ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Capítulo IV
O lugar dos direitos humanos num manicômio judiciário

Ludmila Cerqueira Correia, 2009

1. Reforma Psiquiátrica: reflexos no manicômio judiciário?

As disposições legislativas relativas às pessoas com transtornos mentais autoras de delito configuram uma área complexa, que abrange os sistemas de segurança e justiça e de saúde mental. Existem variações nas políticas e práticas adotadas pelos países, porém, percebe-se que na maioria deles, a questão da saúde mental daquelas pessoas faz parte mais da legislação criminal do que da legislação de saúde mental (OMS, 2005).

O avanço trazido pela Lei nº 10.216/2001 é notável, porém, ainda há muito o que fazer, sobretudo no que se refere às pessoas internadas nos HCTP. Esta lei não excepciona do seu texto as pessoas com transtornos mentais autoras de delito, portanto, não existe uma razão para excluí-las da sua aplicação, em conformidade com o seu art. 1º, que determina que os direitos ali previstos devem ser garantidos “sem qualquer forma de discriminação”.

Embora essa lei não mencione explicitamente a circunstância de internação na eventualidade de autoria de delito por pessoa com transtorno mental, trata da internação compulsória em geral, ou seja, quando for judicialmente determinada. De acordo com a norma, independentemente das circunstâncias que precipitaram a internação psiquiátrica, esta deve se configurar como um recurso terapêutico compromissado com a reintegração social dos internos. Neste compromisso situa-se a garantia do direito à saúde de toda pessoa com transtorno mental. No caso particular daquela autora de delito, propõe-se que a internação compulsória em HCTP mantenha-se coerente com os mesmos princípios éticos de garantia de direitos humanos, de forma que a penalização da pessoa não se sobreponha ao direito de uma atenção integral às suas necessidades de saúde. Ademais, a penalização legal da pessoa com transtorno mental autora de delito deve observar o princípio da definição temporal da pena, cujo final implica na reinserção do apenado ao convívio familiar e comunitário.

Ribeiro (1999, p. 83) fala sobre a importância das transformações resultantes do movimento de Reforma Psiquiátrica para o contexto da saúde pública e explica que isso é reflexo das mudanças “[...] no pensar e sentir da sociedade como um todo e dos profissionais de saúde mental em particular no tocante à humanização do atendimento ao doente, na valorização de seus direitos, na melhoria da prestação dos serviços, no desaprisionamento do paciente psiquiátrico.” E isso deve ser considerado para uma eficaz assistência à saúde das pessoas que estão internadas nos HCTP, oferecendo um tratamento baseado nos princípios da Lei nº 10.216/2001.

Nesse sentido, no Seminário Nacional para a Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, realizado no ano de 2002, foram formuladas diversas propostas, e, dentre elas, estava aquela relativa aos direitos dos “usuários dos serviços de assistência psiquiátrica privados de liberdade”. No relatório desse Seminário consta que a Reforma Psiquiátrica deve ser “norteadora das práticas das instituições forenses” e que as questões que envolvem o Manicômio Judiciário devem ser discutidas com as diversas áreas envolvidas (legislativa, previdenciária, saúde mental, direitos humanos e outras), “com o objetivo de buscar formas de garantir o direito do portador de transtorno mental infrator à responsabilidade, à reinserção social e a uma assistência dentro dos princípios do SUS e da Reforma Psiquiátrica” (BRASIL, 2002a, p. 42). Isso pode ser verificado na Resolução nº 5, de 04 de maio de 2004, aprovada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que estabelece as diretrizes para a adequação das medidas de segurança às disposições da Lei nº 10.216/2001.

Importante situar, também, a realização, em 2004, do Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, que reafirmou a natureza dos CAPS como “serviços estratégicos para o tratamento e reintegração social do louco infrator.” (BRASIL, 2007, p. 49).

A partir de uma nova concepção da doença mental e da situação em que vivem as pessoas internadas, argumenta-se sobre a pertinência, tanto para a pessoa com transtorno mental autora de delito quanto para a própria sociedade, não ser aquela considerada irresponsável. Para Quinet (2001, p. 175), “Não é porque há foraclusão da lei simbólica no psicótico que ele não deve ser julgado pela lei dos homens. Ressituá-lo a partir da lei dos homens é também uma maneira de humanizá-lo e considerá-lo sujeito do desejo e do direito.”

A possibilidade da responsabilização criminal das pessoas com transtorno mental autoras de delito é um debate que compreende o princípio da igualdade como elemento fundamental. Esse princípio, de natureza jus-filosófica, integra a dimensão da unicidade e da singularidade de cada pessoa, sem perder de vista a sua dignidade (SICHES, 1986). Enquanto pessoa autora de ato delituoso, este agente estaria passível à mesma responsabilização daqueles em situação similar, no entanto, a condição específica de pessoa com transtorno mental lhe confere o direito a uma assistência especializada.

Nas palavras de Barros (2003, p. 129), “A igualdade somente pode colocar-se no campo jurídico quando o sujeito é convocado a responder pelo seu ato no tecido social e inserir a singularidade de seu texto ao responder pelos princípios universais que orientam a convivência na cidade.” Para essa autora, a medida jurídica somente atingirá seu fim público se for criada a partir de um projeto que contemple a singularidade de cada caso, a partir de princípios universais. E acrescenta que “[...] nos casos dos loucos infratores, veremos que o projeto da modernidade não foi capaz de estender a palavra a todos e condenou-os ao sepulcro do silêncio... mortos em vida, pois sua palavra foi considerada sem sentido e sem valor.”

Afirma-se, portanto, a necessidade de que essas pessoas respondam pelos seus atos, conjugando responsabilidade com o direito à saúde, compreendido, in casu, enquanto direito à assistência em uma rede de atenção em saúde mental. A responsabilização não implica desassistência, devendo-se observar as novas diretrizes nacionais no âmbito do sistema penitenciário, a exemplo do atual Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, garantindo-se ao louco infrator o acesso à rede de saúde como a qualquer cidadão, em conformidade com o Princípio da Igualdade.

2. Acesso aos direitos humanos dos internos no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia: estudo de caso

Optou-se pelo estudo de caso porque apresenta-se como uma estratégia de pesquisa abrangente (YIN, 2005), e, como afirma Martins (2006, p. 9), “Mediante um mergulho profundo e exaustivo em um objeto delimitado, o Estudo de Caso possibilita a penetração em uma realidade social, não conseguida plenamente por um levantamento amostral e avaliação exclusivamente quantitativa”. Para este autor, no estudo de caso, as análises e reflexões estão presentes durante os vários estágios da pesquisa e, para se atingir os propósitos do estudo, a fase crucial é a seleção dos aspectos mais relevantes, que corresponde à “determinação do recorte” (MARTINS, 2006).

Com o estudo de caso, pretendeu-se compreender a realidade atual de uma instituição manicomial judiciária, observando o seu cotidiano e examinando alguns documentos, coletados durante a pesquisa de campo, para compor o corpus de análise.

2.1. Estratégia e técnicas da pesquisa

A estratégia da pesquisa consistiu em um estudo de caso sobre a garantia dos direitos humanos de pessoas com transtornos mentais autoras de delito internadas em uma instituição manicomial judiciária localizada em uma capital da região Nordeste do Brasil: o Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia (HCT-BA). Selecionou-se este HCTP para a análise porque é uma instituição asilar conhecida nacionalmente pelas diversas violações de direitos humanos ali cometidas contra as pessoas internadas (CARAVANA NACIONAL, 2000; COMISSÃO NACIONAL, 2004; BRASIL, 2004c) e, ainda, tendo em vista o contato da autora com aquela realidade quando ali realizou estágio por dois anos através do Patronato de Presos e Egressos da Bahia, no período de 1998 a 2000.

De acordo com Minayo (2006, p. 13), a saúde é um campo fértil para pesquisas qualitativas e multidisciplinares, tendo em vista que a saúde não institui nem uma disciplina nem um campo separado das outras instâncias da realidade social. [...] a sua especificidade é dada pelas inflexões sócio-econômicas, políticas e ideológicas relacionadas ao saber técnico e prático sobre saúde e doença, sobre a institucionalização, a organização, administração e avaliação dos serviços e da clientela dos sistemas de saúde. Dentro desse caráter peculiar está a sua abrangência multidisciplinar e estratégica. Isto é, o reconhecimento de que o campo da saúde se refere a uma realidade complexa que demanda conhecimentos distintos integrados [...].

Diante dos objetivos do trabalho, foi realizada uma avaliação qualitativa, a qual é caracterizada pela “descrição, compreensão e interpretação de fatos e fenômenos, em contrapartida à avaliação quantitativa, denominada pesquisa quantitativa, onde predominam mensurações” (MARTINS, 2006, p. xi). Nesta perspectiva, a pesquisa foi feita para além dos dados estatísticos, considerando o universo de significações, aspirações e atitudes inerentes ao objeto de estudo. Assim, optou-se por uma pesquisa qualitativa como caminho apropriado para analisar a garantia dos direitos humanos das pessoas internadas no HCT-BA.

Buscou-se, ao longo da investigação, reunir informações para abranger a totalidade da instituição utilizando, para tal, diferentes técnicas de coleta de dados, divididas em fases que ocorreram de forma simultânea e complementar. Dada a complexidade da instituição estudada, a análise empreendida neste trabalho constituiu-se em um recorte, não pretendendo a apreensão de sua totalidade.

A primeira fase da pesquisa consistiu na coleta de dados acerca do histórico da instituição, sendo esta realizada na Biblioteca do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia, no Arquivo Público do Estado da Bahia e no próprio HCT-BA, bem como nos sítios eletrônicos da Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJCDH) e do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN-MJ).

A segunda fase da pesquisa consistiu em fazer os primeiros contatos com a direção e com alguns profissionais do HCT-BA para obter algumas informações preliminares sobre o cotidiano da instituição e para agendar as visitas para a observação e para as entrevistas. As visitas ocorreram nos meses de junho a setembro de 2007.

A terceira fase da pesquisa consistiu nas visitas ao HCT-BA, uma vez por semana, durante o período de quatro meses, para a coleta de dados através de documentos da instituição, entrevistas abertas com alguns funcionários e observação direta do seu cotidiano, buscando uma maior compreensão da realidade desta instituição e subsidiar uma análise do seu funcionamento.

A quarta fase da pesquisa consistiu na coleta de dados na Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas (VEPMA), na Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJCDH) e na Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB). Os documentos coletados e analisados foram: o Relatório Final do Censo Clínico e Psicossocial da População de Pacientes Internados no HCT-BA (realizado em 2003 e publicado em 2004); o Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário da Bahia, de maio de 2004; o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) referente àquela instituição, firmado pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MPE), pela SJCDH e pela SESAB em dezembro de 2004; as Portarias de nº 01/03 e 02/03, expedidas pelo Juiz da VEPMA; e o Provimento Nº CGJ-14/2007, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado da Bahia.

