ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Introdução

Ludmila Cerqueira Correia, 2009

A cultura existente no imaginário da sociedade e no modelo assistencial asilar/carcerário para o tratamento das pessoas com transtornos mentais não tem assimilado, ao longo do tempo, os princípios dos direitos humanos: universalidade, indivisibilidade, interdependência e inter-relação. A própria expressão impressa no denominativo comum relativamente aos internos configura a natureza desta exclusão: loucos, independentemente de serem autores de delito ou não. Esta cultura evidencia a presença de um paradigma fundado na negação dos direitos humanos dos pacientes psiquiátricos.

No Brasil, o debate sobre saúde mental e direitos humanos se ampliou na década de 1970, a partir do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, que passou a denunciar as violações de direitos civis e o modelo privatizante e hospitalocêntrico adotado pelo Estado e a elaborar propostas visando uma transformação da assistência psiquiátrica. Foi a partir desse Movimento, que fundou a luta antimanicomial e originou o Movimento pela Reforma Psiquiátrica, que se iniciou a crítica, no Brasil, da psiquiatria como prática de controle e reprodução das desigualdades sociais, e o debate acerca da necessidade da desinstitucionalização.

Ao estudar a história da saúde mental no Brasil e no mundo, verifica-se a criação do manicômio como uma resposta social à loucura (BASAGLIA, 1985; PESSOTTI, 1996; COSTA, 2003; FOUCAULT, 2004a). O manicômio se constitui como lugar da separação e segregação, configurando-se como uma instituição total destinada às pessoas excluídas da sociedade (DE LEONARDIS, 1988; GOFFMAN, 2003). Desde a sua origem, tal instituição é objeto de denúncias sobre as condições das pessoas ali internadas. Nessas denúncias, também consta a situação dos manicômios judiciários.

O manicômio judiciário é o lugar institucional destinado às pessoas com transtornos mentais autoras de delito. No Brasil, tal instituição existe desde 1923, e, com a Reforma Penal de 1984, passou a ser denominada Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), integrando o sistema penitenciário. Embora seja um hospital, está vinculado às Secretarias Estaduais que administram o sistema prisional, e não às Secretarias Estaduais de Saúde.

A manutenção do modelo hegemônico de atenção psiquiátrica aos loucos infratores tem favorecido uma assistência custodial, impossibilitando mudanças que venham a integrar a pessoa à sua comunidade e, especialmente, o respeito aos direitos individuais previstos pela Constituição de 1988. Ainda hoje são constantes a falta de tratamento adequado; o excessivo uso de medicamentos; condições sanitárias precárias; maus-tratos; insalubridade; uso de quartos fortes ou quartos individuais (1); falta de acesso à justiça; reduzido número de profissionais e despreparo dos existentes; ausência de mecanismos que preservem o vínculo com os familiares. Tais violações demonstram o comprometimento dessa instituição com um modelo ultrapassado, que toma o sujeito como objeto da sua ação e não garante os seus direitos.

A inexistência de uma política nacional para a reorientação do modelo de atenção nos HCTP, a falta de projetos estaduais para a reinserção social assistida das pessoas ali internadas e a ausência de um vínculo desta instituição com o Sistema Único de Saúde (SUS), têm mantido a pessoa com transtorno mental autora de delito à margem das mudanças que vêm sendo efetuadas no âmbito do modelo de atenção à saúde mental no Brasil a partir da Lei nº 10.216/2001.

As pessoas com transtorno mental autoras de delito, na sua maioria, ainda são assistidas sob a noção da periculosidade social, constituindo-se alvo de uma dupla estigmatização: loucas e criminosas. Esse tratamento, que não prevê qualquer inserção nos serviços de referência do SUS, configura-se como um dos elementos constituintes das violações dos direitos humanos dessas pessoas.

Ao longo do século XX e no início do século XXI, diversos documentos internacionais na área da saúde passaram a estabelecer as conexões entre o direito à saúde, os direitos humanos e os direitos das pessoas com transtornos mentais (OMS, 2005). Além disso, devem-se ressaltar os instrumentos nacionais, como a Constituição Federal de 1988 e a legislação sobre saúde mental, incluindo-se as portarias e resoluções que tratam dessa matéria.

