ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Considerações finais

Ludmila Cerqueira Correia, 2009

Ao longo da história da política de saúde mental no Brasil, verificam-se diversas inovações, sobretudo, na trajetória da Reforma Psiquiátrica, que vem sendo discutida no país desde a segunda metade da década de 70. Ocorre que, embora essas novas práticas venham sendo implementadas, muitos dos direitos das pessoas com transtornos mentais continuam sendo violados. O que se evidencia é uma tradição fundada na negação dos direitos humanos dos pacientes psiquiátricos que não contam com uma rede de serviços de atenção à saúde mental estruturada, capaz de prestar assistência de forma contínua e integral. São escassas as políticas públicas de promoção à saúde mental, de promoção à convivência familiar e de prevenção aos transtornos mentais. Mesmo o Programa Saúde da Família (PSF), implementado a partir de 1994, como proposta de reorientação da atenção básica, não tem propiciado, de forma sistemática, uma atenção à saúde mental nas comunidades assistidas.

Observa-se, assim, a pertinência da discussão e da integração de ações entre o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde, com participação, em todos os níveis, de representantes do Ministério Público, do Poder Judiciário, da sociedade civil, dos profissionais de saúde, entre outros. Justifica-se, ademais, a inclusão do tema na formação dos profissionais de saúde, visando potencializar os contatos destes com as famílias, seja no âmbito da unidade de saúde ou nos espaços comunitários, para a identificação dos casos e para o desenvolvimento da cidadania através de uma abordagem dialógica. Salienta-se, sobretudo, a importância de trazer para a instância de formação dos operadores jurídicos a perspectiva do direito à saúde.

Nessa linha, não se pode perder de vista a relação intrínseca entre saúde mental e direitos humanos, de acordo com a noção de que o direito à saúde faz parte do elenco de direitos humanos (NYGREN-KRUG, 2004), que devem ser assegurados na sua integralidade. Deve-se garantir o direito à saúde segundo a perspectiva da integralidade, articulando-o às outras políticas sociais. Essa articulação demonstra a percepção de que os direitos humanos compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, conjugando os direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais e culturais (PIOVESAN, 2004a).

No plano internacional, além dos instrumentos já referidos, verifica-se que a Organização Mundial da Saúde (OMS), a partir de 2001, lançou uma série de iniciativas com o propósito de colocar a saúde mental na "agenda política internacional". Desde então, a saúde mental obteve uma maior visibilidade em todo o mundo e se desenvolveu um conjunto de instrumentos e programas úteis ao planejamento, ao monitoramento e à avaliação de reformas implantadas nessa área em diversos países. Como afirma Lancetti (1990, p. 139), existe um "consenso mundial sobre o caráter iatrogênico dos hospitais psiquiátricos" e a OMS, juntamente com outras organizações, recomenda a substituição progressiva dos manicômios por serviços psiquiátricos em hospitais gerais, ambulatórios de saúde mental, comunidades terapêuticas, hospitais-dia, dentre outros.

A Organização Pan-Americana da Saúde também tem trabalhado nos últimos anos, em conjunto com os países, no desenvolvimento de políticas, planos e serviços, bem como na atualização da legislação de saúde mental e de promoção dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais (OMS, 2005). Ocorre que, apesar das políticas e planos de saúde mental implementadas em muitos países, de uma maior sensibilização para o tema dos direitos humanos e da capacidade de pesquisa em saúde mental nos países da América Latina e Caribe, os avanços ainda estão longe do que seria necessário. É o que aponta a OMS (2005) quanto ao grau de implementação das políticas e dos programas na maioria dos países: "[...] apenas 15.5% dos países da América Latina têm implementado mais de 50% de seus programas de saúde mental", e acrescenta que a maior parte da população continua sem ter acesso ao conjunto mínimo de cuidados que é possível oferecer-lhes atualmente.

Os instrumentos nacionais e internacionais devem permitir a consecução dos objetivos de saúde pública e da política de saúde. Os Estados devem respeitar, promover e realizar os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, conforme definidos nos documentos internacionais já elencados. Reafirma-se a importância dos textos internacionais para a salvaguarda dos direitos humanos em todo o mundo (CASSESE, 2005), tendo em vista que possibilitam o controle e a fiscalização pelos organismos internacionais, bem como influenciam na criação de novos instrumentos no âmbito nacional para a proteção dos direitos humanos e no fortalecimento daqueles já existentes.

Ações fundamentadas na noção de garantia desses direitos têm trazido avanços que vêm contribuindo para pensar e agir sobre dimensões da diferença e da singularidade no caso da organização da atenção às pessoas com transtornos mentais. Algumas dessas inovações vêm se constituindo como verdadeiras políticas públicas de atenção à saúde mental, e modificando o modelo assistencial para essas pessoas. Apesar de tais mudanças, como a transformação dos hospitais psiquiátricos, o surgimento dos hospitais-dia, dos Centros de Atenção Psicossocial, dos Serviços Residenciais Terapêuticos, o modelo hospitalocêntrico ainda prevalece nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, locais onde ainda são praticadas diversas violações dos direitos humanos das pessoas ali internadas.