Delimitou-se como unidade de análise do estudo de caso a instituição manicomial judiciária: como ela foi constituída, como está estruturada e o seu funcionamento atual. Buscou-se obter, através dos documentos selecionados e da observação direta, o discurso institucional do HCT-BA para analisar a garantia dos direitos humanos das pessoas ali internadas. Para identificar e analisar a prática institucional foram registrados os conteúdos de listas de internos e de funcionários, bem como do Relatório do Censo Clínico e Psicossocial, do Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário da Bahia (1) e do TAC do MPE, sendo considerados os seguintes dados: número de pessoas internadas, causa de internação, tempo de internação, número de profissionais e áreas técnicas, além das características físicas do prédio onde está situado o HCT-BA. Os dados obtidos foram descritos e analisados qualitativamente em consonância com o referencial teórico adotado.

No HCT-BA, os dados da pesquisa foram coletados da seguinte forma: em uma lista fornecida pela Coordenação de Registro e Controle (CRC), contendo a totalidade das pessoas internadas na instituição; em uma lista fornecida pelo Setor de Recursos Humanos, contendo o número de profissionais que ali trabalham, por área de atuação; através de observação direta e entrevistas abertas com informantes-chave, com registro em diário de campo.

As entrevistas foram realizadas em torno do funcionamento do HCT-BA, com o consentimento das pessoas entrevistadas, conforme ofício de solicitação encaminhado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e autorização conferida pelo diretor daquela instituição para a pesquisa de campo.

A observação voltou-se, predominantemente, para os elementos do cotidiano da instituição, relacionados com os objetivos do estudo. Realizou-se também observação das características físicas e espaciais da instituição (alas, quartos, enfermarias, salas de atendimento, refeitório e pátio). De acordo com Martins (2006, p. 23-4), “A Observação, ao mesmo tempo em que permite a coleta de dados, envolve a percepção sensorial do observador, distinguindo-se enquanto prática científica, da observação da rotina diária.” Através da observação, buscou-se apreender o discurso interno da instituição, a sua organização, os seus dispositivos arquitetônicos e normas. Os dados foram registrados em diário de campo.

O estudo de caso buscou analisar a constituição e afirmação do HCT-BA até o mês de setembro de 2007, examinando os dados atuais em face dos dados do Relatório do Censo Clínico e Psicossocial, do Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário e do TAC do MPE, todos de 2004. Pretendeu-se examinar os avanços e os impasses na garantia dos direitos humanos dos internos do HCT-BA, construindo-se uma análise sobre a promoção desses direitos naquela instituição, utilizando-se também da legislação pertinente e de outros documentos referentes ao objeto de estudo.

Os resultados da pesquisa serão apresentados em duas partes. Na primeira, contextualiza-se o HCT-BA, resgatando a sua constituição histórica até os dias atuais. Na segunda parte, procede-se à descrição e análise dos dados coletados na sua ordem cronológica.

2.2. Contextualização do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia

Conforme já sinalizado anteriormente, de acordo com o Quadro Geral de Estabelecimentos Penais por Estado, atualizado pelo Ministério da Justiça (Departamento Penitenciário Nacional), através do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias - InfoPen, no mês de março de 2007, existem no Brasil 28 HCTP, distribuídos em 17 Estados. Dentre estes, figura o Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia (HCT-BA), antigo Manicômio Judiciário da Bahia. Trata-se de um estabelecimento prisional de porte médio, vinculado à Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH), através da Superintendência de Assuntos Penais (SAP), destinado ao cumprimento de medidas de segurança de internação, bem como à internação provisória para a realização de perícia, tanto para mulheres quanto para homens com transtornos mentais autores de delito.

De acordo com o organograma atual das unidades prisionais do Estado da Bahia disponível no sítio eletrônico da SJCDH, corroborando a previsão do artigo 11 do Decreto nº 9.665, de 21 de novembro de 2005, que aprova a organização estrutural e funcional da SAP, o HCT-BA:

Recebe, sob regime de internação e por determinação judicial para perícia, custódia e tratamento, indiciados, processados e sentenciados, suspeitos ou comprovadamente portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, em regime fechado e com segurança máxima.

Para compreender o caráter desta instituição, faz-se necessária a reconstrução da sua história ao longo do tempo, o que foi realizado a partir dos documentos coletados durante a fase exploratória e a pesquisa de campo.

O Manicômio Judiciário da Bahia foi criado pela Lei nº 2.070, de 23 de maio de 1928, diretamente subordinado à Secretaria de Polícia e Segurança Pública, durante a gestão do Governador do Estado Vital Henrique Baptista Soares (gestão 1928-1930), a qual tinha como Secretário o Dr. Bernardino Madureira de Pinho (SAMPAIO, 1938). À época, os doentes mentais delinqüentes tinham dois destinos: ou eram encaminhados para o Pavilhão Manoel Vitorino do Asilo São João de Deus (que em 1936 passou a se chamar Hospital Juliano Moreira), conhecido como o pior pavilhão do asilo por causa das precárias condições sanitárias (PERES, 1997), ou eram recolhidos à penitenciária do Estado.

Faz-se necessário registrar os antecedentes da citada Lei nº 2.070 de 23 de maio de 1928. O assassinato de um interno numa das alas do Asilo São João de Deus, em dezembro de 1927, onde já se constatava a superlotação, acirra a discussão entre psiquiatras e juristas sobre a relevância da criação de um Manicômio Judiciário no Estado (PERES, 1997).

Aqueles que defendiam a criação de tal instituição, como Arthur Ramos, fundamentavam-se no pensamento da Escola Positiva do Direito Penal, que pontuava a importância de um instituto especializado na clínica da criminalidade, um núcleo de observação, um lugar de produção de saber sobre as causas da criminalidade e da periculosidade (PERES, 1997). Por outro lado, pessoas como o psiquiatra Mário Leal, diretor do Asilo São João de Deus, se posicionavam contra a criação de um Manicômio Judiciário, afirmando que era incongruente o Estado não amparar os alienados que se encontravam recolhidos no Asilo e, ainda, investir na construção de um outro espaço para acomodar os alienados perigosos (PERES, 1997), considerando os manicômios judiciários inúteis, desnecessários e anti-científicos, bastando apenas a criação de “pavilhões especiais para alienados perigosos” (RAMOS, 1937, p. 173).

Em 1928, o Governador Vital Soares encaminhou à Assembléia Legislativa o projeto de lei que criava o Manicômio Judiciário, o qual foi aprovado por unanimidade. Segundo Arthur Ramos (1937, p. 178), a criação daquela instituição era uma necessidade, alegando que a “velha 'casa forte' do Hospício de Brotas” já não comportava os “pobres irresponsáveis delinquentes”, sendo um perigo mantê-los ali amontoados. Sobre a mencionada “casa-forte”, Jacobina (1982, p. 59, 63) informa que ela era o “lugar destinado aos loucos furiosos e agitados”, podendo ser considerada “o embrião do Manicômio Judiciário, ramo da fração repressiva do ACP [Aparelho de Cuidado Psiquiátrico] que posteriormente viria a se constituir numa instituição separada do asilo”.

No seu relatório sobre o “exercício de 1928” apresentado ao Governador do Estado, publicado em 1930, o Secretário de Polícia e Segurança Pública, Dr. Bernardino Madureira de Pinho, refere-se à construção do Manicômio Judiciário como uma medida inadiável, afirmando que “No grau de aperfeiçoamento a que attingimos não temos o direito de condemnar as populações penitenciarias ao contacto dos alienados que por sua vez se anniquillam e perdem na convivencia do presidio”. Ele chega a afirmar que para os “alienados criminosos 'não ha lugar nos asylos, nem nas prisões'”, mas que do ponto de vista da justiça penal, há maiores vantagens no segregamento do paciente em estabelecimento específico, “onde se possa observar, consciente e verazmente, cada caso concreto.” (PINHO, 1930, p. 77).

Para corroborar a sua tese, Madureira de Pinho (1930, p. 78) cita uma entrevista do Professor Estacio de Lima, na qual afirma:

O Manicomio terá seus fins humanissimos como internar, para observação scientifica e isolamento e regorosa vigilancia, os sentenciados 'que apresentarem symptomas de mormidez mental'; os detentos, antes da condemnação, ou digamos, os accusados suspeitos de insanidade mental e os individuos a que se refere o art. 29 (in fine), do Codigo Penal.

De acordo com o referido Professor, tal instituição não deveria ser um cárcere e nem “terá a organização clínica da casa ordinaria dos loucos...”, devendo estar subordinada à Secretaria da Policia e Segurança Publica (PINHO, 1930, p. 79). O Relatório apresenta também um projeto para a construção do Manicômio Judiciário, contendo planta, estrutura e orçamento, e informa a aquisição de um terreno vizinho à Penitenciária do Estado para esse fim (PINHO, 1930). O fato é que mesmo com o terreno comprado, o Manicômio não foi construído, por causa da Revolução de 1930, marco do fim da República Velha e início do regime ditatorial do Estado Novo, tendo sido o processo de construção embargado.

Conforme pontua Peres (1997, p. 106):

apesar do movimento em prol da construção do Manicômio Judiciário ter surgido no meio médico, como uma tentativa de legitimar e especificar sua estratégia, medicalizando o espaço asilar, o Manicômio Judiciário é colocado, aqui, não como parte ou como uma reforma da assistência psiquiátrica, mas como parte do sistema carcerário e no âmbito de reformas penitenciárias, pelos próprios médicos que o defendiam. Dessa maneira, o manicômio baiano forma-se como uma instituição mais penitenciária do que médica e os loucos-criminosos, que, na figura dos monomaníacos, serviram para mostrar a necessidade da estratégia alienista, tornam-se inespecíficos para o meio médico e dele são retirados.

Quase dez anos depois da promulgação da Lei nº 2.070/1928, o Manicômio Judiciário da Bahia ainda não havia sido construído, e um relatório intitulado “Vida Penitenciaria Bahiana no no de 1938” o coloca como o “de mais premente necessidade”. O referido documento registra os primeiros passos adotados para a construção de tal instituição e expõe a preocupação dos gestores à época (SAMPAIO, 1938, p. 43):

Ultimamente antes do ato do dia 6 de fevereiro, o assunto vinha surgindo novamente ao cenario da discussão, no seio do Conselho Penitenciario, sendo a sua urgencia encarecida particularmente por aqueles que, pela contigencia da sua missão a desejam mais de perto: o digno Diretor do Hospital Juliano Moreira, e o signatario das presentes considerações. É que sentimos os dois o quanto representa em espinhos para nós a situação atual da assistencia a alienados criminosos e criminosos alienados, na Bahia. Lá, por que não se compreende “uma prisão dentro de uma enfermaria”, aqui, porque, jamais teremos uma disciplina carceraria sem expurgar o ambiente prisional daqueles que, por estado, ou constituição, nele não devem permanecer.

