dallari, contrário à militarização das polícias, ao afirmar "que a atividade policial é uma atividade administrativa essencialmente civil", ou seja, uma "atividade que incumbe ao Governo, à administração pública, de preservação da ordem interna. Essa atividade de preservação da ordem interna nada tem a ver com a atividade de natureza militar" (BRASIL, Comissão Especial de Segurança Pública, 1977, p.7). Indo além, o Professor Dallari procura demonstrar que os governos republicanos enfrentaram três problemas que acentuaram o caráter militar das polícias brasileiras: o primeiro deles diz respeito "à questão da restauração monárquica" (13); outro consistiu na ocorrência de conflitos entre a União e os Estados, que culminaram com a intervenção federal em diversos estados, no começo do século passado, levando alguns a formarem seus pequenos Exércitos para impedir a intervenção federal. O terceiro fato que explicaria o fortalecimento do caráter militar das polícias consistiu no

(...) aparecimento da chamada questão social. A partir de 1905, começam a eclodir grandes greve no Brasil. Então, coloca-se claramente o lema do partido republicano: 'A questão social é uma questão de polícia'. Porém, é uma questão de Polícia para ser combatida mediante repressão, violência. Assim, prepara-se o Exército também para enfrentar a questão social (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p.8 - 9).

Desse modo, afirma o Professor que foi consolidando-se "o Exército estadual, que é essa simbiose estranha de Polícia e Exército", com "esse caráter militar da Polícia" que, na constituição de 1946, foi reconhecida como "força auxiliar e reserva do Exército", sem que essa vinculação fosse revista em 1988 (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 9).

A exposição do Professor Dallari faz com que se reflita sobre a funcionalidade das Forças Armadas, ou da militarização das polícias, aos interesses de grupos civis. Em outras palavras, observa-se que a militarização da Polícia nos Estados, assim como a militarização da concepção de Segurança Pública parecem atender, também, aos interesses de governos civis que representam interesses de determinadas forças ou classes sociais, que estão em confronto com outras forças presentes na sociedade brasileira.

Neste sentido, ele chama a atenção para a necessidade de quebrar mitos incrustados na tradição brasileira, muitas vezes ressaltados com bastante evidência, como, por exemplo, o mito do "uso da Polícia como um serviço do Governo, do Governador ou mesmo das elites dominantes. Isso precisa ser modificado" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 5).

O Deputado Fernando Gabeira contribui com o debate a partir do pressuposto de que há uma demanda de maior respeito e promoção dos Direitos Humanos, apresentada pelas forças políticas internas assim como pela comunidade internacional. Considera que essa nova demanda representa o rompimento de

(...) um pacto histórico, segundo o qual, de um lado, era-se muito condescendente com a violência. Tínhamos um pacto que começa a desfazer-se, no bom sentido, ou seja, no que se refere aos Direitos Humanos e de uma maior eficácia da polícia (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p.38).

Continua o mesmo Deputado afirmando que, de certa maneira, o Brasil está importando "uma concepção hoje universalmente aceita, dos países chamados desenvolvidos, de respeito aos Direitos Humanos e de uma política eficaz" (BRASIL, Câmara dos Deputados, Comissão Especial de Segurança Pública, 1997, p. 38)

Apesar do relevante debate travado por essa Comissão Especial, não se chegou a apresentar alguma proposta clara quanto à arquitetura da política de Segurança Pública, que sinalizasse um processo de transição efetivo do velho modelo de segurança.

O debate acima, entretanto, gerou expectativas de mudanças fundamentais, consoante à distinção feita por Bova (1999), entre Segurança Pública e ordem pública, indicando que o uso abusivo da força física pela polícia se adéqua muito mais à noção de ordem pública, recorrendo à força militarizada, do que à Segurança Pública que se proponha respeitar e garantir os Direitos Humanos.

O Governo Federal, no que concerne ao documento Medidas Mínimas de Reforma da Segurança Pública - 1998, parece ter optado por não deixar resposta efetiva para o quadro de crise vivenciado pelos órgãos da Segurança Pública que respondesse aos reclamos da sociedade causados pela complexificação e ampliação dos problemas relacionados ao fenômeno da violência e da criminalidade.

Em outras palavras, segundo sugere Abranches (1987), os debates travados na sociedade sobre a necessidade de uma nova opção política para a Segurança Pública e de que o Estado brasileiro revisse sua intervenção nessa área, embora incorporada por alguns setores dos poderes públicos, não foram suficientes para que o governo revisse o velho desenho dessa política pública.

Apesar da intensificação dos reclamos da sociedade brasileira em relação à ineficiência, ineficácia e inadequação do velho modelo da Segurança Pública, após sua reeleição em 1998, Fernando Henrique Cardoso assume sem agendar uma resposta efetiva para a grave crise em que se encontrava mergulhada a Segurança Pública, embora tenha sido apresentada como um dos temas prioritários em sua segunda campanha eleitoral. Para Adorno (2003, p. 104) o referido governo:

(...) estava convicto de que, no domínio da Segurança Pública - como praticamente em todos os domínios de intervenção governamental -, os desafios à mudança não eram apenas de grande magnitude: mais do que isso, os agentes e as agências encarregadas de implementar a lei e a ordem e de garantir a Segurança Pública revelavam renitente capacidade de resistir às mudanças institucionais. As rupturas manifestavam-se aqui mais difíceis de serem asseguradas. Poderosos interesses incrustados na burocracia estatal, alguns advindo do regime autoritário, ainda ocupavam um espaço importante nos processos decisórios. Os governo civis que se seguiram ao fim da ditadura pouco se esmeraram no sentido de fomentar um novo quadro de funcionário, civis e militares, mais afinados com as demandas por Segurança Pública no contexto do Estado democrático de direito.

A falta de resposta para o problema da Segurança Pública contribuiu para que pesquisa realizada pelo Instituto Data Folha, entre 1996 e 2000, registrasse um crescimento da preocupação dos brasileiros com a Segurança Pública, apontada, no mês de junho de 2000, como um dos maiores problemas do país por 13% dos entrevistados, o maior percentual registrado até então. Destarte, a sociedade passa a exigir o pronunciamento do próprio Presidente, pois já não acreditava mais nas promessas de seus auxiliares, que não efetivavam qualquer medida concreta (Apud, ADORNO, 2003).

Em junho, no ano 2000, numa conjuntura política adversa, um caso de ação policial desastrosa, no Rio de Janeiro, tendo como desfecho a morte de uma refém e do seqüestrador (caso conhecido como o "seqüestro do ônibus 174"), com transmissão ao vivo pela mídia televisiva, acirrou os ânimos da sociedade brasileira contra a falta de medidas para a questão da Segurança Pública. Diante da repercussão do fato, o Presidente da República sentiu-se obrigado a pronunciar-se e firmar compromisso com a sociedade, prometendo a apresentação em breve de um programa de emergência.