A manutenção do modelo hegemônico de assistência psiquiátrica às pessoas com transtornos mentais autoras de delito viola os direitos humanos inscritos na Constituição Federal de 1988. Daí a necessidade de buscar a constituição de serviços de saúde mental que ofereçam um tratamento digno às mesmas, com o respeito às suas escolhas e o incentivo às suas produções, assegurando sua presença e atuação no espaço social. Considera-se que os dispositivos do Código Penal que criaram a inimputabilidade, a medida de segurança e a periculosidade estão ultrapassados e inadequados, necessitando de mudanças que passem a considerar todas as pessoas como efetivamente iguais perante a lei, sem a inimputabilidade ou irresponsabilidade e a medida de segurança. Nesse caso, o próprio reconhecimento do louco infrator como sujeito e igual faz parte dos princípios que norteiam os direitos humanos.

Dentre os instrumentos de proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais encontra-se a Lei nº 10.216/2001, a qual assimilou os princípios e os objetivos da Reforma Psiquiátrica. Nesse sentido, considera-se fundamental estender os direitos previstos nesta legislação aos internos e egressos de HCTP, de forma a promover a integralidade e a humanização dos serviços prestados a essas pessoas, o respeito a seus direitos e a melhoria da qualidade de suas vidas, na perspectiva dos direitos humanos, de acordo, inclusive, com as novas diretrizes trazidas pela Resolução nº 5/2004, do CNPCP.

Porém, não se pode olvidar que a legislação de saúde mental, tomada isoladamente, não garante respeito e proteção dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, "embora 75% dos países de todo o mundo possuam legislação de saúde mental, apenas metade (51%) tiveram leis aprovadas depois de 1990, e praticamente um sexto (15%) possuem legislação que remonta aos anos pré-1960" (OMS, 2005, p. 1). Isso se agrava no caso das pessoas com transtornos mentais autoras de delito, para as quais somente a legislação criminal é aplicada, como é o caso do Brasil, salvo as experiências já iniciadas nos Estados de Minas Gerais e Goiás (BRASIL, 2007). Assim, a legislação e demais documentos jurídicos são apenas ferramentas na consecução daqueles objetivos, sendo primordial a formulação e o desenvolvimento de políticas públicas visando a aplicação da Resolução nº 5/2004 e demais instrumentos normativos voltados à promoção dos direitos desse grupo vulnerável. Cabe aos agentes do Estado a materialização da responsabilidade no cumprimento da função social a ele destinada. Nesse sentido, o Estado, em co-responsabilidade com a sociedade, deve promover a efetiva reorientação do modelo de atenção à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delito, integrando-o aos outros direitos, na perspectiva da indivisibilidade dos direitos humanos.

Considerando-se que a legislação de saúde mental brasileira propõe uma estrutura voltada para o tratamento e apoio, e não para a punição, faz-se necessária a inter-relação dessa estrutura com o sistema de justiça criminal visando a efetiva implementação do acesso aos serviços de saúde e aos demais direitos garantidos às pessoas com transtornos mentais autoras de delito. Como ficou evidenciado, a lei não muda a realidade, e, portanto, o Direito tem um sentido não apenas de declarar, mas também de promover: ele pode servir para provocar mudanças institucionais e sociais. A legislação pode auxiliar e, concomitantemente, garantir o tratamento humanitário daquelas pessoas. Assim, outros mecanismos podem ser utilizados para garantir os seus direitos, desde que para elas seja concebido um projeto terapêutico multidisciplinar, voltado para a reinserção sócio-familiar, e de forma integrada com as demais políticas sociais, envolvendo, principalmente, as áreas da Justiça, da Saúde e da Assistência Social, contemplando, assim, os princípios da indivisibilidade, da interdependência e da inter-relação dos direitos humanos.

No projeto de reorientação desse modelo, faz-se necessária a construção de uma rede de proteção social para acolher essas pessoas. Para tanto, é preciso cuidar para que as desinternações sejam efetivamente acompanhadas, com o encaminhamento devido aos serviços substitutivos e demais mecanismos de saúde pública e de assistência social. Outro ponto fundamental é a superação do preconceito da sociedade, que se acostumou a referir-se à pessoa com transtorno mental como um ser perigoso e incapaz (CINTRA JÚNIOR, 2003). Nesse percurso, deve-se dar uma atenção especial às famílias dessas pessoas, as quais, na grande maioria das vezes, não tiveram acesso aos cuidados em saúde mental. Trazer a família para a discussão sobre esse novo sistema significa deslocar o centro da atenção e do cuidado do hospital para a pessoa, enquanto sujeito de direitos.