Assim, resta confirmado o caráter ambíguo da instituição manicomial judiciária, que já se apresentava desde a sua constituição, como está retratado nos documentos acima citados, e neste último especificamente, que salienta a possibilidade de se discutir outros aspectos que a questão comporta: “o da sua subordinação si à Secretaria da Justiça ou à Secretaria da Saúde Pública; si deve ficar como ramo da assistencia a psicopatas, anexo ao manicomio comum, ou organizar-se como anexo penitenciario, ou ter organização autonoma.” (SAMPAIO, 1938, p. 43). Para o autor desse relatório, Nelson de Souza Sampaio, era indiscutível a necessidade do Manicômio Judiciário no Estado, que, a partir do Decreto nº 11.214, de 6 de fevereiro de 1939, passa a integrar o sistema penitenciário do Estado.

O mencionado Decreto é promulgado por força da atuação de Landulpho Alves, Interventor Federal no Estado da Bahia, como uma medida para reorganizar o “serviço penitenciário do Estado”. Este interventor encaminha relatório ao Dr. Lemos Britto, e dentre outras questões acerca das unidades penitenciárias, sugere que o Manicômio Judiciário seja construído ao lado do “Hospital de Alienados da Bôa Vista” (o Hospital Juliano Moreira), considerando “o critério seguido por São Paulo”, para não perder o seu caráter de hospital (2). Porém, enquanto o prédio não era construído, os loucos criminosos continuavam sendo recolhidos ao Pavilhão Manoel Vitorino do Hospital Juliano Moreira, onde eram realizadas as perícias e os mesmos eram custodiados.

No Governo de Lomanto Júnior (gestão 1964-1967), após a reforma administrativa por ele empreendida em 1966, o Manicômio Judiciário (ainda enquanto um setor de recolhimento dos loucos criminosos) passou a funcionar em outra dependência do Hospital Juliano Moreira, no Pavilhão Víctor Soares. Esta transferência ocorreu no dia 07 de abril de 1967, último dia daquele governo, passando o Manicômio Judiciário a pertencer à Secretaria de Justiça, que fez um convênio com a Fundação Hospitalar do Estado da Bahia, à qual estava vinculado o Hospital Juliano Moreira, para manter o Manicômio (3).

De acordo com a Lei nº 2.321, de 11 de abril de 1966, que estabeleceu as diretrizes para a reforma administrativa, ao Manicômio Judiciário eram atribuídos “a custódia e o tratamento de psicopatas causadores de danos sociais, conforme decisão da Justiça Criminal.” Ele estava submetido ao Departamento de Assuntos Penais (DAP), órgão integrante da mencionada Secretaria de Justiça, responsável pela administração do sistema penitenciário do Estado.

O Manicômio Judiciário foi transferido no dia 20 de agosto de 1973 para um prédio localizado na Baixa do Fiscal, onde funcionou a primeira penitenciária do Estado, quando era Governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães.

Após alguns anos, tal instituição passa por novas reformulações, e em 1988, suas finalidades são redefinidas, conforme se verifica no art. 5º do Decreto nº 1.899, de 7 de novembro daquele ano: “(...) receber sob regime de internação e por determinação judicial, para perícia, custódia e tratamento, indiciados, processados e sentenciados, suspeitos ou comprovadamente portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado” (PERES, 1996, p. 108-9). As mudanças continuaram nos anos que se seguiram e, com a Lei nº 6.074 de 22 de maio de 1991, o Manicômio Judiciário passa a ser denominado Hospital de Custódia e Tratamento (HCT), sendo reestruturado mais uma vez a partir do Decreto Estadual nº 2.785, de 20 de janeiro de 1994, com uma reformulação administrativa interna. O HCT-BA passou a contar com cinco seções: Apoio Administrativo; Segurança; Atendimento à Saúde; Registro, Controle e Arquivo; e Enfermagem (PERES, 1997).

Atualmente, o HCT-BA continua funcionando no mesmo prédio, e possui na sua estrutura física um pavilhão administrativo, o prédio principal e uma extensão onde funciona o refeitório, a lavanderia e a sala das oficinas terapêuticas. Com capacidade para 280 internos (BAHIA, 2007), o prédio é dividido em cinco alas, sendo uma feminina. As alas são gradeadas na sua entrada e possuem uma enfermaria cada uma e um banheiro coletivo, tendo os quartos abertos, com diversos leitos e as janelas gradeadas.

A rotina da instituição obedece a um regime prisional com horários preestabelecidos para refeições, banhos de sol, acordar, dormir e tomar medicação, confirmando, assim, o seu caráter de instituição total. São realizadas algumas atividades ocupacionais e terapêuticas com os internos, porém, a grande maioria passa a maior parte do tempo ociosa, sob efeito de medicação, deitados ou perambulando pelo pátio ou no campo de futebol. Os agentes penitenciários conduzem a rotina e a contagem dos internos, garantindo a ordem do local.

Os quartos individuais foram desativados e transformados em quartos coletivos para as pessoas ali internadas. Antes dessa mudança, que é recente, eles tinham a função de isolamento para as pessoas recém chegadas e de punição para aquelas consideradas “desajustadas”, possuindo apenas um fosso no chão, sem água e com uma única entrada de ar e luz através de uma pequena escotilha na porta de ferro. Embora estes quartos individuais tenham sido desativados, atualmente, a punição ocorre através da contenção física: os internos considerados “agitados” são amarrados com tiras de tecido a um leito que é colocado em frente à enfermaria.

Atualmente, o HCT-BA funciona com seis coordenações: Coordenação de Segurança, Coordenação Administrativa, Coordenação de Registro e Controle, Coordenação de Atendimento à Saúde, Coordenação de Atividades Educacionais, Laborativas e Sócio-Terapêuticas e Coordenação Médica. As atribuições das cinco primeiras Coordenações estão previstas no artigo 11 do Decreto nº 9.665, de 21 de novembro de 2005 (BAHIA, 2005). Quanto à última, ela foi criada no ano de 2006, sendo responsável pelas perícias e pelo encaminhamento dos internos para realização de exames complementares. A Coordenação de Atendimento à Saúde conta com os seguintes setores: Coordenação de Enfermagem, Serviço Social, Nutrição e Farmácia, além do atendimento odontológico. Cabe ressaltar que, embora exista um organograma de funcionamento do HCT-BA, este está sendo reformulado desde o ano de 2006.

No seu quadro de pessoal, conta com 234 funcionários (231 na ativa), acrescidos de outros que trabalham nos serviços terceirizados de limpeza e de alimentação da unidade. Desse total, 91 são agentes penitenciários e os outros são divididos em auxiliares de enfermagem (46), auxiliares administrativos (31), médicos psiquiatras (16), médicos clínicos (03), enfermeiras (09), farmacêutica (01), nutricionista (01), odontólogo (01), motoristas (12), técnicos administrativos (03), psicólogos (04), assistentes sociais (05), técnico em nível superior (01), terapeutas ocupacionais (02) e outros cargos comissionados (08) (4).

Quanto ao número de pessoas internadas na instituição, tomando como base uma lista fornecida pela Coordenação de Registro e Controle (CRC) do HCT-BA, atualizada para o mês de agosto de 2007 (5), constavam, naquele momento, 145 pessoas. Destas, 136 são homens e 9 são mulheres. Deste total, 101 são oriundas do interior do Estado e 44 são encaminhadas pela Comarca de Salvador. A situação destas é diversa: a maior parte cumpre medida de segurança por determinação judicial (47); outra faz o laudo de insanidade mental por suspeita de cometimento de delito sem capacidade de autodeterminação (44); e uma outra parte já realizou o laudo e aguarda a sentença judicial (20); algumas já possuem carta de desinternação (08) e alvará de soltura (02), e outros são considerados pessoas com “problema social”, pois perderam os vínculos sócio-familiares (07). Além disso, existem os internos que sofreram algum tipo de transtorno de ordem psicológica-psiquiátrica enquanto cumpriam sua pena em estabelecimento penitenciário diverso (superveniência de doença mental), e, por isso são encaminhados ao HCT para tratamento (17).

Observa-se, ainda, um número significante de reinternamentos no HCT: as pessoas com mais de uma internação após o mês de abril de 2001 (quando é promulgada a Lei de Reforma Psiquiátrica brasileira), somam 48, das quais, 06 fazem parte do grupo de pessoas encaminhadas para tratamento (superveniência de doença mental), 32 cumprem medida de segurança, 05 aguardam realização do laudo de insanidade mental, 04 já realizaram o laudo e aguardam a sentença judicial e 01 já possui carta de desinternação. Vale ressaltar que dentre estes casos de reinternação, 09 possuem duas reinternações e 04 possuem três ou mais reinternações.

Isso pode evidenciar a falta de acesso dessas pessoas aos serviços de atenção à saúde mental e a ausência do apoio sociofamiliar necessário para a sua reinserção social, o que confirma a dupla exclusão e a quebra do liame familiar-comunitário (COSTA, 2003) promovidas pela internação num HCTP.

2.3. Mudanças e permanências no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia

A análise dos dados obtidos foi feita tomando como base a noção de Minayo sobre a análise de conteúdo. Sendo assim, buscou-se a “interpretação cifrada do material de caráter qualitativo”. Para Minayo (2006, p. 308), a “análise de conteúdo parte de uma leitura de primeiro plano das falas, depoimentos e documentos, para atingir um nível mais profundo, ultrapassando os sentidos manifestos do material”. Portanto, a presente análise relaciona o contexto da instituição estudada, a partir da observação e dos documentos coletados, com o referencial teórico adotado.

Com capacidade para 280 internos (BAHIA, 2007), no mês de agosto de 2007, o HCT-BA contava com 145 pessoas, conforme explicitado acima. De acordo com os profissionais que ali trabalham, o número de funcionários é deficitário para o cuidado daquelas pessoas, apesar das mudanças implementadas, também referentes ao quadro de pessoal, nos últimos dois anos.