O Presidente do Senado Antonio Carlos Magalhães, nessa ocasião, pronunciando-se sobre o ocorrido, voltou a defender a participação das Forças Armadas na Segurança Pública, pensamento também ventilado pelo Presidente da República ao expressar a necessidade de todos, "os governadores, o presidente da República, as forças de segurança, as Forças Armadas", darem-se as mãos para coibir a onda de violência. (Jornal Folha de São Paulo, on line, 2000)

Oito dias após o ocorrido, mais precisamente em 20 de junho de 2000, o Governo Federal respondeu politicamente à crise da Segurança Pública, apresentando à sociedade brasileira um documento que seria o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública - PNSP. O objetivo principal do Plano consistia em reformar "o sistema de Segurança Pública brasileiro, por meio de propostas que integrassem políticas de segurança, políticas sociais e ações comunitárias, de forma a reprimir e prevenir o crime e reduzir a impunidade, aumentando a segurança e tranqüilidade do cidadão brasileiro" (LIMA, 2000, p. 58). O Plano foi estruturado em 15 "compromissos a serem assumidos em âmbito do Governo Federal, e deste em cooperação com os Governos Estaduais, outros Poderes e Sociedade civil" (BRASIL, PNSP, 2000), de forma ampla, contudo sem definir prioridades, metas quantitativas e forma de monitoramento.

Para viabilização do Plano foi criado o Fundo Nacional de Segurança Pública - FNSP (14), ao qual os Governos Estaduais teriam acesso mediante a apresentação de projetos que convergissem para os objetivos do referido fundo. Cabia ao Conselho Gestor a análise dos projetos para liberação de recursos, considerando

(...) os seguintes resultados: I -redução do índice de criminalidade; II -aumento do índice de apuração de crimes sancionados com pena de reclusão; III -desenvolvimento de ações integradas das polícias civil e militar; e IV ­aperfeiçoamento do contingente policial ou da guarda municipal, em prazo pré-estabelecido (BRASIL, FNSP, 2001).

Segundo Arthur Costa e Bruno C. Grossi (2007), em boa parte dos convênios não foram observados esses condicionantes e, conseqüentemente, a política ficou focada no repasse de recursos financeiros aos Governos Estaduais, distanciando-se dos objetivos propostos pelo Plano Nacional de Segurança Pública, que teve dois anos de vigência.

3.3. O novo Plano Nacional de Segurança Pública: conteúdo e forma

Em outubro de 2002, período do processo eleitoral de escolha para o cargo de Presidente da República, o Instituto Data Folha realizou uma sondagem sobre a aprovação da sociedade ao governo Fernando Henrique Cardoso segundo a qual, no que concerne à questão da Segurança Pública, 54% dos entrevistados avaliaram negativamente o governo (COUTINHO, 2003). Em outros termos, tal resultado revelava que o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública não tinha respondido às expectativas da sociedade brasileira com relação ao problema da violência e da criminalidade. Mesmo porque, também, seria muito pouco tempo de sua vigência para aferir qualquer resultado.

Os dados relativos a 2002, referentes aos casos de homicídios praticados por armas de fogo, no Brasil, apresentados na tabela abaixo, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2003, p. 89), se comparado a outros países, revelam a gravidade do problema relacionado à Segurança Pública, nesse período.

Taxa de homicídios por projétil de arma de fogo (PAF) de países selecionados

No bojo de uma crise social, em que o problema da violência e a da criminalidade ganhava destaque na sociedade brasileira, transcorreu o processo eleitoral, no qual o representante do Partido dos Trabalhadores, Luis Inácio Lula da Silva, totalizando 61% (LUNA e KLEIN, 2007, p.52) dos votos dos eleitores ganhou a disputa política para a Presidência da República. Cônscio da relevância social alcançada pela temática da Segurança Pública, o candidato eleito, ao assumir o Governo Federal, converteu o "Projeto Segurança Pública para o Brasil", em um novo Plano Nacional de Segurança Pública -PNSP, a ser implementado durante seu mandato, no período 2003 - 2006. Elaborado sob a Coordenação do Instituto de Cidadania, o projeto tinha como objetivo "contribuir para que fosse devolvido aos cidadãos de nosso país o sagrado direito democrático à segurança pessoal, familiar e comunitária" (INSTITUTO DE CIDADANIA, 2002, p.3). Segundo os termos do próprio projeto, sua elaboração deu-se a partir de um processo de discussões, estudos, seminários e debates, envolvendo a participação de "(...) amplo leque de especialistas em Segurança Pública, membros dos Três Poderes nas três esferas administrativas, lideres de comunidades, associações representativas e centros universitários" (INSTITUTO DE CIDADANIA, 2002, p. 3).

Convém destacar que, desse processo de elaboração, dentre outros participaram o presidente eleito, que integrava o referido Instituto, chegando a subscrever a apresentação da primeira versão do projeto, bem como o advogado Márcio Thomaz Bastos e o professor Luiz Eduardo Soares, que assumiram, respectivamente, o cargo de Ministro da Justiça e o de Secretário Nacional de Segurança Pública do novo governo.

O citado projeto, convertido no (novo) Plano Nacional de Segurança Pública - PNSP (15) elege como elementos fundamentais na sua constituição os seguintes princípios:

1) Direitos Humanos e eficiência policial são compatíveis entre si e mutuamente necessários; 2) O Sistema de Justiça Criminal deve ser democrático e justo, isto é, orientado pela eqüidade, acessível a todos e refratário ao exercício violento e discriminatório do controle social; 3) Ação social preventiva e ação policial são complementares e devem combinar-se na política de segurança; 4) Polícias são instituições destinadas a servir aos cidadãos, protegendo direitos e liberdades, inibindo e reprimindo, portanto, suas violações; 5) Às Polícias compete fazer cumprir as leis, cumprindo-as; 6) Policiais são seres humanos, trabalhadores e cidadãos, titulares, portanto, dos Direitos Humanos e das prerrogativas constitucionais correspondentes às suas funções (BRASIL, Ministério da Justiça/SENASP, slides, 2007)

Os seus princípios sinalizam como eixo estruturante o Estado Democrático de Direito, consoante o estabelecido na Constituição. Por conseguinte, o Plano prima pelo princípio de justiça, dando relevo à necessidade de observância à igualdade de cada cidadão quanto ao direito à segurança; ao mesmo tempo em que renega práticas de Segurança Pública que empregam meios violentos, fora dos parâmetros legais e que se inspirem em preconceitos de qualquer natureza, além de enfatizar a indissociabilidade entre prática policial e Direitos Humanos.

Ainda com base em seus princípios, constata-se que a nova política amplia e demarca o seu campo de atuação para além da ação repressiva, quando ressalta a importância da prática preventiva em Segurança Pública, como também enfatiza a necessidade de vinculação da política de Segurança Pública com as demais políticas sociais.

Consoante às características balizares do novo plano, em momento algum deve o Estado ser visto como sujeito de direito da Segurança Pública, remetendo-se, desse modo, à quebra da simbiose, até então preservada na Segurança Pública brasileira, entre segurança nacional e Segurança Pública. Portanto, considerando que a Constituição universalizou o acesso ao direito à Segurança Pública, esta política pública tomou como sujeito de direito todos os cidadãos, indistintamente, precedendo a segurança do Estado.