A articulação entre saúde mental e direitos humanos interessa à sociedade, aos profissionais, aos usuários dos serviços e às respectivas famílias. Já não se justifica a dicotomia do binômio indivíduo-sociedade, pois a discussão sobre a dignidade da pessoa, independentemente de ser paciente ou autora de delitos, plasma conteúdos das ciências da saúde, das ciências jurídicas e das ciências sociais.

Este trabalho objetiva, portanto, analisar os avanços e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas internadas nos HCTP, examinando o conjunto de normas e as tendências de mudança legislativa, na conjuntura internacional e brasileira, para, a seguir, discutir as peculiaridades, impasses e perspectivas na garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito. Ressalte-se que na delimitação do presente estudo, considera-se a relação entre a concepção contemporânea dos direitos humanos e a garantia dos direitos desse grupo vulnerável.

O trabalho é dividido em quatro capítulos. No primeiro, apresenta um histórico da instituição manicomial e da assistência psiquiátrica brasileira. Aborda-se a origem do tratamento dispensado às pessoas com transtornos mentais, bem como a constituição do saber médico psiquiátrico e a sua imposição como modelo de assistência à saúde mental. Em seguida, desenvolve uma breve análise histórica da instituição manicomial judiciária desde a sua criação até os dias atuais, destacando o caráter ambíguo de sua constituição: hospital e prisão.

No segundo capítulo, discutem-se os dispositivos da legislação penal referentes às pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Brasil - os Códigos Penais de 1830, 1890 e 1940; a Lei nº 7.209 de 11 de julho de 1984 - além do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal, salientando a criação e a consolidação da medida de segurança e o conceito de periculosidade, além de abordar a questão da saúde no HCTP.

O terceiro capítulo refere-se ao tema dos direitos humanos e sua concepção contemporânea, identificando as pessoas com transtornos mentais autoras de delito como integrantes dos chamados grupos vulneráveis, ressaltando a sua condição de sujeitos de direitos. A partir desse cenário se passa a estudar a normativa internacional e o ordenamento jurídico interno de proteção e defesa dos direitos humanos, especialmente os instrumentos voltados às pessoas com transtornos mentais, enfatizando a Constituição Federal de 1988 e a legislação sobre saúde mental, com destaque para a Lei nº 10.216/2001, tendo em vista que se constituem ferramenta eficaz para promover o acesso aos serviços de atenção em saúde mental, além de promover e proteger os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito.

O quarto e último capítulo discute os reflexos da Reforma Psiquiátrica no HCTP, abordando as possibilidades de mudança no modelo de atenção à saúde mental das pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Brasil a partir dos princípios da Reforma Psiquiátrica e da Lei nº 10.216/2001. Analisam-se os avanços e impasses na garantia dos direitos dessas pessoas a partir de um estudo de caso realizado no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia (HCT-BA), procurando identificar se as práticas institucionais ali exercidas assimilaram os princípios da Reforma Psiquiátrica ou ainda favorecem uma assistência custodial, dificultando ou impossibilitando o acesso daquelas pessoas aos direitos humanos. São apresentadas a estratégia e as técnicas da pesquisa, a contextualização dessa instituição manicomial judiciária bem como os dados coletados no HCT-BA, na Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas, na Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos e na Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, bem como a análise desses dados. Apresenta, ainda, as experiências pioneiras no Brasil visando reorientar o modelo de atenção à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delito.

Notas

1. Os quartos individuais têm cerca de 10 metros quadrados; não têm cama; num dos cantos, há uma latrina daquele tipo em que a pessoa se agacha para usar; e o paciente fica completamente nu. Funcionam de forma parecida com as celas solitárias dos presídios convencionais, para onde são enviadas as pessoas presas que apresentam mau comportamento. Nos hospitais psiquiátricos comuns, sempre foram usados como castigo. No Brasil, eles foram formalmente banidos através da Portaria nº 224/92 do Ministério da Saúde, porém, ainda são encontrados em algumas instituições psiquiátricas, como os Manicômios Judiciários.