Cabe registrar que as mudanças percebidas na instituição se devem, em parte, ao ocorrido no ano de 2003, quando o HCT-BA estava com quase o dobro de sua capacidade de ocupação e morreram 19 internos por diversas causas (dentre elas, espancamento, tuberculose e septicemia) somente de janeiro a outubro daquele ano (BRASIL, 2004c). Estes e outros fatos ensejaram denúncias pela imprensa, pelo Ministério Público Estadual e por organizações da sociedade com a intenção de dar visibilidade àquela situação e encontrar soluções.

Assim é que naquele ano, obedecendo a uma determinação dos Ministérios da Saúde e da Justiça, da SJCDH e da SESAB, foi realizado o “Censo Clínico e Psicossocial da População de Pacientes Internados no Hospital de Custódia e Tratamento do Estado da Bahia”, que produziu relatório no qual constam as seguintes observações, relevantes para estudar a situação atual do HCT-BA (BRASIL, 2004c):

Encontrou-se um hospital deteriorado, sem as mínimas condições de funcionamento no que tange a estrutura física (portas e vidros quebrados, paredes e chão sujos), um odor fétido sugestivo de condições sanitárias precárias. As portas e vidros quebrados questionavam, na prática, até mesmo a função disciplinar de presídio que lhe é atribuída, sendo um lugar inseguro, vazado e insalubre. [...] Com um projeto terapêutico apenas esboçado por alguns profissionais da equipe, mas não operacionalizado como um todo na instituição (não existe projeto terapêutico, portanto), prevalecem normas disciplinares e restritivas, recursos humanos escassos e submetidos a condições de trabalho aviltantes e internos desassistidos.

Quanto ao quadro de pessoal, o referido relatório registra um total de 207 funcionários (BRASIL, 2004c): auxiliares de enfermagem (42), auxiliares administrativos (31), médicos psiquiatras e médicos clínicos (24), enfermeiras (11), farmacêutico (01), nutricionista (01), odontólogo (01), motoristas (08), técnicos administrativos (03), psicólogos (04), assistentes sociais (03), técnico em nível superior (01), terapêuta ocupacional (01) e agentes penitenciários (76).

Assim, observa-se que do ano de 2003 para o ano de 2007, houve um incremento no número de funcionários, passando de 207 para 234. Porém, esse aumento não é proporcional para todas as áreas, ou para aquelas consideradas mais necessárias, como a dos profissionais de saúde. Enquanto algumas áreas mantiveram o mesmo número (como Farmacêutico, Nutricionista e Odontólogo), outras diminuíram, como é o caso dos médicos (somados os psiquiatras e clínicos) que reduziu de 24 para 19, e das enfermeiras, que diminuiu de 11 para 9. Quanto às áreas que tiveram um aumento, citem-se os profissionais de Serviço Social e de Terapia Ocupacional, que tiveram mais 1 profissional contratado para cada uma destas áreas; o grupo de motoristas e o de auxiliares de enfermagem, que foram acrescidos em mais 4 pessoas, cada; e, por fim, o grupo que teve um aumento significativo: o dos agentes penitenciários, que passa de 76 para 91.

Dentre os problemas do HCT, o relatório cita: insuficiência de pessoal de apoio, alojamentos não arejados, colchões fétidos, inexistência de armários ou compartimentos para que os internos pudessem guardar os seus pertences, a existência dos quartos de isolamento, péssimas condições de higiene, escassez de medicamentos, insuficiência de material para higiene, falta de água, banheiros em péssimo estado de conservação, refeitórios em precárias condições de higiene e falta de uma equipe de profissionais em número e habilitação adequados. Quanto às atividades destinadas aos internos, informa que “o ócio é a tônica instituição” e constata uma baixa freqüência de atendimento clínico-psiquiátrico e de assistência social, “somando-se ainda uma carente abordagem psicológica e de terapia ocupacional” (BRASIL, 2004c, p. 43). Ressalta também um problema quanto aos internos que recebem alta e retornam à porta do HCT porque foram rejeitados pelos familiares: eles ficam próximos ao prédio da unidade pedindo esmolas.

O Censo informa que o Ministério Público do Estado da Bahia (MPE) instaurou um Inquérito Civil (nº 04/2003) em 25 de fevereiro de 2003, para apurar as condições de internamento de pacientes no HCT-BA (BRASIL, 2004c; BAHIA, 2004a). De acordo com o relatório do Censo realizado em 2003, o MPE realizou um censo jurídico para analisar a situação legal e jurídica das pessoas ali internadas. Neste relatório, consta que o MPE passou a receber da direção do HCT listas atualizadas dos internos com sua situação processual, e, verificando as mais diversas irregularidades, encaminhou ofício a cada Promotor de Justiça da área criminal no Estado solicitando providências no sentido de agilizar os processos dos internos para regularizar a situação destes. Esta ação permitiu que alguns internos retornassem às suas comarcas de origem, tendo em vista que os Promotores começaram a responder aos ofícios, informando a sua atuação em cada caso com aquele objetivo.

Embora esse relatório tenha apontado que dos 338 internos à época entrevistados, 141 tiveram indicação de alta e acompanhamento em CAPS e 66 indicação de encaminhamento para residências terapêuticas (BRASIL, 2004c), em nenhum dos documentos coletados há registros sobre o destino daquelas pessoas. O fato de terem obtido a possibilidade de desinternação não significa que aquelas que saíram foram realmente inseridas nos CAPS ou em outros serviços substitutivos.

Nesse momento, vale acrescentar as Portarias de nº 01/03 e 02/03, expedidas pelo Juiz da Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas (VEPMA), com o intuito de diminuir o número de internos no HCT-BA. A Portaria Nº 01/03, de 28 de abril de 2003, determina “a desinternação e retorno às comarcas de origem de todos o internos encaminhados para exames, que estiverem com os respectivos laudos concluídos.” Para esta determinação, o juiz considerou: “o elevado número de pacientes vindos das diversas Comarcas, internados no HCT com Exames de Insanidade Mental concluídos e que já deveriam ter voltado a origem, mas que sem qualquer justificativa de cunho legal continuam superlotando o Manicômio Judiciário”; que “tal situação fere os princípios constitucionais, contraria as lições norteadoras da psiquiatria e só tem contribuído para a vertiginosa superlotação, trazendo transtornos de toda ordem para aquele estabelecimento de recuperação”; que “ao paciente submetido a Exame de Insanidade Mental, por força de processo Criminal é também assegurado o princípio da presunção de inocência e sua segregação, além do permissivo legal, mesmo em hospital para fins de exame, configura ilegalidade.” (BAHIA, 2003a). A outra Portaria, a de Nº 02/03, expedida no dia 30 de abril de 2003, determina que “logo após a conclusão do exame de insanidade mental do interno, deverá o mesmo ser imediatamente encaminhado ao Juízo de origem com o respectivo laudo.”, considerando que o HCT estava com sua capacidade de atendimento superada, “ocasionando superlotação e inviabilizando atendimento normal aos seus pacientes” (BAHIA, 2003b).

De fato, o número de internos naquela instituição diminuiu: em junho de 2003 eram 373, em outubro de 2003 somavam 338 (BRASIL, 2004c) e em agosto de 2007, o HCT-BA contava com 145 pessoas internadas. Porém, excetuando-se os 19 internos que faleceram no período de janeiro a outubro de 2003, não há registros sobre o destino dos demais. Essa é uma questão importante: qual foi o encaminhamento dado a essas pessoas? Elas estão sendo assistidas nos serviços de saúde mental existentes em Salvador e no interior do Estado da Bahia? Como tem funcionado tais serviços no atendimento aos egressos do HCT-BA? São perguntas que extrapolam o escopo da presente pesquisa, porém, devem ser norteadoras para o que se deseja em relação a um novo modelo de atenção à saúde mental às pessoas com transtorno mental autoras de delito: a sua reinserção social deve ser assistida pelo Estado em conformidade com a legislação e mecanismos já analisados no capítulo anterior, especificamente, a Lei de Execução Penal, o SUS, o Programa de Volta para Casa e a Resolução nº 5/2004 do CNPCP.

Um outro aspecto trazido pelo Censo era de que 79,9% dos internos não desenvolviam qualquer atividade ocupacional durante o dia (BRASIL, 2004c). Esta é uma questão fundamental para as mudanças que passam a ser implementadas no HCT-BA, que hoje possui um espaço específico no seu prédio para a realização de oficinas terapêuticas (pintura, artesanato, música), coordenadas por duas terapêutas ocupacionais, com o apoio de mais dois funcionários da unidade. Este espaço foi criado há dois anos, tendo sido consolidado apenas no ano de 2007. Porém, cabe salientar que as atividades atingem um número restrito de internos, visto que a maior parte deles passa o dia perambulando pelo campo de futebol, pelo pátio e pelos corredores do HCT, conforme observou-se durante a pesquisa de campo.

Percebe-se este espaço como uma espécie de “ilha” dentro do HCT, pois apesar de estar localizado dentro da estrutura antiga do prédio, fica isolado, destoando das demais características da instituição. As oficinas acabam sendo pontuais e não fazem parte de um plano terapêutico individual e nem de um programa terapêutico da instituição, podendo ser consideradas como finalidade em si mesmas. Nesse caso, “operam como ordenação do espaço/tempo institucional, tornando-se equivalentes à formas simples de ocupação e acabam por configurar espaços artificiais, descontextualizados, empobrecidos de trocas e privados de sentido” (MINAS GERAIS, 2006, p. 72). Assim, as oficinas terapêuticas não podem ser concebidas como simples entretenimentos ou formas de passar o tempo.

Esta constatação é importante para confirmar a incoerência da transformação do HCT-BA num espaço mais humano, pois, ainda comprometido com o modelo hospitalocêntrico, tendo como objetivo maior a segregação das pessoas ali internadas. A sua vinculação a um sistema integrado de atenção em saúde mental possibilitaria “compreender os projetos singulares e o lugar das oficinas na produção de redes de trocas nos territórios e de laços sociais e na invenção de projetos para a vida de seus participantes” (MINAS GERAIS, 2006, p. 72). Esta questão deve fazer parte de um projeto de reorientação do modelo de atenção ao louco infrator.

No relatório do Censo constam, ao final, propostas de medidas internas e externas, dentre elas: reforma para melhoria das condições físicas e higiênicas do prédio; estrutura com um número menor de leitos, sendo estes para “pacientes em crise ou agudos”; leitos para lares abrigados; leitos de observação para realização de laudos psiquiátricos/psicossociais; realização de oficinas terapêuticas, laborais e culturais; elaboração de um projeto terapêutico; instituição de grupos para implantar esse novo projeto, com a contratação de mais funcionários; implantação de um Programa de educação continuada; implantação de dez residências terapêuticas para receber as pessoas que estão internadas há muito tempo no HCT além da implantação de CAPS em todo o Estado, visando expandir a rede de saúde mental (BRASIL, 2004c). Aqui, cabe considerar que, excetuando-se as questões do aumento do número de profissionais e das oficinas terapêuticas, já abordadas acima, as demais propostas serão analisadas mais adiante, juntamente com as obrigações determinadas pelo TAC do MPE.