Ademais, o Plano em discussão reconhece que em "nosso país, a violência criminal atinge todos os segmentos sociais, dos mais ricos aos mais pobres tornando a insegurança uma experiência amplamente compartilhada" (BRASIL, PNSP, 2003). Adverte, todavia, que os delitos atingem as vítimas de forma diferenciada, segundo sua condição socioeconômica e cultural. A esse respeito observa-se que os "crimes contra o patrimônio atingem, preferencialmente, os estratos sociais superiores e os crimes contra a pessoa" considerados os mais graves, do tipo "homicídios dolosos, vitimam, sobretudo, os mais pobres, principalmente os jovens de 15 a 24 anos ou de 14 a 29". Acrescenta-se, ainda, o recorte étnico e etário, já que as vítimas são na maioria "do sexo masculino e negros" (BRASIL, PNSP, 2003, p. 4 -5). O Plano, porém, vai além, sem perder a referência ao caráter universal da (in)segurança, demonstrando a preocupação com as diferenças, sobretudo quando enfatiza as mulheres, os idosos, os homossexuais, as crianças e adolescentes como grupos vulneráveis a serem considerados de forma particular em programas de prevenção à violência. Fica, assim, constatado que houve preocupação da nova política em considerar as exigências sociais específicas, conforme sugere Bobbio (1992).

A nova política, portanto, além de redirecionar a definição do sujeito de direito da segurança para o cidadão, inclui, explicitamente e de maneira inovadora, como sujeitos de direitos os cidadãos que historicamente estiveram deles privados. Essa preocupação passa pela reversão de valores autoritários e excludentes, a partir dos quais os interesses de alguns, política e economicamente privilegiados, preponderavam em detrimento das necessidades da maioria dos cidadãos, situados em condições políticas, econômicas e sociais desfavoráveis. Tal reversão era indispensável numa sociedade em que, mesmo pretendendo inspirar-se no discurso democrático que prega a defesa dos interesses da maioria, a tendência sempre foi encobrir as necessidades de segurança de grande contingente populacional classificado na condição do "outro", inferiorizado, principalmente por ser valorizada a cultura da classe dominante apresentada como superior, como explica Habermas (2007). Em outras palavras, pode-se afirmar que a cultura autoritária - política e social - sustentada pela centralização de poder e apoiada na centralidade no monopólio da violência, pode constitui-se num bloqueio às inovações apresentada por essa nova política pública, que se inspira no respeito e promoção dos Direitos Humanos.

Em harmonia com os princípios supramencionados, são colocadas as metas do Plano que consistem em:

1) Promover a expansão do respeito às leis e aos Direitos Humanos; 2) Contribuir para a democratização do Sistema de Justiça Criminal; 3) Aplicar com rigor e equilíbrio as leis no sistema penitenciário, respeitando os direitos dos apenados e eliminando suas relações com o crime organizado; 4) Reduzir a criminalidade e a inSegurança Pública; 5) Controlar o crime organizado e eliminar o poder armado de criminosos que impõem sua tirania territorial a comunidades vulneráveis e a expandem sobre crescentes extensões de áreas públicas; 6) Bloquear a dinâmica do recrutamento de crianças e adolescentes pelo tráfico; 7) Ampliar a eficiência policial e reduzir a corrupção e a violência policiais e, 8) Valorizar as polícias e os policiais, reformando-as e requalificando-os, levando-os a recuperar a confiança popular e reduzindo o risco de vida a que estão submetidos (BRASIL, PNSP, 2003).

Percebe-se que se levou em consideração, na construção dessas metas, o complexo problema da violência e da criminalidade, considerando-se, portanto, a amplitude do objeto de intervenção, além de incorporar a necessidade de mudanças dos órgãos que integram a polícia. A amplitude do alcance das metas tem relação com as múltiplas faces do fenômeno da violência e da criminalidade, considerado como:

(...) parte de uma constelação mais ampla de práticas, circunstâncias históricas, condições institucionais e relações sociais violentas. As interfaces e superposições com outras problemáticas são tantas e tão relevantes, que se torna imperioso tratá-las, definindo as como pertinentes ao âmbito de abrangência do objeto principal (BRASIL, PNSP, 2003, p.4).

Constata-se, portanto, que o diagnóstico que dá sustentação ao plano foi elaborado considerando os problemas de forma contextualizada, preocupando-se em relacionar aspectos macrossociais e microssociais, dando a relevância devida aos aspectos socioeconômico e cultural que perpassam a realidade, assim como a complexidade do objeto específico da Segurança Pública: violência e criminalidade.

No aspecto macro-social, destacam-se valores veiculados pelo capitalismo, sobretudo a valorização de "status que brilha no consumo exibicionista", como fatores negativos para a construção de uma sociabilidade democrática, assim como para o sentimento de solidariedade e laços afetivos, que possibilitem o reconhecimento e o pertencimento social, essenciais para o fortalecimento da noção de cidadania democrática (BRASIL, PNSP, 2003, p. 6).

O novo plano estabelece um conjunto de ações, culminando com o modelo de planejamento racional de política pública, no que concerne às fases de diagnóstico, elaboração, implementação e monitoramento (SAPORI, 2007). Ademais, apresenta consistência teórica, rompendo com velhos paradigmas, ao mesmo tempo em que adota como pressupostos inovadores os temas democracia e Direitos Humanos, considerados antagônicos ao velho modelo autoritário de Segurança Pública. Nessa perspectiva, a nova política adota uma abordagem interdisciplinar, perpassado os aspectos sociológico, filosófico, econômico, antropológico, cultural, psico-afetivo, jurídico, político, administrativo.

Destaca-se, ainda, que o novo plano pontua as prioridades a partir da relação causa-efeito, tendo como foco o sujeito de direito da política pública, possibilitando estabelecer-se mais democraticamente a relação entre Estado e Sociedade, remetendo a Segurança Pública, segundo expressão de Boaventura de Sousa Santos (1999), ao tempo e espaço da cidadania. Essa orientação fica patente em seu enunciado:

Um governo comprometido com a justiça e o exercício da ética na política, determinado a aprofundar a democracia, incorporando os brasileiros mais pobres à cidadania plena, estendendo a todos os homens e mulheres de nosso país os direitos civis e os benefícios do Estado de Direito Democrático, terá de dedicar-se com prioridade ao combate à violência, em todas as suas formas. Da fome à tortura, do desemprego à corrupção, da desigualdade injusta à criminalidade (BRASIL, PNSP, 2003, p.4).

Apesar da base de sustentação política e teórica do Plano convergir para um papel de preponderância do Estado, com vistas à garantia e ao respeito dos direitos, ele volta-se, também, para a sociedade, considerando o grave problema do esgarçamento do tecido social, apontando para a necessidade de valores democráticos, "esteio da sociabilidade cidadã e do convívio humano cooperativo", sem deixar de lado a necessidade de restabelecer-se "a confiança nas instituições públicas. Sem credibilidade, elas perdem as bases de sua legitimidade, o que traz riscos aos alicerces da democracia" (BRASIL, PNSP, 2003, p. 4).