Outro documento importante para esta análise é o Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário, de maio de 2004, que expõe a situação do HCT-BA no ano de 2003, considerando-a a mais grave e complexa e que, por conta da sua especificidade, deve ser reorientado “na direção de um modelo de tratamento que atenda aos reclames da Reforma Psiquiátrica, conforme previsto na Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001.” (BAHIA, 2004b). O Plano faz referência ao Censo realizado no HCT-BA para análise da situação médica, social e jurídica dos internos. Quanto às mudanças realizadas na unidade, o Plano informa que algumas medidas emergenciais foram adotadas: na sua infra-estrutura, especialmente na melhoria da limpeza e higienização; fornecimento de material de higiene e medicamentos; além de pequenos reparos; e destaca que num segundo momento foi realizado o Censo para análise da situação médica, social e jurídica dos internos.

Essas e outras mudanças serão avaliadas mais adiante, juntamente com a análise do TAC do MPE, mas é importante adiantar que configuraram-se como medidas paliativas, diante da situação de gravidade a que chegou o HCT-BA ao longo desses anos, com a permanência de características marcantes da estrutura do século XIX.

Ademais, o Plano informa que diante da necessidade de “assistência imediata a alguns casos que exigiram transferência de pacientes para hospitais da rede pública para tratamento especializado das patologias apresentadas”, procedeu-se a intervenção na assistência clínica (BAHIA, 2004b, p. 16). Informa, também, a realização do “diagnóstico situacional, pelo GT - Grupo de Trabalho, nomeado pela Portaria Interestadual nº 879, de 28 de maio de 2003, (DOE de 29/05/2003), que resultou no Relatório do Grupo de Trabalho Interinstitucional, finalizado em abril de 2004, encaminhado, oficialmente, às Secretarias da Saúde e da Justiça do Estado” (6).

Por fim, expõe que após a instauração do Inquérito Civil pelo Ministério Público Estadual, em 25 de fevereiro de 2003, objetivando “caracterizar a situação jurídica, através da apuração das reais condições de internamento, realizou-se censo jurídico, em 09/6/2003, para análise da questão legal dos internos” (BAHIA, 2004b, p. 17-8). Com relação ao que foi verificado no referido censo jurídico, ressalta que deve ser considerada a

necessidade de cooperação entre uma equipe multidisciplinar de peritos em saúde (médicos psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, e outros) e o judiciário para que trabalhando conjuntamente, na aplicação e execução da medida de segurança, possam avaliar com maior presteza qual a terapia adequada ao doente. (grifos do autor)

O mencionado relatório indica como ação externa a implantação, a médio e longo prazos, de “Residências Terapêuticas vinculadas a cuidados ambulatoriais em unidades básicas, policlínicas e ambulatórios especializados na Atenção Básica”. E como ações internas, foram apontadas “para a humanização do cuidado às pessoas que devem permanecer internadas”: a substituição do modelo hospitalar, da forma como foi concebido inicialmente, por dispositivos comunitários que ressocializem; e uma “maior qualificação de recursos humanos para a implantação de um novo Projeto Terapêutico que leve à inclusão social” (BAHIA, 2004b, p. 18).

Esse Plano Operativo apresenta, enfim, um quadro contendo a situação dos serviços de saúde e dos recursos humanos das unidades prisionais do Estado da Bahia, em julho de 2003, e com relação ao HCT consta que encontra-se em precárias condições de insalubridade e com superlotação, contando com 17 psiquiatras, 11 enfermeiras, 01 nutricionista, 01 odontólogo, 01 terapêuta ocupacional, 03 psicólogos, 02 assistentes sociais, 01 farmacêutica, 40 auxiliares de enfermagem e 01 “ag. serv. Saúde”. E, por fim, prevê a transferência gradual de internos para outras unidades, ação esta a ser definida de acordo com relatório circunstanciado elaborado pelo Grupo de Trabalho acima referido (BAHIA, 2004b, p. 19).

No que se refere à operacionalização do Plano, este prevê que no HCT “será colocada, inicialmente, 1 (uma) equipe básica de saúde, capacitada, frente à imperiosa carência de recursos humanos existente naquela unidade” (BAHIA, 2004b, p. 51). Com referência a outras questões que envolvem os internos do HCT, visando desenvolver e implantar “Programa Permanente de Reintegração Social dos pacientes sob medida de segurança”, estabelece as seguintes metas (BAHIA, 2004b, p. 57):

  • Criação de um programa de dês-hospitalização progressiva no cumprimento da medida de segurança, com a implantação de um serviço residencial terapêutico ou serviço substitutivo equivalente.
  • Promover, conjuntamente, SESAB e SJDH, campanha educativa/publicitária para sensibilização da comunidade visando a desconstrução do estigma da periculosidade do portador de transtorno mental.

Na verdade, este Programa não foi implantado e as suas metas não foram implementadas. Em janeiro de 2006 foi apresentado à SJCDH um “Plano de Ações individualizadas com vistas a desinstitucionalização de pacientes com longo período de internação e em situação confirmada de abandono”, formulado por duas profissionais do HCT, que iniciaram a sua execução naquele mesmo ano, porém, de forma isolada e pontual, sem o devido apoio logístico (já que este plano previa, dentre outras coisas, a realização de saídas terapêuticas, contatos com autoridades do interior do Estado e visitas a instituições). O que existe atualmente no HCT-BA não pode ser chamado de Programa e consiste na atuação de duas equipes de profissionais (compostas por assistente social, psicólogo e terapeuta ocupacional, cada uma), para a desinstitucionalização dos internos (em torno de 30 casos “sem vínculos familiares”) que já se encontram com carta de desinternação ou alvará de soltura, por conta da pressão exercida pelo Poder Judiciário para a liberação dessas pessoas e da determinação contida no TAC do MPE (como se verá a seguir).

Dentre as ações visando promover a reorientação do modelo de tratamento psiquiátrico existente no HCT-BA, o Plano prevê (BAHIA, 2004b, p. 58):

  • Adequação do modelo existente à Reforma Psiquiátrica, direcionando-o no sentido da humanização, desospitalização e desinstitucionalização, conforme preconiza a Lei Federal 10.216 de 06/4/2001.
  • Adequação do funcionamento do HCT às normas do SUS relativas a hospitais psiquiátricos.

E quanto às metas, prevê:

  • Criação de grupo de trabalho intersetorial para acompanhamento, supervisão técnica e avaliação dos projetos terapêuticos
  • Realização de 02 (dois) seminários intersetoriais com participação de representantes das Secretarias Estaduais de Saúde, Justiça e Direitos Humanos, Educação, Trabalho e Bem Estar Social, Ministério Público, Organizações Não Governamentais e de Controle Social
  • Realização de diagnóstico situacional do HCT, por Grupo de Trabalho instituído da Portaria SESAB /SJDH nº 879, (de 28/5/03), que procedeu ao levantamento da situação clínica, jurídica e social dos internos, utilizando-se de: avaliação do PNASH (Plano Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares); estudo sócio-demográfico de cada paciente; estudo de condições de cada família; mapeamento da rede de apoio existente; ambiente físico e da circulação existente; plano de assistência e projeto terapêutico individualizado.

Durante a realização da pesquisa de campo, verificou-se que aquelas ações não foram implementadas e que a maior parte das metas não foi alcançada. Vale frisar que nesse Plano consta, ainda, a seguinte observação: “deverá ser garantida a participação de trabalhadores e pacientes neste processo de diagnóstico situacional, conforme recomendação do Ministério da Saúde.” (BAHIA, 2004b, p. 58). Evidencia-se, portanto, a real necessidade de envolver os profissionais que trabalham no HCT num projeto de sensibilização e de educação permanente visando as mudanças previstas no Plano e nos outros instrumentos e mecanismos de garantia de direitos daquele grupo de pessoas ali internadas.

Por fim, outro documento coletado a ser analisado é o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado em 13 de dezembro de 2004 pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MPE), pela Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJCDH) (7) e pela Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB), o qual é oriundo do Inquérito Civil nº 04/2003, instaurado para apurar as condições de internamento de pacientes no HCT-BA. Este TAC foi proposto por duas Promotoras de Justiça vinculadas, respectivamente, à Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital e ao Centro de Apoio às Promotorias de Justiça da Cidadania (CAOCI) e estabelece cláusulas e condições para adequação do HCT-BA às diretrizes da reforma psiquiátrica (BAHIA, 2004a).

Analisando o referido documento, percebe-se que o órgão ministerial, para estabelecer as cláusulas, fundamentou-se na normativa nacional e estadual - Constituição Federal, Lei Orgânica da Saúde (LOS), Lei nº 10.216/2001, Lei de Execução Penal, Código Penal, Portaria MS/SAS nº 224/92, Resoluções nº 04 e 05 de 2004 do CNPCP, Portaria Interministerial nº 1777/2003, Constituição do Estado da Bahia - e em documentos internacionais - Pacto de San José da Costa Rica e Declaração de Caracas -, ressaltando os princípios inseridos no artigo 7º da LOS. Além disso, salientou a função institucional do Ministério Público de “exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual” (BAHIA, 2004a, p. 5), prevista na Lei nº 8.625/1993 e nas Constituições referidas, e as observações contidas no Relatório final do Grupo de Trabalho já citado acima.

Após a fundamentação legal, o TAC apresenta as cláusulas e condições que devem ser cumpridas pela SJCDH e pela SESAB, tendo dividido-as por assunto, conforme passa-se a descrever e analisar a seguir.

O primeiro bloco de cláusulas (da primeira à oitava) versa sobre a estrutura do prédio onde funciona o HCT-BA e seus equipamentos. Quanto à primeira cláusula, assevera que “em face da carência de estrutura física e do estado de deterioração em que se encontrava” o prédio onde está instalado o HCT-BA “quando das primeiras inspeções do Ministério Público, e que ainda remanesce em alguns aspectos”, a SJCDH deve “prosseguir nas obras que vem realizando [...] naquele nosocômio, para viabilizar a melhoria da qualidade de vida das pessoas que ali estão internadas, bem como dos servidores públicos”, de acordo com Relatório e Cronograma anexos ao TAC (8) (BAHIA, 2004a, p. 7).

A segunda cláusula determina que a SJCDH “deverá manter, no prédio do HCT, uma equipe de limpeza e higienização das alas de internamento e de toda a área onde se localiza o hospital” (BAHIA, 2004a, p. 7). A terceira cláusula, por sua vez, salienta que a SJCDH deve solicitar, anualmente, uma avaliação técnica das condições de salubridade do prédio e de suas instalações, aos órgãos públicos responsáveis pela saúde pública e segurança das edificações, encaminhando cópia dos documentos das inspeções ao MPE para acompanhamento e monitoramento do TAC.

A cláusula quarta (BAHIA, 2004a, p. 8) diz respeito à obrigatoriedade da SJCDH a

manter o mobiliário das alas e enfermarias dos internos em condições de uso, elaborando um programa de aquisição, armazenamento e distribuição de colchões, roupas de cama, fardamento e todo material de higiene pessoal dos internos em número suficiente para atender a demanda individual de cada interno no hospital.

Na quinta cláusula, consta a obrigatoriedade da SJCDH “alterar a localização dos Postos de Enfermagem, de acordo com os critérios médicos e estruturais da Unidade”, providenciando a sua relocação dos centros das alas do internamento para o início destas, para promover “melhor condição de trabalho para as auxiliares de enfermagem e outros servidores que trabalham naquele setor”, na fase de transição para um novo modelo assistencial a ser adotado para as pessoas com transtorno mental em conflito com a lei (BAHIA, 2004a, p. 8).

A cláusula sexta determina que a SJCDH deve instalar no interior das alas de internamento, no prazo de 60 dias, equipamentos de comunicação (rádios transmissores e interfones), para assegurar “em casos de urgência, o pronto acionamento do suporte emergencial necessário” (BAHIA, 2004a, p. 8). A cláusula sétima prevê a obrigação daquela Secretaria de instalar uma enfermaria clínica, visando o “atendimento de intercorrências médicas”, no prazo de 180 dias.

A cláusula oitava refere-se à SESAB, e estabelece que esta deve implantar, em articulação com a SJCDH, as residências terapêuticas para “abrigar, cuidar e tratar as pessoas que estão no HCT por abandono e exclusão social, sem quadro psíquico ou jurídico que justifique sua permanência naquele hospital, necessitando de moradia e tratamento terapêutico” (BAHIA, 2004a, p. 9), fundamentando-se no artigo 5º da Lei nº 10.216/2001. Vale ressaltar que esta cláusula prevê, ainda, que tais serviços residenciais terapêuticos devem estar vinculados aos “cuidados ambulatoriais em unidades básicas, policlínicas e ambulatoriais especializados na atenção básica”, e cita os CAPS e outros serviços de atenção localizados em Salvador e em 10 municípios do interior do Estado, atendendo aos critérios de procedência dos internos.

Importante notar também o parágrafo único desta cláusula oitava, que estabelece que a SESAB (BAHIA, 2004a, p. 10)

adotará uma política de implantação de CAPS e outros dispositivos de cuidados ambulatoriais no Estado da Bahia, expandindo a rede de atenção, conforme seu Plano Plurianual, para que recursos descentralizados possam vir a constituir uma descentralização do cuidado clínico e jurídico através das comarcas e da municipalização dos cuidados, cujo programa deve ser apresentado ao Ministério Público do Estado da Bahia. (grifos do autor)

A segunda parte do TAC versa sobre a saúde, os medicamentos e o material de consumo dos pacientes (da cláusula nona à décima-primeira). Do exame destas cláusulas, verifica-se que a obrigatoriedade no cumprimento destas passa a ser das duas Secretarias, SJCDH e SESAB, conjuntamente.

A cláusula nona estabelece a elaboração de um plano de aquisição de todos os medicamentos necessários ao tratamento dos internos, de forma que atenda às “diversas enfermidades”, que estejam continuamente disponíveis e que haja um “estoque compatível com o sistema hospitalar” (BAHIA, 2004a, p. 10). Já a cláusula décima refere-se à obrigatoriedade de implementar o Plano Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário, visando fixar “a política e as diretrizes do Governo no que diz respeito à atenção à saúde da população carcerária, especialmente a psiquiátrica, encaminhando cópia do mesmo ao Ministério Público do Estado da Bahia” (BAHIA, 2004a, p. 10-11).

Nesse caso, cabe destacar que à época da assinatura do TAC, já existia o Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário (do mês de maio de 2004), conforme analisado acima, faltando a sua implementação a partir das medidas e ações previstas no mesmo. De acordo com informações da SJCDH (mês de agosto de 2007), este Plano está sendo revisado.

Além disso, a cláusula décima primeira estabelece que, no momento da internação e durante o período de permanência dos pacientes no HCT, devem ser oferecidas condições ao corpo clínico daquela unidade para submetê-los a programas de busca ativa e Pesquisa de Tuberculose, dentre outras doenças, vacinação e a outros programas de saúde pública existentes (BAHIA, 2004a, p. 11).

A terceira parte do TAC trata do Protocolo para tratamento hospitalar e da adequação à Lei nº 10.216/2001 (da cláusula décima-segunda à décima-sétima). A cláusula décima-segunda determina a criação de “programa individual terapêutico, conforme os critérios fixados pelo Ministério da Saúde”, bem como de “protocolos de rotinas que uniformizem os procedimentos realizados desde o ingresso do paciente até a sua alta, constando tais anotações em ficha individual anexadas aos prontuários” (BAHIA, 2004a, p. 11).

A cláusula décima-terceira chama à atenção para diálogo necessário com o Poder Judiciário, visando adequar a internação e a desinternação das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei ao disposto na Lei nº 10.216/2001, destacando o direito da pessoa ser esclarecida sobre a necessidade ou não da sua internação involuntária.

Com a cláusula décima-quarta, o órgão ministerial determina o cumprimento, pela SJCDH e pela SESAB, da Resolução nº 5/2004, do CNPCP, resgatando os princípios e dispositivos inseridos na Lei nº 10.216/2001 e trazendo as seguintes necessidades: “política intersetorial específica para os pacientes inimputáveis”; “atenção aos pacientes com ações dirigidas aos familiares, voltadas à construção de projetos que visem o desenvolvimento da cidadania e à geração de renda”; “proposição do credenciamento do HCT à rede de cuidados do SUS” (BAHIA, 2004a, p. 12).

Nesta cláusula constam dois parágrafos que merecem ser transcritos (BAHIA, 2004a, p. 13):

Parágrafo Primeiro: Nos municípios baianos onde houver serviços de atenção básica de saúde mental, os pacientes deverão ser tratados na rede SUS, de acordo com a terapêutica prescrita pelo médico, em CAPS, NAPS ou outras unidades básicas, ambulatoriais especializadas do Estado, devendo sempre a Direção do HCT encaminhar Ofício ao Juiz da Comarca e ao Promotor de Justiça, demonstrando a viabilidade deste tratamento e o benefício para a saúde mental do paciente com o objetivo de orientar o profissional do Direito a adequar a Medida de Segurança à terapia indicada pelos peritos.

Parágrafo Segundo: No sentido de assegurar ao paciente os direitos garantidos pela Constituição Federal e legislação já mencionada, a alta dos pacientes deverá ser devidamente orientada em relatório que registre o diagnóstico, a terapêutica indicada e o Serviço de Saúde onde deverá ser realizada, através dos serviços de referência e contra-referência do SUS, pactuada no Programa de Pactuação Integrada -PPI, utilizando, quando necessário, o Programa de Tratamento Fora do Domicílio. Este relatório deverá ser encaminhado para conhecimento e fiscalização ao Promotor de Justiça da Comarca.

As cláusulas seguintes, décima-quinta e décima-sexta, referem-se às perícias: a primeira determina a realização imediata de um mutirão de peritos médicos num tempo mínimo de 180 dias, para realizar todas as perícias pendentes dos pacientes internados no HCT; já a segunda estabelece que a SJCDH deve “manter um quadro de médicos peritos para realização de perícias psiquiátrico-forenses nos pacientes do HCT, bem como naqueles oriundos do Sistema Penitenciário do Estado da Bahia” (BAHIA, 2004a, p. 14).

Na cláusula décima-sétima consta o dever de articulação entre a SJCDH e a Secretaria de Trabalho e Ação Social e de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais (atual Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza -SEDES), e também com as “Secretarias do Trabalho do Estado e de cada Município de onde o paciente seja oriundo”, visando encontrar uma solução de acolhimento para os internos em situação de abandono familiar e “com possibilidade de tratamento ambulatorial ou em alta”. No seu parágrafo único, refere-se à importância de cumprir o que está disposto na Lei nº 10.216/2001 (art. 2º) e na Lei nº 10.708/2003 (art. 1º e 3º) para “mitigar os efeitos da internação psiquiátrica desnecessária” (BAHIA, 2004a, p. 14), numa alusão específica ao Programa de Volta para Casa.

A quarta parte do TAC diz respeito aos recursos humanos do HCT (da cláusula décima-oitava à vigésima-primeira). A cláusula décima-oitava estabelece um prazo de 180 dias para a SJCDH providenciar a “implantação do setor administrativo diverso do setor clínico no HCT, estabelecendo, com clareza, as atribuições das suas coordenações e as responsabilidades respectivas de cada chefia que responderá pela eficiência do serviço” (BAHIA, 2004a, p. 14).

As cláusulas décima-nona, vigésima e vigésima-primeira referem-se, respectivamente, à necessidade de fazer um dimensionamento dos recursos humanos disponíveis para a capacidade e demanda do trabalho visando garantir a qualidade do atendimento; de promover a capacitação sistemática dos profissionais que atuam no HCT, para atender à atual política nacional de atenção à saúde mental; e de “formular uma política de fixação do número de vagas e leitos” do HCT, conforme a sua capacidade, adequando os recursos humanos disponíveis, e de estabelecer normas de funcionamento da unidade, bem como, “normas e critérios para o recebimento de pacientes, para perícia ou internação” (BAHIA, 2004a, p. 15).

A quinta e última parte do TAC refere-se às responsabilidades, médica e da administração (da cláusula vigésima-segunda à vigésima-sexta). Consta a determinação de dar conhecimento do TAC a todos os servidores do HCT e o pagamento de multa diária pelas SJCDH e SESAB, no caso de descumprimento das cláusulas. As três últimas estabelecem, respectivamente: o foro de Salvador para dirimir questões decorrentes do TAC; que este não prejudica nem substitui a ação da Vigilância Sanitária; e que os prazos determinados começam a contar do dia da assinatura do mesmo.

Cabe ressaltar que o Ministério Público Estadual apresenta uma nova perspectiva na garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito, na medida em que extrapola o âmbito do Direito Penal e da Execução Penal, trazendo os princípios orientadores do SUS, da Reforma Psiquiátrica, da legislação de saúde mental e dos direitos humanos, estabelecendo obrigações para Secretarias de Estado distintas e envolvendo outros atores para a consecução das mudanças do modelo anacrônico de tratamento verificado no HCT-BA.