Com vistas à consecução de seus objetivos, a nova política elegeu duas diretrizes básicas. Uma delas diz respeito a Programas de Reforma das Instituições de Segurança, definindo como ações prioritárias: "valorização e formação policial; estruturação e modernização da polícia; gestão do conhecimento; Prevenção; Reorganização institucional; controle externo e participação social". A segunda diretriz direciona-se a efetivação de Programas de Redução da Violência, dando primazia aos projetos e ações voltados para

(...) o gerenciamento de crises e conflitos; redução da violência doméstica e de gênero; redução do racismo, da homofobia e da misoginia; administração legal do uso da força policial; proteção e apoio a vítimas e testemunhas do crime; homicídios e crime organizado e repressão qualificada (BRASIL, Ministério da Justiça, slides, 2007).

Os programas, projetos e ações que compõem essas diretrizes, recaem sob a competência dos Estados, responsáveis pela Segurança Pública nas unidades federativas. Por conseguinte, devem elaborar seus planos de Segurança Pública, em conformidade com as orientações gerais, previamente estabelecidas pela Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP, órgão responsável pela coordenação da política nacional, adotada pelo Governo Federal.

Convém abrir um parêntese para lembrar, que durante o regime militar, a centralização do poder, não permitia que os Governos Estaduais e municipais tivessem real autonomia política. Ou seja, suprimidos os direitos políticos não havia eleições, a gestão das políticas públicas nos Estados era diretamente dirigida pelo Governo Federal ou em conformidade com as suas determinações. Os ocupantes dos órgãos governamentais das unidades federativas representavam os interesses do poder central, por vezes exercendo claramente o papel de interventores.

Durante "o regime militar, as relações intergovernamentais do Estado brasileiro eram, na prática, muito mais próximas às formas que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações" (ARRETCHE, 1999, p.113). Em meados dos anos mil novecentos e sessenta, foi feita uma reforma fiscal, concentrando os principais tributos nas mãos do Governo Federal, de modo que, além da falta de autonomia política, os governadores e prefeitos também não dispunham de autonomia fiscal. A centralização financeira, portanto, contribuía ainda mais para a centralização política. A partir dos anos mil novecentos e oitenta, com a retomada do processo eleitoral/democrático, somando-se a descentralização fiscal da nova Constituição Federal, ocorreram mudanças na relação entre as esferas de poder, sendo reconquistado, em grande parte, o poder político dos Governos Estaduais e municipais havendo, portanto, uma recuperação das bases do Estado federativo, no Brasil (ARRETCHE, 1999, p. 114).

Com a retomada das bases do sistema político federativo, redefiniu-se a competência dos Governos Estaduais no que diz respeito à gestão das políticas públicas. Situam-se, aqui, as bases do processo de descentralização da política de Segurança Pública preconizada na Constituição de 1988.

Por conseguinte, merece destaque que com a autonomia das Unidades Federativas, a implementação de qualquer política pública, criada pelo Governo Federal, em cada estado fica a depender da vontade política e do empenho dos seus governadores. Levando-se em consideração essa questão, a criação de uma nova Política Nacional de Segurança Pública, pelo Governo Federal, por si só, não surtirá efeito algum se não for criada alguma estratégia política para obter a cooperação dos governos estaduais, com vistas à sua incorporação e implementação. Segundo pensamento de Arretche, nesses casos, torna-se indispensável a criação de estratégia política que estimule a cooperação entre os governos das distintas esferas de poder.

3.4. O "pacto pela democratização da Segurança Pública": Sistema Único de Segurança Pública

Os Estados brasileiros foram convidados pelo Governo Federal a incorporarem-se à nova Política Nacional de Segurança Pública, através do programa Sistema Único de Segurança Pública - SUSP. Segundo Luiz Eduardo Soares (2006), a vinculação dos Governos Estaduais ao programa representava o estabelecimento de um "pacto nacional pela democratização da Segurança Pública".

Esse pacto, por sua vez, foi firmado mediante a assinatura, por parte dos governadores, de um "Protocolo de Intenções" (16), instituído pela Secretaria Nacional de Segurança Pública - Ministério da Justiça. Como forma de substantivar o pacto, os governadores estaduais tiveram de apresentar um Plano Estadual de Segurança Pública ­PESP, baseando-se em princípios, diretrizes e metas consoantes às orientações do SUSP, e, que se encontram vinculados ao o novo Plano Nacional de Segurança Pública. O fluxograma abaixo demonstra a interligação entre o Programa e a nova política nacional.

Criação do Sistema Único de Segurança Pública

Fonte: BRASIL. Ministério da Justiça \SENASP, slides, 2007.

Ao se incorporarem ao SUSP, os governadores estaduais em contrapartida credenciavam-se à obtenção de recursos financeiros do Fundo Nacional de Segurança Pública (17) -FNSP. A exemplo da estratégia adotada pela política de segurança do governo Fernando Henrique Cardoso, o referido fundo foi convertido em mecanismo de viabilização financeira da nova política de segurança nos estados. Dessa vez, porém, este era vinculado à efetivação do SUSP, sendo usado como instrumento de motivação para os que os governos se incorporarem ao "pacto nacional pela democratização da segurança Pública'.

Diante da falta de recursos financeiros para a Segurança Pública nos estados, tem sido comum essa política ficar com pequena fatia do orçamento dos governos estaduais, muitas vezes limitada ao pagamento de pessoal. Por conseguinte, considera-se que a estratégia de vincular o repasse de recursos do referido fundo à apresentação de um Plano Estadual de Segurança Pública pelos governadores foi uma decisão política conveniente. Contudo, para o sucesso de uma política da envergadura e complexidade dessa nova política de Segurança Pública, acredita-se que essa estratégia por si só representa muito pouco.

Considerando-se, entretanto, a relevância social alcançada pela questão da segurança conforme enunciado do próprio Plano nacional, chegando-se a colocar a nação diante do dilema "civilização ou barbárie", os esforços para redução da violência e da criminalidade devendo "transcender o aspecto ideológico ou partidário" (BRASIL, PNSP, 2003, p. 28), talvez houvesse a esperança de se contar com a responsabilidade e o empenho de todos os governantes.

Certamente, segundo essa expectativa, apoiando-se num discurso suprapartidário e deixando de lado aspectos político-ideológicos, deflagrou-se um processo de sensibilização, através do Ministro da Justiça e do Secretário Nacional de Segurança Pública, objetivando garantir o alcance nacional da nova política, visando, sobretudo, a obtenção da cooperação dos governadores a partir da vinculação e da implementação do SUSP.

Tomado como programa operativo da nova política, o SUSP traz como função primordial viabilizar o processo de mudança da Segurança Pública, em nível nacional, adotando os princípios e diretrizes da nova política, com a incumbência de atingir as metas nela traçadas.

As mudanças indicadas pelo Sistema Único de Segurança Pública são de caráter administrativo e constitucional, ficando, portanto, a depender do empenho dos governos federal, estadual e municipal, mas, também carecendo da colaboração do parlamento, haja vista a necessidade de sua formalização e de outras alterações constitucionais nele apontadas.

O SUSP parte do pressuposto de que sem gestão integrada torna-se impossível uma política pública eficiente, além de que a complexidade dos problemas relacionados à Segurança Pública requer articulação sistêmica. Cabe aos estados que aderirem ao SUSP promover a articulação dos órgãos de Segurança Pública, sem dispensar a colaboração de gestores de outras políticas públicas, vinculadas às diferentes esferas do poder público.

Portanto, para que fosse garantida essa integração dos órgãos policiais e a articulação com órgãos de outras áreas, até mesmo com o gestor municipal, tendo como fulcro a prevenção e o controle da criminalidade, o novo plano orienta-se no sentido de uma gestão compartilhada. Para tanto, defende a criação de um órgão articulador, denominado de Gabinete de Gestão Integrada - GGI.

Imbuído do papel de gestor do Sistema Único de Segurança nos estados, ao constituir-se em coordenador da política de segurança nas unidades federativas, o referido Gabinete deve ser formado pelo Secretário de Segurança Pública, no papel de membro e coordenador, por dirigentes das Polícias Civil, Militar, Federal, Rodoviária Federal, do Corpo de Bombeiros, além contar com representantes do Sistema Penitenciário, do Ministério Público, do Poder Judiciário e da Secretaria Nacional de Segurança Pública - SENASP. Outros atores sociais ou partes interessadas devem ser convidados a participarem de suas reuniões, dependendo das questões em pauta (BRASIL, Ministério da Justiça\SENASP, slides, 2007).

De acordo com as propostas de mudanças sugeridas pelo SUSP sem incidir em alteração da Constituição, ou seja, dependendo apenas da vontade política do Governo e dos dirigentes da política, as medidas a serem tomadas direcionam-se para a criação do próprio GGI; unificação das academias e escolas de formação dos profissionais de segurança; integração territorial de ambas as polícias, nos Estados; criação de órgão integrado de informação e inteligência policial; corregedoria única; programa integrado de saúde mental para os policiais; proteção à integridade física do policial; obediência aos dispositivos regulamentadores que proíbem a participação de policiais nas empresas de segurança privada; proibição de que policiais, que participaram de tortura ou colaboram com a sua prática, venham a ocupar cargos de confiança ou de direção do Sistema Integrado de Segurança Pública; criação de grupos unificados de mediação de conflitos; criação de ouvidorias autônomas e independentes.

Afirma o Plano, "que as mudança mais profundas na Segurança Pública, que demarcarão o fim do modelo de polícia criado nos períodos autoritários, exigem o estabelecimento de novo marco legal". Segundo esse entendimento, o SUSP indica que a longo prazo seja criada uma ou várias polícias estaduais de ciclo completo, subordinado ao poder civil. Daí porque são indispensáveis mudanças constitucionais que fomentem o novo modelo de polícia nos Estados. Dentre essas mudanças são apontadas: 1) extinção dos tribunais e auditorias militares estaduais; 2) Lei Orgânica Única para as polícias estaduais; 3) desvinculação entre as polícias militares e o Exército; 4) investigação preliminar sem indiciamento; 5) estabelecimento de vencimento básico nacional para as polícias; 6) ouvidorias de polícias autônomas e independentes (BRASIL, PNSP, 2003, p. 52 - 54).

Seria inaceitável pensar num processo de mudança de uma política pública, sobretudo quando envolve aspectos que perpassam a forma e o conteúdo, sem incidir em alterações dos órgãos responsáveis pela execução da política. Consoante essa afirmativa, considera-se que as propostas de mudanças destinadas às polícias militares e civis devem ser consideradas como estruturantes para a implantação do SUSP.

Com relação à polícia civil, destaca-se aqui como recomendação do SUSP o resgate do seu caráter técnico-científico, de forma que se rompa com a tradição autoritária, que prioriza a violência e a tortura como meio de investigação. Neste sentido, o Plano afirma que: "Quanto mais técnica e ciência na investigação, menos violência" (BRASIL, PNSP, 2003, p. 40). Ressalta-se, ainda, a determinação relativa à reestruturação das delegacias, sendo proposta a extinção das carceragens e a criação de Programas de Assistência Jurídica e Social nas delegacias distritais, com profissionais especializados não pertencentes à polícia.

Essa proposta justifica-se diante do fato de grande parte da demanda que chega às delegacias não ser de caráter estritamente criminal, mas sim social, tendo como foco conflitos interpessoais que quando não resolvidos impulsionam a práticas criminais. A esse respeito, remete-se ao estudo, realizado nas delegacias do Rio de Janeiro por Ficher (1985). Em outros termos, isso implica dizer que a sociedade ressente-se da falta de um serviço de cunho jurídico-social, situado próximo à comunidade, que desempenhe o papel de orientação, encaminhamento, fazendo a mediação de conflitos interpessoais quando necessário.

Quanto às propostas do SUSP para a Polícia Militar, direcionam-se para a valorização da qualificação do policiamento preventivo e ostensivo, além de mudanças estruturais que propõem: 1) efetivação do policiamento comunitário; mudança dos Regulamentos Disciplinares, que reproduzem o documento disciplinar do Exército brasileiro, do período da ditadura; 2) proposição de redução dos graus hierárquicos, que também reproduzem a estrutura do Exército, que com exceção do grau de general, compõem-se de onze níveis (soldado, cabo, 1º, 2 º e 3 º sargento, subtenente, 1 º e 2 º tenente, capitão, tenente-coronel e coronel); 3) desmilitarização do Corpo de Bombeiros e sua vinculação à Defesa Civil do Estado; 4) redução do quantitativo de policiais nas funções administrativas já que, segundo o Plano, têm-se priorizado excessivamente as estruturas burocráticas, em detrimento da função fim da Polícia Militar, contribuindo para a diminuição do efetivo empregado diretamente na prática de Segurança Pública e, 5) controle rigoroso do uso letal da arma de fogo. (BRASIL, PNSP, 2003, p.)

Dentre essas mudanças indicadas para a Polícia Militar destaca-se, aqui, a valorização da prevenção, através do policiamento comunitário e do controle rigoroso do uso da força, em função desses temas apresentarem maior aproximação com o objeto de estudo da presente pesquisa e por constituírem-se como fulcro da discussão do processo de democratização da política de Segurança Pública.

A prevenção do crime e da violência, segundo Mesquita Neto (2003)

(...) deve ser compatível com e contribuir para o fortalecimento da democracia e dos Direitos Humanos, do desenvolvimento sustentável, e da cooperação internacional. Sem democracia, Direitos Humanos, desenvolvimento sustentável e cooperação internacional, políticas, programas e ações de prevenção não poderão contribuir efetivamente para a redução do crime e da violência (MESQUITA NETO, 2003, p.290).

Adverte o novo Plano Nacional de Segurança Pública (BRASIL, PNSP, p. 38) que, a partir dos anos 1980, a "combinação entre as crises moral, cultural, social, econômica e política gerou um contexto inteiramente diferente", passando a demandar uma polícia de novo tipo, capaz de aplicar novas formas de fazer Segurança Pública. Por conseguinte, ao invés de focar-se a atuação da polícia no combate direto ao crime, suscita a valorização da prevenção. A ação da polícia deixa de ser valorizada apenas pela agilidade do atendimento, para destacar-se por sua capacidade de "controle e redução da criminalidade". Portanto, deixa de ser exclusiva a atuação em segurança focada nos atos criminosos, passando a ganhar relevância as práticas sociais que propiciaram o crime e os seus condicionantes.

Nesta perspectiva, Paulo Mesquita Neto (2003) defende que a eficácia das políticas e dos programas de prevenção do crime e da violência fica a depender da clareza e da precisão dos seus objetivos, devendo ser pensados de acordo com as especificidades dos crimes e das formas de violência, levando-se em consideração o contexto social ao qual se vinculam Indo além, Mesquita recomenda que a atuação sobre os fatores de riscos e de proteção que incidem sobre crimes e violências tenha caráter multidisciplinar e multisetorial.

É importante chamar a atenção para o fato de que, assim como é dever do Estado garantir a segurança do cidadão, prevenir o crime e a violência, também se constitui responsabilidade do Estado, devendo essa prática, todavia, ser pensada de forma compartilhada com a sociedade. Isto é, a prevenção requer necessariamente a participação social. Assim, segundo o novo plano de segurança, ao "contrário da aposta de afastamento entre policiais e população, a nova abordagem recomenda o diálogo com a sociedade", devendo ser estimulada a participação da sociedade no processo de elaboração, implementação e monitoramento da política preventiva (BRASIL, PNSP, 2003, p.38).

Nesta perspectiva, faz sentido destacar que a participação da sociedade não deve ser entendida como de mero denunciante/informante da polícia, como tem sido a prática habitualmente suscitada por alguns profissionais da área. O papel da sociedade civil, como sugerem Coutinho (2003) e Sales (2008), está relacionado, sobretudo, ao exercício da cidadania democrática, consoante a sua atribuição constitucional de agente da cidadania, exercendo o controle social sobre o Estado, ao mesmo tempo em que deve ser partícipe do processo de elaboração e implementação das políticas. Só assim a Segurança Pública deixará de ser vista como um setor estatal inatingível pela sociedade, sem controle social e dispensado da observância às leis, possibilitando que essa política pública contemple, de fato, a dimensão política dos Direitos Humanos.

De acordo com essa afirmativa, pensar a política preventiva em Segurança Pública corresponde à quebra do paradigma tradicional, despindo-se os órgãos de Segurança Pública da impenetrável armadura de que estiveram revestidos, distanciando-os da sociedade. Isso representa o expurgo de elementos de cunho autoritário na medida em que a política tende a se equacionar ao Estado Democrático de Direito.

Assim, o novo Plano Nacional de Segurança Pública dá destaque à prevenção social, nos termos de Mesquita Neto (2003) atribuindo papel importante ao policiamento comunitário. Para esse autor (2003, p. 261), o policiamento comunitário, assim como o policiamento orientado para a resolução de problemas, "direciona-se para a redução dos fatores de risco que contribuem para aumentar a incidência de crimes e violências na sociedade", mas uma característica peculiar do policiamento comunitário é a de enfatizar a importância do contato da polícia com a comunidade para a redução de fatores conjunturais/situacionais que aumentam o risco de crimes na sociedade.

O envolvimento da sociedade, portanto, em práticas preventivas de Segurança Pública dessa natureza, fica a depender da credibilidade e/ou legitimidade da polícia, abrindo-se o espaço de sua participação apenas à medida que a polícia quebrar velhos paradigmas, incorporando a concepção da Segurança Pública numa perspectiva democrática.

Vale sinalizar, que a prevenção social contra o crime e a violência entendida como "estratégia de prevenção centrada em ações dirigidas à redução da pré-disposição dos indivíduos e grupos para a prática de crimes e violências na sociedade", segundo Mesquita Neto (2003, p. 311), tem sido pouco valorizada, no Brasil. Mesmo assim, algumas experiências têm sido realizadas, observando-se, contudo que não existe fórmula pronta, aplicável a qualquer situação, já que cada realidade indicará a política mais adequada, de acordo com os fatores de riscos de morte e ameaças ao bem-estar social do cidadão, levantados a partir de diagnóstico previamente realizado.

Merece destaque, contudo, a experiência de prevenção em Segurança Pública realizada no Município de Diadema - São Paulo, pela sua capacidade de articular as questões de Segurança Pública com as várias políticas sociais. Dentre outras experiências de municípios do mesmo estado, segundo a Professora de Serviço Social, da Universidade Federal Fluminense, Miriam Guindani (2005), que realizou estudo sobre essa questão, teria esse município alcançado o maior impacto nas ações destinadas à redução da violência e da criminalidade.

Para Mesquita Neto (2003, p. 275), alguns tipos de políticas e programas apresentam menor possibilidade de prevenir o crime e a violência, destacando-se alguns aspectos que contribuem para o insucesso da prevenção: "a) políticas e programas apoiados simplesmente em ações de polícia e de justiça; b) políticas e programas desenvolvidos sem planejamento, sem monitoramento e sem avaliação do processo de sua implementação e de seus resultados; e c) políticas e programas sem a participação da sociedade". Segundo o autor, mesmo que essas políticas e programas possam ter algum resultado positivo, dificilmente serão sustentáveis, permanecendo incipientes e passageiros. Esse tem sido um fato corrente na realidade brasileira, na qual as experiências de prevenção são, em geral, pontuais e não têm continuidade.

Outra proposta do Plano destacada aqui diz respeito ao controle rigoroso do uso da força, indispensável a todas as polícias num Estado Democrático de Direito. A referência que se faz ao controle do uso da força quando se associa à temática Direitos Humanos, via de regra, remete-se à repressão qualificada (18) ou "aos princípios básicos sobre o uso da força e das armas de fogo por agentes da lei da Organização das Nações Unidas - ONU" (CERQUEIRA, DORNELLES, 1998, p.68). Esse último caso serviu de base ao novo Plano Nacional de Segurança Pública.

Com vistas à defesa e à garantia dos direitos do cidadão, em qualquer sociedade, como argumentam Cerqueira e Dornelles (1998, p. 68), o Estado tem a prerrogativa de diversos poderes. O policial, ao fazer uso desses poderes, via de regra, produz um efeito imediato e direto sobre os direitos e liberdades de determinado cidadão considerado responsável pela violação do direito de outro. Contudo, esses autores alertam para o fato de que, junto à prerrogativa concedida ao policial para coibir a prática de violação de direitos, impõe-se-lhe "uma grande responsabilidade para garantir que esta autoridade seja exercida legalmente e eficazmente".

O uso abusivo da força pelo policial, portanto, contrapõe-se aos princípios em que se baseiam os Direitos Humanos. Daí decorre o empenho da Organização das Nações Unidas em criar princípios e padrões internacionais que sirvam de parâmetro para os profissionais da Segurança Pública. Esses parâmetros têm como objetivo conciliar a prática de Segurança Pública com a garantia dos Direitos Humanos dos próprios policiais e, sobretudo, com a proteção dos direitos da sociedade, em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com o Estado Democrático de Direito.

Nessa perspectiva, os princípios fundamentais a serem perseguidos, em conformidade com esses padrões são os de necessidade e proporcionalidade. "Estes princípios exigem respectivamente, que a força somente seja usada pela polícia quando estritamente necessário para cumprir a lei" (CERQUEIRA; DORNELLES, 1998, p. 68).

O documento da ONU, determinando padrões internacionais para o uso da força policial, destaca que os policiais devem usar meios não violentos como primeira tentativa; que o uso de arma de fogo só é permitido na autodefesa ou na defesa de outros, contra a ameaça iminente de morte; que os governos devem adotar, implantar, e constantemente rever regras que controlem o uso da força e armas de fogo. Mesmo assim, advertem Cerqueira e Dornelles (1998), deve haver regras e regulamentação específica sobre o uso de armas de fogo pelos policiais.

No tocante à normatização do uso da força pelos policiais, ou ao tão propalado poder de polícia, percebe-se que há uma fragilidade em termos legais, em que pese a relevância da matéria, uma vez que o assunto não foi contemplado na Constituição em vigor. Como mostram Eduardo Paes Machado e Ceci Vilar Noronha (2002, p. 226), a "regulamentação do uso da força e armas de fogo, no Brasil, é feita pelas normas do Direito penal e dispositivos disciplinares dos corpos policiais."

No Código Penal Brasileiro, considerado tanto pela esquerda como pela direita, por razões diferentes, em dissonância com a realidade (19), a referência a esse assunto é feita no art. 23, de forma elementar, ao afirmar que o profissional de Segurança Pública pode fazer uso da arma de fogo, ou empregar a força, desde que se observe a legalidade, a legitimidade e a licitude da ação. Mesmo assim, advertem os autores supramencionados que "todo excesso, desproporcionalidade e ação desnecessária constitui conduta tipificada como criminosa" (MACHADO; NORONHA, 2002, p. 226).

Esse tema foi trabalhado por Luiz Eduardo Soares (2006) em torno da expressão repressão qualificada. De princípio, alega o autor que não há como fugir da realidade semântica: repressão significa limitação da liberdade, contudo adverte que nenhuma democracia deve opor-se à repressão policial quando ela se exerce em defesa da garantia dos Direitos Humanos. Daí, a necessidade de enfrentar essa discussão e fortalecer ações para que seja eliminado o abuso das práticas repressivas, também caracterizadas como violação de direitos e considerada ainda mais grave por tratar-se de violação de direitos praticada pelo Estado. Como sugere esse autor, a repressão deve ser vista como um instrumento de controle social, indispensável numa sociedade democrática, a exemplo de outras políticas públicas. Todavia, por se tratar de um meio de restrição da liberdade, que é considerada como o bem maior para os Direitos Humanos, o uso desse meio deve ser definido e monitorado pela sociedade, ao mesmo tempo em que o uso abusivo da repressão deve ser renegado quando empregado sem observância dos parâmetros legais, como se vivêssemos em uma sociedade sem lei e/ou sob um Estado autoritário, que tudo pode.

Coloca-se, portanto, como indispensável que a sociedade, contando com a colaboração dos centros universitários e de pesquisa, encare séria e profundamente a problemática da repressão, ou, em outras palavras, da ação policial repressiva, tendo por referência a sua qualificação e o seu controle em consonância aos princípios Constitucionais e aos instrumentos jurídicos internacionais referentes aos Direitos Humanos, subscritos pelo Brasil. Como observa Soares (2006), é preciso reconhecer que convivemos com leis, com limites e que a ação repressiva qualificada da polícia se faz necessária quando se colocam em questão os direitos, as liberdades e as conquistas sociais.

Por conseguinte, há de se reconhecer, nas ações legítimas de uso da força policial, uma dimensão favorável aos cidadãos. O problema que se coloca fortemente em nossa realidade social é, porém, a supervalorização da exploração abusiva do monopólio da violência, sem observância do que fora determinado previamente como poder legítimo, atribuído pela sociedade ao Estado, com vistas à garantia da Segurança Pública num Estado Democrático de Direito, acompanhada, por outro lado, da omissão das forças repressivas quando se trata de coibir violações dos Direitos Humanos dos setores mais vulneráveis da sociedade brasileira.

Ignorar essa realidade equivaleria a legitimar o vácuo com relação à garantia dos Direitos Humanos por parte desse Estado, sendo tacitamente permitido que esse vazio fosse substituído pela ação violenta, em nome da prerrogativa do monopólio da força. O mais grave é que a legitimação da prática violenta, nessas condições, coincide com a negação do conjunto dos Direitos Humanos.

Daí, porque se faz necessário que a concepção e a prática da Segurança Pública sejam associadas ao conjunto dos Direitos Humanos, perpassando os direitos civis, sociais, políticos e culturais. Neste sentido, é que a prevenção passa a ser o foco da democratização da política de Segurança Pública, enquanto permite fazer a articulação entre os direitos sociais, políticos e civis, na medida em que visa preservar o bem-estar da vítima em potencial, ao mesmo tempo em que repara as possíveis causas que movem um cidadão, sobretudo os jovens, à prática da violação de direitos de outros cidadãos. É nessa expectativa que se coloca a nova política de Segurança Pública.

A implementação de uma nova política pública, principalmente quando deve passar por uma mudança de paradigma, dependerá de muitos fatores. Inicialmente, destaca-se que toda política pública, assim como todo programa governamental, segundo lembra Arretche (1999), tem objetivos e um desenho de implementação que se expressam em uma legislação geral e em uma regulamentação específica. O SUSP foi adotado como programa de caráter nacional, convertido em instrumento preponderante para a implementação da nova política sem ter sido, todavia, regulamentado, ou seja, sem se constituir numa norma legal.

Por ouro lado, os protocolos de intenções, adotados simbolicamente como referência na incorporação dos governadores ao SUSP, também não têm validade jurídica, sendo meros atos de acordos políticos. Não havendo valor jurídico, portanto, qualquer uma das partes pode desistir do acordo unilateralmente, sem nenhuma penalidade.

Outro aspecto relevante, no caso específico da Segurança Pública, diz respeito à responsabilização pública pela gestão dessa política. Considerando-se a complexidade alcançada pelo problema da violência e da criminalidade na sociedade brasileira, os Governos Federal, estadual e municipal devem envolver-se de forma cooperada na política de Segurança Pública.

Como argumenta Arretche (1999), política de cunho social, com altos custos políticos e financeiros, no Brasil, passou a ser um dos elementos da barganha federativa. A barganha federativa, nesse caso, segundo a referida autora, consiste em atribuir ou imputar as responsabilidades a outro nível de governo, deixando acéfala a gestão das políticas públicas. Esse fato tem sido constatado, freqüentemente, com relação à política de Segurança Pública. O "jogo de empurra" de responsabilização por essa política dá-se, sobretudo, por parte dos governadores, como se ignorassem a responsabilidade a eles atribuída pela Constituição, quando são obrigados a pronunciar-se sobre o assunto em face de algum caso criminoso de grande repercussão social.

Indo mais além, Cerqueira e Dornelles (1998, p. 88) sugerem que uma das principais dificuldades com relação ao processo de mudança da Segurança Pública, consoante a proposta apresentada acima, concerne à necessidade de um "aprendizado para uma parceria democrática que envolve necessariamente políticos, administradores e cidadãos". Isso é válido, sobretudo quando se trata da Segurança Pública, que sempre desconheceu experiências democráticas em política pública. Os mesmos autores acrescentam que, destarte, para a implantação do processo de democratização da Segurança Pública, devem ser revistos vários aspectos a começar pela mudança na relação dos políticos com a comunidade, assim como dos políticos com a polícia e finalmente da polícia com a comunidade.

Uma questão importante a ser ainda observada diz respeito ao fato da nova política de Segurança Pública ter sido idealizada e elaborada por um grupo de estudiosos, contando com uma participação restrita dos representantes da sociedade civil e dos profissionais de Segurança Pública, mas sem que se fomentasse o debate nacionalmente.

Justamente os Governos que devem fazer a opção pela política e os profissionais responsáveis por sua execução não tiveram a oportunidade de opinar com relação ao desenho e conteúdo da nova política, nem tampouco a sociedade civil, os diversos entes federados, que enfrentam o problema da violência e da criminalidade, não foram envolvidos no processo de elaboração da nova política de segurança. Isto é, o governo central decidiu sobre a mudança do desenho, do conteúdo e da forma de implementação de uma política pública a ser adotada e efetivada por outros agentes públicos.

Como mostra Arretche, o fato da figura formuladora de uma determinada política pública raramente coincidir com a figura dos implementadores traz, como resultado, que "programas cujo desenho final supôs um complexo processo decisório serão necessariamente implementados por agentes que não participaram do processo de formulação" (ARRETCHE, 1999, p. 46). Esse fato tende a se constituir, portanto, num grande obstáculo para a consecução dos objetivos da política.

Não se deve esquecer que os interesses, as concepções ideológicas, os valores dos diversos agentes públicos envolvidos numa política pública dificilmente são iguais ou mesmo aproximados. Quanto mais complexa a política, mais diferenças culturais vão ser apresentadas pelos agentes públicos envolvidos e maior será a dificuldade de se chegar a um consenso, sobretudo tratando-se de sistema político multipartidário, onde o Presidente da República é de um partido, o governador de outro, além de ambos serem muitas vezes de partidos divergentes do prefeito, de acordo com a realidade brasileira (ARRETCHE, 1999).

O quadro de adversidades acima pontuado indica que não bastam estratégias de incentivos financeiros para se obter a adesão dos Estados à nova política. Os maiores desafios parecem encontrar-se no compromisso dos Governos Estaduais com vistas à adoção efetiva do novo desenho da política pública de segurança e no envolvimento dos funcionários públicos, profissionais executores da Segurança Pública, que foram preparados tecnicopoliticamente no sentido contrário aos princípios norteadores de uma política de Segurança Pública democrática.

Se o sucesso da nova política pública de segurança brasileira está a depender da obtenção do compromisso efetivo dos Governos, gestores das instituições que integram a Segurança Pública, assim como dos seus profissionais, os próprios policiais - principais protagonistas do processo de mudança da Segurança Pública -, fica, então, sinalizado que há um grande desafio político a ser abraçado pelas forças sociais locais - a sociedade civil, em cada estado.

Com intuito de ir além nesse estudo, no capítulo seguinte procurou-se desvelar os entraves ao processo de mudança da política de Segurança Pública na Paraíba, a partir da Polícia Militar, tendo em vista o seu papel de polícia ostensiva, focalizando-se na ação preventiva - Policiamento Comunitário -, uma vez que esse Estado incorporou-se ao Programa Sistema Único de Segurança Pública, chegando a elaborar, consoante à orientação do referido programa, o primeiro Plano Estadual de Segurança Pública (2003 - 2007), dando destaque a essa prática social.

Notas

1. O Brasil teve sete Constituições. A primeira de 1824, do Império, e seis Constituições Federais, nos respectivos anos de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988.

2. Fundamentado numa proposta política que se assenta em dois objetivos: o da redistribuição social econômica e do reconhecimento de diferenças culturais (SANTOS, 2002b).

3. "É fundamental que o multiculturalismo emancipatório parta do pressuposto de que as culturas são todas elas diferenciadas internamente e, portanto, é tão importante reconhecer as culturas uma entre as outras, como reconhecer diversidade dentro de cada cultura e permitir que dentro da cultura haja resistência, haja diferença" (SANTOS, 2003, p. 14).

4. Ano da comemoração do Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 10 anos da Constituição Federal Brasileira de 1998.

5. Segundo adverte Nancy Cárdia et al, (2003, p. 44 - 45) dados "nacionais sobre crime violento são quase impossíveis de serem obtidos uma vez que o Ministério da Justiça deixou de produzir estatísticas durante o regime militar e essa situação não foi revertida após o retorno ao Estado de direito". Esses dados são ainda mais raros quando se refere ao registro de uso abusivo da força por parte de policiais.

6. O Embaixador brasileiro, Gilberto Vergne Sabóia, foi indicado para presidir o Comitê de Redação dessa Conferência.

7. (Proposta, nº 32).

8. As oficinas foram realizadas nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Natal, Belém, Porto Alegre e Recife. Em seguida, foi apresentado e discutido o projeto do Programa no Encontro Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos, em Brasília e na Conferência Nacional de Direitos Humanos, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal.

9. O documento supra mencionado tem 43 propostas, todavia, o Secretário Nacional de Direitos Humanos que coordenou o grupo de trabalho, em Audiência Especial, na Comissão de Segurança Pública, da Câmara dos Deputados, em 19.08.1997, refere-se a 32 propostas.

10. Ver MOURA (2007), "O Regimento Disciplinar Militar da Paraíba: sob a Ótica dos Direitos Humanos", Dissertação de Mestrado.

11. Segundo o Ministro da Justiça, em "dezessete estados, as Polícias Militares se mobilizaram, declaram-se em greve, fizeram movimento de rua, enfim fatos que são do conhecimento de todos (...)" (Câmara Federal, Comissão Especial de Segurança Pública, Audiência Pública, em 20/08/1997).

12. Das audiências públicas realizadas na Câmara obteve-se o total de sete, em material transcrito do Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação, Núcleo de Revisão de Comissões, Redação Final, nas respectivas datas: 19.08, 20.08, 27.08, 10.09, 16.09, 25.09 e 05.11, todas no ano de 1997.

13. Afirma Dallari, que esse "é um tema muito discutido, inclusive entre os historiadores, se houve ou não o risco de restabelecimento da monarquia no Brasil. Alguns afirmam que sim. De qualquer maneira, alguns Governos Estaduais tinham a preocupação com o risco da restauração" (Relatório da Audiência Pública, 27/09/1997, p. 8-9).

14. Criado pela Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001.

15. O adjetivo "novo" foi empregado de empréstimo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, para diferenciar do Plano Nacional de Segurança Pública do governo anterior.

16. Veja modelo do protocolo de intenções no anexo 3.

17. O referido Fundo, criado pela Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, que foi alterada em 2003, tem como objetivo apoiar financeiramente projetos, na área de Segurança Pública, relacionados às diretrizes da política de Segurança Pública do Governo Federal.

18. A Palavra repressão provoca repulsa generalizada, sobretudo aos que "resistiram à ditadura e lutaram pela democracia, no Brasil. O sentimento libertário rejeita a palavra e o espírito sombrio que a cerca". Em razão disso, os democratas quando discutem segurança se apressam em adjetivá-la de cidadã, "humanista", ou seja, orientada para a garantia e defesa dos Direitos Humanos (SOARES, 2006, p. 204).

19. A esse respeito ver Zaffaroni (2007).