Enfim, passa-se a analisar as mudanças implementadas no HCT-BA de acordo com a documentação relacionada acima e os registros em diário de campo a partir das visitas à instituição, assinalando as violações de direitos humanos observadas. Saliente-se que algumas questões como o incremento no número de funcionários, as reinternações e as oficinas terapêuticas já foram objeto de análise acima.

Quatro anos depois das mortes ocorridas no ano de 2003, que acarretaram a mobilização da sociedade civil e dos órgãos públicos de promoção e defesa de direitos, e quase três anos depois da assinatura do TAC, verifica-se que houve algumas mudanças, inclusive em cumprimento ao referido Termo: reparos na estrutura física do HCT; instalação de equipamentos de comunicação para utilização em casos de urgência; os postos de enfermagem foram relocados para o início das alas de internamento; e a instalação de uma enfermaria clínica, que conta com 3 enfermeiras, 15 auxiliares de enfermagem e 1 médica. O HCT-BA não foi cadastrado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e, por isso, não integra a rede do SUS enquanto Hospital Psiquiátrico, permanecendo com todas as características de uma unidade prisional, com uma estrutura inadequada para a atenção à saúde mental das pessoas ali internadas.

O que se observa é que ainda perdura a dupla função do HCT-BA, enquanto instituição de custódia e de tratamento, porém, com a predominância do caráter prisional e, conseqüentemente, da vigilância, tendo em vista, por exemplo, a quantidade de agentes penitenciários no quadro de pessoal: mais de um terço dos funcionários (91 de um total de 234). Para Goffman (2003, p. 18), a função da vigilância nas instituições totais é “fazer com que todos façam o que foi claramente indicado como exigido, sob condições em que a infração de uma pessoa tende a salientar-se diante da obediência visível e constantemente examinada dos outros”. Esta realidade confirma que a pessoa ali internada perde o direito de administrar sua liberdade e suas propriedades e evidencia que a instituição não tem uma finalidade terapêutica, restringindo-se ao caráter custodial.

Nesse caso, a reclusão das pessoas com transtornos mentais autoras de delito em instituições como o HCT constitui-se um dos maiores problemas acarretados pela “medicalização” da loucura. O internamento representa o seu seqüestro do meio social, violando os princípios da liberdade e igualdade de direitos e deveres. Como afirma Ileno Izídio da Costa (2004, p. 85), ao falar sobre a constituição dos manicômios judiciários, “[...] as ações terapêutica e diagnóstica eram mediadas pelo sistema jurídico penal, servindo, em última instância, como meio de promover a reclusão dos doentes.”

Diante da realidade do HCT-BA, evidencia-se que tal instituição, ao custodiar pessoas com transtornos mentais que cometeram delito, com o objetivo de tratá-las, não observa alguns princípios e garantias penais e processuais penais previstos na Constituição Federal, conforme foi exaustivamente demonstrado nos documentos analisados.

No que se refere aos princípios previstos na Constituição, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF) e constitui-se como princípio orientador de todas as sanções previstas no ordenamento jurídico. Os princípios constitucionais instituídos em favor do acusado e da pessoa presa também devem ser considerados para as pessoas submetidas à medida de segurança. Durante as etapas da investigação preliminar, da ação penal e da execução da pena ou da medida de segurança, o tratamento dispensado à pessoa presa provisoriamente, à pessoa condenada e à pessoa internada, deve ser norteado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

De acordo com o art. 5º, inc. LXXVIII, da CF, o tempo de duração dos processos deve ser razoável. Esse dispositivo constitucional deve ser observado, principalmente, nas ações penais interpostas contra inimputáveis. O excesso prazal, no julgamento do processo de acusado inimputável implica conseqüências graves, tendo em vista que por uma situação de saúde, vê-se cerceado em sua capacidade de defesa, podendo acarretar danos irreparáveis à sua vida.

Nesse caso, vale ressaltar também a questão da prisão arbitrária, vedada pelo artigo 9º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A perícia psiquiátrica, por ser subjetiva e valorativa, torna-se instrumento de detenção arbitrária. Com a instauração do incidente de insanidade mental, o suposto autor do crime comumente é encaminhado ao HCT para realização de exame médico-legal sob regime de internação psiquiátrica compulsória. Vale lembrar que para a realização de tal exame não há necessidade de internação psiquiátrica, porém, a pessoa acaba sendo internada compulsoriamente no HCT, permanecendo ali por longo período, contrariando o que preceitua a Lei nº 10.216/2001.

Para Vitória Bandeira (2006, p. 39), Defensora Pública com atuação no HCT-BA, a “Internação psiquiátrica no HCT é realizada, via de regra, sem o esgotamento de recursos extra-hospitalares e, tampouco sem que seja ouvida a Curadoria Especial e a Defesa, exercida pelo órgão constitucional competente, a Defensoria Pública do Estado.” Nessa seara, a Constituição do Estado da Bahia determina no seu artigo 4º, inc. XVI, inserido no Título sobre Direitos e Garantias Fundamentais, no que diz respeito à pessoa com transtorno mental: “ninguém será internado compulsoriamente em razão de doença mental, salvo em casos excepcionais definidos em parecer médico pelo prazo máximo de quarenta e oito horas, findo o qual só se dará a permanência mediante determinação judicial”.

Conforme observado nos documentos analisados, a medida de segurança pode significar uma reclusão perpétua. Os princípios do devido processo legal e da ampla defesa impedem a aplicação, à pessoa com transtorno mental que cometeu um delito, de uma penalidade indefinida, pois não se pode mais considerar o isolamento como um tipo de tratamento (CARVALHO NETTO, 2005).

Outros princípios previstos na Constituição foram violados: da liberdade, pois a pessoa com transtorno mental autora de delito é restringida no seu direito de ir e vir e não tem a sua segurança pessoal assegurada; da presunção de inocência, pois é imposta uma medida restritiva de liberdade antes de ser reconhecida a responsabilidade criminal; da individualização da sanção penal e da razoabilidade do prazo processual; da legalidade, pois o Estado não pode interferir no direito à liberdade das pessoas por prazo indefinido; do respeito à integridade física e moral do interno; e da proibição de penas cruéis ou de caráter perpétuo (art. 5º, inc. XLIX, e XLVII, “b” e “c”, LIV, LVII, da CF). Por fim, ressalte-se o princípio da igualdade, pois a lei de reforma psiquiátrica não faz menção à pessoa com transtorno mental autora de delito, porém todos os dispositivos nela previstos devem alcançá-la, de acordo com esse princípio. Se exige, ainda, em relação a essa pessoa, o direito constitucional à igualdade na sua diferença (FÁVERO, 2004).

No que se refere aos direitos civis, cabe ressaltar uma informação contida no Plano Operativo Estadual de Saúde no Sistema Penitenciário: no ano de 2003, havia 40 internos do HCT-BA de um total de 364, o equivalente a 11%, com idade desconhecida (BAHIA, 2004a, p. 14). Este dado revela que o acesso aos benefícios da Previdência Social e outros decorrentes da nova legislação de saúde mental pode ficar prejudicado, sendo esse grupo de pessoas merecedor de tratamento mais particularizado, por sua condição de hipossuficiência.

Com referência ao direito à saúde, tanto a Constituição Federal (art. 198, II), como a Lei do SUS, Lei nº 8.080/1990 (art. 7º, II), referem-se ao atendimento integral do paciente, significando um conjunto de ações e serviços preventivos e curativos, incluindo, na área da saúde mental, a psicoterapia, a reabilitação e a distribuição gratuita de medicamentos. Porém, ainda são poucos os avanços nesse sentido, conforme observou-se a realidade atual do HCT, que não tem assimilado os preceitos constitucionais do direito à sáude (art. 6º e 196 a 198). E tendo em vista os princípios constitucionais da igualdade de tratamento, dignidade da pessoa humana, legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, deve-se aplicar medida de segurança de acordo com os novos serviços de atenção à saúde.

No que diz respeito ao direito ao convívio sócio-familiar, observa-se que a sentença referente à pessoa com transtorno mental autora de delito está vinculada à internação compulsória em HCT, o que implica a perda do vínculo familiar para os internos, em face da extensão territorial do Estado e da localização do referido hospital na capital, distante dos domicílios daquelas pessoas oriundas do interior, agravada pela precária situação socioeconômica dos familiares que se vêem impossibilitados de visitá-los. O tratamento psiquiátrico sob regime de internação no HCT implica em perda dos laços familiares em razão da distância dos seus domicílios não permitir a preservação dos contatos com seus familiares.

Acerca da defesa dos direitos dos internos, durante a pesquisa de campo, verificou-se que a Defensoria Pública tem sido mais atuante no HCT-BA, diante das situações irregulares que ainda ocorrem, através do trabalho de duas Defensoras Públicas que atendem as pessoas ali internadas. A atuação da Defensoria se intensificou após a situação vivenciada dos óbitos no ano de 2003. Ademais, este órgão passou a assimilar na defesa daquelas pessoas a legislação referente à Reforma Psiquiátrica, visando demonstrar ao Poder Judiciário que esta nova legislação garante os direitos das pessoas com transtornos mentais e cria novos dispositivos de atenção em saúde mental, que devem ser observados também para essas pessoas que cometem crime.

No que diz respeito à atuação do Judiciário, o fato da decisão de internar e desinternar ainda hoje ser do juiz, denota que os pressupostos legais que o autorizam estão defasados, sendo necessária uma revisão dos institutos jurídicos que compõem a medida de segurança. É o caso da desinternação ou liberação condicional, prevista no artigo 97, § 3º do Código Penal, e conhecida por “salvo conduto”.

O salvo conduto acaba reafirmando a periculosidade enquanto estratégia de afastamento da pessoa com transtorno mental autora de delito do convívio social, pois autoriza novas reinternações pelos mais diversos motivos, e, em alguns casos, não se verifica um quadro psicopatológico para justificá-las. Observando a legislação penal e os novos princípios da Lei nº 10.216/2001, compreende-se que o artigo 97, § 3º do CP encontra-se revogado, tendo em vista que a referida lei, no seu artigo 4º determina que “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.” Sendo assim, não há que se falar em desinternação ou liberação condicional: uma vez desinternado, o interno somente deverá voltar ao HCT caso cometa novo delito e seja instaurado incidente de insanidade mental, garantindo-se, assim, o devido processo legal, através do contraditório e da ampla defesa.

Nesse caso, vale ressaltar a publicação do Provimento Nº CGJ-14/2007, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado da Bahia, em 20 de agosto de 2007 (BAHIA, 2007, p. 16), que determina no seu artigo 18 que o exame de insanidade mental deve ser realizado “sempre que possível, independentemente de internação, mediante marcação prévia junto ao HCT, na Capital do Estado, caso não seja possível sua realização junto à rede pública responsável pela saúde mental, situada na sede ou nas proximidades do juízo processante.” Nele consta, ainda, que o HCT “destina-se ao cumprimento de medidas de segurança de internação, aplicadas em todas as Comarcas do Estado da Bahia, bem como à internação provisória para a realização de perícia” e tem capacidade de 280 vagas (BAHIA, 2007, p. 17).

No referido Provimento Nº CGJ-14/2007, observa-se um avanço no que diz respeito à possibilidade do atendimento do louco infrator na rede de atenção à saúde mental, de acordo com o que prevê o seu artigo 15: “A medida de segurança de tratamento ambulatorial deverá ser executada pelo juízo sentenciante e cumprida junto à rede de saúde pública, preferencialmente em Centro de Atendimento Psicossocial - CAPS.” Quanto à medida de segurança de internação, o artigo 16 determina que esta deverá ser, preferencialmente, executada e cumprida em hospital especializado, podendo, quando haja necessidade, encaminhar o paciente ao HCT. Porém, no que tange às medidas de segurança aplicadas pelos Juízos Criminais da Comarca da Capital, serão executadas pelo Juízo da Vara das Execuções de Penas e Medidas Alternativas da Capital, devendo ser cumpridas no HCT, conforme prevê o seu artigo 17.

Embora haja um avanço no que se refere à possibilidade do tratamento ambulatorial ser realizado num CAPS, o referido Provimento prevê para as pessoas que são julgadas na Comarca de Salvador apenas a internação no HCT, desconsiderando, assim, a existência dos serviços substitutivos de atenção em saúde mental implantados na capital, como possibilidade de cuidado das mesmas, ferindo, portanto, o princípio da igualdade. Dessa forma, não se pode vislumbrar que apenas com este documento, se modifique a assistência àquelas pessoas. Como asseverou Rotelli (1992b, p. 96),

É difícil saber se as mudanças em psiquiatria podem ser determinadas por lei ou se são determinadas sobretudo através de modificações culturais, de alterações importantes dos aparatos técnicos, de modificações no campo disciplinar, no campo da cultura popular, no campo da cultura dos profissionais.

Nesse caso, a mudança de cultura deve perpassar também os profissionais do Poder Judiciário, especialmente aqueles que atuam no âmbito do Direito Penal, que ao longo da história se utilizaram do discurso psiquiátrico para se isentar e justificar as suas decisões, conforme explicita Foucault (1997, p. 23):

uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito poder de punir; é, ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga.

Não se trata somente de criar instrumentos jurídicos para remediar uma situação, como foram as Portarias de nº 01/03 e 02/03, expedidas pelo Juiz da VEPMA, mas criá-los de forma integrada com os setores que precisam estar envolvidos num projeto de reorientação de um modelo, como é o caso do HCT. A interdisciplinaridade é elemento fundamental do processo terapêutico, sendo que as diversas áreas devem se articular para oferecer um acompanhamento integral.

O que deve-se observar é a garantia dos direitos humanos na sua integralidade para as pessoas que estão no HCT-BA e para os egressos da instituição. Daí a construção de uma espécie de força-tarefa no âmbito do Governo Estadual, envolvendo a SJCDH, a SESAB e a SEDES, que, assimilando o princípio da intersetorialidade e as características da indivisibilidade e da interdependência dos direitos humanos, iniciou, em setembro de 2007, um grupo de trabalho para reorientar o modelo de atenção à saúde das pessoas com transtornos mentais autoras de delito no Estado da Bahia.

Por fim, deve-se ressaltar, nesse processo, a participação da sociedade e da família, que, em muitos momentos, figuraram como um dos níveis de controle social, juntamente com a polícia, mobilizadas por um medo que marca a forma de relação com a “loucura-criminosa” (COSTA, 2004). O envolvimento da família e da comunidade, em outros moldes, é fundamental para que a política de desospitalização não signifique uma política de abandono pelo Estado e de desamparo de cuidados.

3. Garantindo os direitos humanos dos loucos infratores: um caso contra-hegemônico

Na perspectiva dos direitos humanos, a experiência acumulada há mais de seis anos pelo Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator (PAI-PJ) do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (9) aponta algumas possibilidades concretas de reorientação da atenção à saúde das pessoas com transtorno mental autoras de delito. O PAI-PJ promove o tratamento em saúde mental na rede pública de saúde, através do acompanhamento da aplicação das medidas de segurança ao agente infrator, oferecendo aos juízes subsídios para decisão nos incidentes de insanidade mental. Estruturado de forma multidisciplinar, este programa, pioneiro no país, sugere a aplicação a cada caso de uma medida singular, tensionada pelos princípios normativos universais (BARROS, 2003). O PAI-PJ inaugura, assim, uma ruptura com o processo histórico e dogmático, instaurando, segundo Barros (2006, p. 3), “o conceito da inserção no cerne de sua ação, atuando em qualquer processo criminal onde um portador de sofrimento mental esteja na condição de réu”.

A experiência desse Programa, diferenciando-se das práticas tradicionalmente exercidas em relação aos “loucos infratores”, revela que a responsabilidade pelo crime cometido restaura a dignidade perdida quando foi decretada a inimputabilidade. O seu diferencial é percebido na realização da mediação entre a clínica, o ato jurídico e o social. De acordo com a coordenadora do PAI-PJ (BARROS, 2003, p. 120), “Os casos de inimputabilidade estabelecida pelo ordenamento jurídico mostram quão necessário se torna para a clínica da psicose que o Direito convoque o sujeito a responder pelo seu crime, a produzir sentido lá onde o ato se fez.”

Sobre esta questão, Quinet (2001, p. 172) observa que sob a ótica da psicanálise “o sujeito é sempre responsável por sua posição subjetiva, seja ele neurótico, psicótico ou perverso”, sendo responsável pelos seus sintomas. E afirma ainda que, “Todo ato tem uma motivação consciente, inconsciente ou delirante, pois como ato realizado por um ser humano, é efetuado e apreendido numa rede de sentido.” É a partir desse olhar que o PAI-PJ possibilita a convocação da pessoa com transtorno mental autora de delito a responder pelo seu ato: respondendo publicamente por sua ação através dos estabelecimentos das penas substitutivas e, ao mesmo tempo, tendo o acompanhamento de saúde necessário.

Conforme dados do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (10), desde 2001, já passaram pelo Programa mais de 430 pacientes. De acordo com estes dados, 199 pessoas são atendidas pela equipe do PAI-PJ, sendo que 160 estão cumprindo medida de segurança em casa, junto aos seus familiares, trabalhando ou estudando. E dos 39 pacientes que ainda estão em regime de internação, 26 já exercem atividades de inserção social. Consta, ainda, que o “índice de reincidência é praticamente zero, sendo que nenhum dos pacientes condenados pela prática de crime violento voltou a cometê-lo.” Além disso, informa:

são parceiros do programa a Secretaria de Estado da Defesa Social, as Secretarias de Saúde do Estado e do Município de Belo Horizonte, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), a Escola Brasileira de Psicanálise, o Fórum Mineiro de Saúde Mental, o Centro Universitário Newton Paiva, entre outros. (11)

Registre-se que as experiências dos participantes deste Programa já foram apresentadas em universidades da França e no Fórum Social Europeu, realizado no ano de 2006 em Atenas. E no Brasil, o PAI-PJ inspirou a criação de outro Programa estadual, o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), implantado no Estado de Goiás, através da Portaria nº 058/2006 GAB/SES (12), o qual opera com o apoio financeiro e técnico do Ministério da Saúde (BRASIL, 2007).

Vislumbra-se, assim, a possibilidade de operacionalizar uma dinâmica que assimile tanto o princípio da Integralidade, quanto o da Eqüidade, na perspectiva do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos direitos humanos. A reorientação do modelo para o tratamento no território reduz a necessidade de internação hospitalar, possibilitando a reinserção social dessas pessoas. Esta lógica, centrada na singularidade do ser humano e na sua cidadania, supera o modelo assistencial hegemônico, inspirado na presunção de periculosidade, que faz com que tais pessoas sejam segregadas no HCTP até que cesse o perigo que anunciam.

Observa-se que somente com um sistema baseado na garantia de direitos, implementado a partir de um trabalho interdisciplinar, pautado nos princípios da Reforma Psiquiátrica, é possível transformar o modelo de atenção à saúde das pessoas com transtornos mentais autoras de delito. Nesse sentido, a subjetividade e a cidadania dessas pessoas são condições que devem ser pautadas em qualquer proposta de tratamento em saúde mental, produzindo a atenção e o cuidado no lugar do abandono e do descaso.

Notas

1. Este Plano faz referência ao Relatório do Grupo de Trabalho Interinstitucional (nomeado pela Portaria Interestadual nº 879, de 28 de maio de 2003), finalizado em abril de 2004, sobre o diagnóstico situacional do HCT-BA.

2. Conforme ofício contendo relatório datado de 6 de fevereiro de 1939, encontrado na Biblioteca do Conselho Penitenciário da Bahia.

3. Dados coletados num documento do Departamento de Assuntos Penais da Secretaria de Justiça, datado de 08 de julho de 1987, denominado: “DADOS INFORMATIVOS SOBRE O MANICÔMIO JUDICIÁRIO”.

4. Conforme documento fornecido pelo setor de recursos humanos do HCT-BA no mês de agosto de 2007.

5. De acordo com a relação de pacientes internados no HCT-BA referente ao mês de agosto de 2007.

6. Este Grupo de Trabalho era composto por oito membros representativos de diversas instâncias e foi designado para avaliar a situação clínica, jurídica e social dos internos, além da situação física do Hospital de Custódia e Tratamento, devendo entregar um relatório circunstanciado até o dia 29/08/2003 (BAHIA, 2004a, p. 20).

7. Cabe informar que a Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJDH) passou a se chamar Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJCDH) no ano de 2007, conforme seu novo Regimento, aprovado pelo Decreto nº 10.388, de 27 de junho de 2007.

8. A autora não teve acesso aos documentos anexados ao TAC: Relatório e Cronograma de Execução.

9. Ver Portaria Conjunta nº 25/2001, que cria, no âmbito da comarca de Belo Horizonte, o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário portador de sofrimento mental -PAI-PJ.

10. Informações extraídas do sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

11. Conforme informações extraídas do sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

12. Informações extraídas do sítio eletrônico da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás.