ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Capítulo III
Direitos humanos e loucos infratores

Ludmila Cerqueira Correia, 2009

1. Concepção contemporânea dos direitos humanos

Após a Segunda Guerra Mundial, foi criada, em 26 de junho de 1945, a Organização das Nações Unidas. Diante das atrocidades cometidas e do balanço realizado pelos vencedores da guerra, impôs-se à comunidade internacional o resgate das noções de Direitos Humanos, iniciando-se, assim, os trabalhos que redundaram na "Declaração Universal dos Direitos do Homem", adotada e proclamada pela Resolução número 217 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 (TRINDADE, 2002).

Segundo Piovesan (2004a, p. 44), a referida Declaração "demarca a concepção inovadora de que os direitos humanos são universais" e ainda consagra que esses direitos "compõem uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os direitos civis e políticos hão de ser conjugados com os direitos econômicos, sociais e culturais". E ela explica (PIOVESAN, 2005, p. 44-5):

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, com a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. A Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade.

No plano internacional, considera-se que a Declaração de 1948 inaugurou uma concepção contemporânea de Direitos Humanos, na medida em que integrou os direitos civis e políticos, que vinham se desenvolvendo desde o século XVIII, aos direitos econômicos, sociais e culturais, demandados nos séculos XIX e XX pelo movimento operário (TRINDADE, 2002). Esta noção é importante para superar a visão compartimentalizada dos direitos humanos.

Para Trindade (2002, p. 191), o cerne dessa nova concepção

consiste no reconhecimento de que compõem o âmbito dos direitos humanos todas as dimensões que disserem respeito à vida com dignidade - portanto, em direito, deixam de fazer sentido qualquer contradição, ou hierarquia, ou "sucessão" cronológica entre os valores da liberdade (direitos civis e políticos) e da igualdade (direitos econômicos, sociais e culturais). Sob o olhar jurídico, os direitos humanos passaram a configurar uma unidade universal, indivisível, interdependente e inter-relacionada.

Nesse caso, vale trazer observação de Comparato (2003, p. 53), para o qual o principal benefício que a humanidade obteve do movimento socialista foi o reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social: "O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização."

A mencionada concepção contemporânea dos direitos humanos é reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, com apoio do Brasil. Ressalte-se que a recomendação da Conferência de Viena foi a de que os governos presentes naquele momento formulassem planos nacionais para a proteção e promoção dos direitos humanos (ALVES, 2003). Assim é que no Brasil, é lançado, em 13 de maio de 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos, contendo propostas de ações governamentais para criação de políticas públicas visando proteger e promover esses direitos.

O que se verifica desde o processo de internacionalização dos direitos humanos é a formação de um sistema internacional de proteção desses direitos, o qual integra instrumentos e mecanismos para garanti-los. Acrescente-se que esse sistema é composto por um sistema global e por um sistema regional, os quais são complementares e interagem em benefício das pessoas protegidas. Como afirma Piovesan (2005, p. 46), "Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, esses sistemas complementam-se, somando-se ao sistema nacional de proteção a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais."

Nessa perspectiva, dos direitos humanos como uma unidade indivisível e interdependente, previstos em instrumentos nacionais e internacionais, é que se passa a estudar a garantia desses direitos a um grupo vulnerável, aquele das pessoas com transtornos mentais autoras de delito.

1.1. Direitos humanos e grupos vulneráveis

Diversos estudos referem-se aos refugiados, prisioneiros de guerra, apátridas, trabalhadores migrantes, dentre outros, como agrupamentos de pessoas que apresentam características de grupos vulneráveis ou revelam potencialidades para se configurarem enquanto tal. Outros estudos referem-se, ainda, a grupos especialmente desfavorecidos, quais sejam: as mulheres; as crianças e adolescentes; as minorias étnicas, religiosas e lingüísticas e populações indígenas; as pessoas idosas; as pessoas com deficiência, e dentre estas, as pessoas com transtorno mental. É o que resta confirmado, por exemplo, no relatório sobre a saúde no mundo, publicado em 2001 pela Organização Pan-Americana da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde, que trata especificamente da saúde mental, e contém um destaque para os "grupos vulneráveis e problemas especiais". Este relatório refere-se aos grupos já mencionados acima e salienta a importância da política colocar em destaque os grupos vulneráveis que apresentam "necessidades especiais de saúde mental" (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001, p. 117).

Para Lima Jr. (2001, p. 90), "A vulnerabilidade a violações de determinados grupos, portanto, combina as condições econômicas, sociais e culturais na perspectiva da determinação de limites que precisam ser ultrapassados no sentido do respeito aos direitos humanos de forma abrangente." Estas condições são determinantes no que diz respeito às pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos, e, sobretudo àquelas recolhidas nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP).

Os HCTP, ainda hoje, têm sido lotados por pessoas de menor poder contratual e com menor acesso aos sistemas de tratamento existentes. Nesse sentido, tomando a noção de vulnerabilidade trazida por Lima Jr. (2001), pode-se afirmar que tais pacientes fazem parte dos chamados "grupos vulneráveis". Grupos vulneráveis são aqueles grupos de pessoas que têm seus direitos mais facilmente violados (TRINDADE, 1996), tais como as crianças e adolescentes, as mulheres, os idosos e as pessoas com deficiência. Estas pessoas possuem os mesmos direitos constitucionais conferidos às cidadãs e aos cidadãos brasileiros, devendo ter uma maior atenção por parte do Estado.

Daí a necessidade de se desenvolver políticas públicas voltadas especialmente a tais grupos, tendo em vista que a intenção destas é a de "compensar, seja pela ação do estado, seja pela ação da sociedade, as desigualdades advindas do acesso diferenciado a recursos econômicos ou de processos culturais que desconsideraram especificidades de setores tidos como minoritários" (LIMA JR., 2001, p. 132). Tais políticas atuam para concretizar direitos e "funcionam como instrumentos de aglutinação de interesses em torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma coletividade de interesses" (BUCCI, 2001, p. 13).

Nessa direção, as questões relacionadas aos grupos vulneráveis vêm tendo destaque nos mais diversos espaços, denotando a necessidade de se criar mais mecanismos de participação política, econômica e social de todos os segmentos da sociedade. Assim, é necessário considerar a condição de sujeitos de direitos das pessoas que integram tais grupos.

De acordo com Piovesan (2004b, p. 29),

Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e em sua particularidade. Nessa ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Em tal cenário, as mulheres, as crianças, a população afro-descendente, os migrantes, as pessoas portadoras de deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social.

Nesse sentido, é a partir do direito à igualdade e também do direito à diferença e do respeito à diversidade, que se faz necessário oferecer uma atenção diferenciada aos grupos vulneráveis. Conforme sustenta Santos (2003, p. 458), existe "a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades". Desse modo, é preciso adotar, ao lado das políticas universalistas, políticas específicas, "capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando o pleno exercício do direito à inclusão social" (PIOVESAN, 2004b, p. 31). Ao reconhecer a titularidade de direitos da pessoa com transtorno mental, vem à tona um aspecto importante: a visibilidade desse ator social.

Conforme afirma Basaglia (1985, p. 107),

Analisando a situação do paciente internado num hospital psiquiátrico [...] podemos afirmar desde já que ele é, antes de mais nada, um homem sem direitos, submetido ao poder da instituição, à mercê, portanto, dos delegados da sociedade (os médicos) que o afastou e excluiu.

Historicamente, a pessoa com transtorno mental não é considerada sujeito de direitos, mas, um objeto, a partir da relação estabelecida com a mesma pelo hospital psiquiátrico, a qual é denominada por Basaglia (1985) como "relação objetual". A medicina tem papel decisório nessa relação, quando atribui a essa pessoa uma periculosidade social, tornando "a loucura ao mesmo tempo visível e invisível", conforme afirma Amarante (1998, p. 46):

Assim o louco torna-se invisível para a totalidade social, e, ao mesmo tempo, torna-se objeto visível e passível de intervenção pelos profissionais competentes, nas instituições organizadas para funcionarem como locus de terapeutização e reabilitação - ao mesmo tempo, é excluído do meio social, para ser incluído de outra forma em um outro lugar: o lugar da identidade marginal da doença mental, fonte de perigo e desordem social.

A aprisionização da pessoa no lugar de objeto ignora e elimina totalmente o seu contexto de vida e a sua própria história. Ela vira mais um caso, e não é considerada no meio no qual está inserida e nem a sua história de vida.

Essa percepção do paciente como objeto é problematizada por Merhy (2005, p. 5), quando afirma que tal pessoa será vista "como um corpo ou parte de um corpo com problemas biológicos, como um ser sem subjetividade, sem intenções, sem vontades sem desejos". Para ele, diante do olhar dos grupos de profissionais, que também denomina de grupos hegemônicos, "o usuário será mais partido ainda, pois será olhado como um objeto suporte para a produção de um ato de saúde reduzido a um proceder profissional, o que vem consagrando a construção de modos de cuidar centrado em procedimento".

As necessidades de escuta, de inserção, de expressão das vontades e desejos são anuladas, restando o outro apenas como objeto de intervenção. Merhy (2005, p. 10) traz alguns pedidos possíveis para a dimensão cuidadora, dentre eles, a "relação acolhedora com o usuário que permita produzir vínculos e responsabilizações entre todos que estão implicados com os atos de saúde" e a "relação de inclusão cidadã, que opera na construção de autonomias e não de clones no campo da produção dos sujeitos sociais". Por fim, defende "o ato de cuidar como um fazer coletivo voltado para a defesa da vida, individual e coletiva." É esse o sentido para a atenção das pessoas com transtornos mentais: sair da condição de usuário-objeto para a construção de novas formas que orientem para a condição de usuário-sujeito.

Vasconcelos (2000, p. 184) traz contribuição importante nessa discussão, quando faz referência à possibilidade de um sujeito autor de processos de subjetivação e individuação que não seja sujeitado aos poderes disciplinares de normatização. Nessa perspectiva, propõe

a constituição de um Sujeito como vontade de liberdade e de aliança à razão como força crítica, como ferramenta dos novos movimentos sociais que tomam a defesa do Sujeito como forma de denunciar as formas de poder que submetem a razão aos seus interesses, mas sem abrir mão do direito à diferença.

Assim, o objetivo não é anular as diferenças entre os sujeitos, mas pontuar que estas diferenças é que irão balizar o tratamento diferenciado visando a garantia de direitos a grupos historicamente excluídos. Como acentua Piovesan (2006, p. 178), o sujeito de direito concreto deve ser visto "em sua especificidade e na concretude de suas diversas relações." Esse tratamento se relaciona com a tradição histórica dos direitos humanos, no que se refere à garantia do direito de igualdade, orientando a formulação de políticas específicas para esses grupos sociais.

A condição de sujeito de direitos está vinculada à idéia de titularidade de direitos. E esta discussão é iniciada no campo da saúde mental a partir do movimento da Reforma Psiquiátrica, que passa a discutir a condição de cidadania das pessoas com transtornos mentais (BIRMAN, 1992). Nesse caso, vale trazer as palavras de Torre (2001, p. 84): "A construção coletiva do protagonismo requer a saída da condição de usuário-objeto e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político."

Ao tratar do tema, localizando-o no referido movimento, Vizeu (2005, p. 47) afirma:

Na reforma psiquiátrica também se preconiza a inserção do doente mental nos espaços sociais de que antes ele era privado. Tal fato indica existir um reconhecimento desse ator como sujeito ativo e competente, ao contrário do que ocorre na lógica burocrática, em que o paciente é tido como um objeto a ser manipulado pelos especialistas.

Essa participação enquanto sujeito evidencia o reconhecimento da dignidade da pessoa e proporciona a sua emancipação. É o que ocorre com a inserção efetiva dos usuários e de seus familiares no Movimento Antimanicomial, que traz aspectos importantes para essa construção, como assevera Lobosque (2001, p. 24):

Inicialmente silenciados por todo o aparato que lhes vedava o acesso à palavra, foram pouco a pouco se tornando atores concretos e numerosos -a princípio, pelo único caminho que lhes era possível, aquele do depoimento individual; mais adiante, pela construção de uma organização coletiva, nas associações e núcleos ligados ao movimento.

Apenas no ano de 2001, com a aprovação da Lei nº 10.216, o ordenamento jurídico brasileiro começa a avançar no sentido de garantir os direitos das pessoas com transtornos mentais, tendo em vista que, até então, tanto o Código Civil como o Código Penal brasileiros, além da legislação sobre assistência psiquiátrica, apresentavam dispositivos ultrapassados e inadequados à integração dessas pessoas à sua comunidade, como ainda hoje, no que tange à incapacidade, prevista no Código Civil de 2002, e à medida de segurança, estabelecida no Código Penal de 1940. Porém, não se pode olvidar que embora a referida lei tenha trazido conquistas importantes, conforme se verá a seguir, a assistência em saúde mental deve ser oferecida tomando aquelas pessoas como sujeitos de direitos, o que possibilitará um atendimento baseado num sistema de garantia de direitos. Nesse caso, "a garantia dos direitos é entendida como a possibilidade de usar determinados mecanismos previstos nos instrumentos legais da ordem jurídica vigente para lograr o direito pretendido." (LIMA, 2002, p. 89).

Ressalte-se que esses direitos passaram a ser incorporados em documentos normativos no campo dos direitos humanos e da saúde mental em instâncias internacionais, bem como nos programas de atenção à saúde mental e no desenvolvimento de legislações nessa área específica no Brasil, no âmbito nacional, estadual e municipal, como instrumentos de apoio à Reforma Psiquiátrica brasileira. Importa observar, ainda, que todos esses instrumentos são fruto de processos de lutas históricas visando afirmar os direitos indispensáveis a uma vida com dignidade, reafirmando, assim, que os direitos humanos são historicamente construídos.

2. Instrumentos internacionais e nacionais de proteção e defesa dos direitos humanos dos loucos infratores

O movimento de internacionalização dos direitos humanos e a conseqüente ratificação dos documentos internacionais de direitos humanos alcançaram o Estado brasileiro em seu ordenamento jurídico interno a partir da Constituição Federal de 1988, que traz no seu artigo 4º, inciso II, o princípio da prevalência dos direitos humanos.

Acrescente-se que, em 03 de dezembro de 1998, o Estado Brasileiro reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio do Decreto Legislativo nº 89/98 (PIOVESAN, 2006). Isso ampliou e fortaleceu as instâncias de proteção dos direitos humanos internacionalmente assegurados. Desse modo, é recente o alinhamento do Brasil à sistemática internacional de proteção dos direitos humanos.

Nesse cenário, deve-se salientar que a promoção, proteção e garantia dos direitos humanos não é matéria reservada apenas à jurisdição interna dos Estados, mas também integra o Direito Internacional, a partir da normatividade internacional desses direitos. Daí a necessidade de se combinar a sistemática nacional e internacional de proteção, à luz do princípio da dignidade humana, pois, dessa forma, os direitos humanos assegurados nos instrumentos nacionais e internacionais passam a ter uma maior importância, inclusive, com o fortalecimento dos mecanismos de responsabilização dos Estados.

É a partir do princípio da dignidade da pessoa humana que resultam o direito à saúde e o acesso à justiça, os quais são abordados com maior ênfase quando se trata de pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos. Nesse caso, ao não disponibilizar a devida atenção à saúde e ao não prestar assistência jurídica e psicossocial a tais pessoas, o Estado fere princípios e garantias fundamentais, contribuindo, muitas vezes, para agravar e, até mesmo, para cronificar o quadro de sofrimento mental.

As pessoas com transtornos mentais têm o direito de exercer todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, conforme reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Diante das violações de direitos ainda praticadas contra tais pessoas, é necessário examinar os principais instrumentos jurídicos adotados em nível global, regional e nacional, atentando para a necessidade de aplicação dos mesmos também às pessoas com transtornos mentais autoras de delitos.

Nesse sentido, é importante observar o percurso legislativo para a proteção dos direitos dessas pessoas. Conforme historia Vasconcelos (2003), na primeira metade do século XX, no campo da saúde mental, a maior parte da legislação psiquiátrica nos países ocidentais foi influenciada pelo movimento de higiene mental, com grande ênfase na segregação do "doente mental" e na segurança da sociedade e da família. Esse quadro confirma o comprometimento, à época, com o modelo assistencial asilar, sem considerar o sujeito e as suas necessidades.

Já na segunda metade do século XX, conforme observa este autor (VASCONCELOS, 2003, p. 185),

houve uma ênfase crescente em uma nova legislação em direção a políticas de desinstitucionalização, garantindo os direitos de pacientes/usuários, em paralelo com a globalização, políticas neoliberais levando ao desinvestimento, consumismo e mudanças estruturais em provisões de políticas sociais desde os anos 70 (Vasconcelos, 1992b, 2000a), propondo desafios e implicações especiais para a nova legislação.

Trata-se da influência do Movimento de Reforma Psiquiátrica da Itália, que impulsionou a desconstrução das práticas de institucionalização da loucura, dando visibilidade ao sujeito com transtorno mental como um "protagonista, desejante, construtor de projetos, de cidadania, de subjetividade" (TORRE, 2001, p. 84). Como acentua Vasconcelos (2003), as diferentes estratégias de luta na defesa dos direitos dos usuários influenciarão nas diferentes tradições nacionais de sistemas legais nessa área.

Todos os documentos, nacionais e internacionais, possibilitam a promoção e a proteção dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, e, conseqüentemente, a execução de serviços de saúde mental baseados num sistema de garantia de direitos, objetivo que vem tentando ser alcançado pelas novas políticas de saúde desenvolvidas em diversos países. Hoje, de forma mais contundente, verifica-se o esforço internacional empreendido no sentido da implantação da Reforma Psiquiátrica e a necessidade de adoção de normas que estejam em consonância com os princípios desta, evidenciando a relação entre o movimento dos direitos humanos e o da Reforma Psiquiátrica.

2.1. Normativa internacional

No plano internacional, existem diversos instrumentos que visam a garantia e a proteção dos direitos humanos, sendo necessário, no presente estudo, examiná-los para a sua aplicação às pessoas com transtornos mentais, e, mais especificamente, para aquelas autoras de delito.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 contém uma série de princípios que devem ser utilizados na defesa e proteção dos direitos das pessoas com transtornos mentais. É o caso, por exemplo, do direito à liberdade, à igualdade, à não-discriminação, à vida e à segurança (artigos I, II e III). Além disso, prevê que ninguém pode ser submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (artigo V). Nesse caso, deve-se registrar, também, a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989.

Outros documentos importantes no âmbito da ONU, ratificados pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, são o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966. Estes Pactos representam a busca de "jurisdicizar" a Declaração Universal, entendida como uma carta de intenções, e, por isso, sem força de lei, além de detalhar os direitos definidos de forma genérica na referida Declaração (LIMA JR., 2001) e de elencar novos direitos e garantias não incluídos na mesma. A ratificação destes Pactos acarreta aos Estados a obrigação de encaminhar relatórios sobre as medidas legislativas, administrativas e judiciárias adotadas para implementar os direitos neles enunciados e enseja a responsabilização internacional em caso de violação desses direitos.

Para o presente estudo, é importante destacar alguns dispositivos do PIDCP: o direito à vida, o direito de não ser submetido a tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, os direitos à liberdade e à segurança pessoal e a não ser sujeito a prisão ou detenção arbitrárias, o direito a um julgamento justo, o direito à igualdade perante a lei e a proteção contra a interferência arbitrária na vida privada.

No que se refere ao PIDESC, saliente-se que este documento expande o elenco dos direitos sociais, econômicos e culturais insculpidos na Declaração Universal, como observa Thomas Buergenthal (1988 apud PIOVESAN, 2006, p. 168). Neste Pacto, tais direitos apresentam realização progressiva, ou seja, estão condicionados à atuação do Estado que deve adotar medidas para alcançar a sua plena realização (art. 2º, § 1º, do PIDESC). Porém, de acordo com Lima Jr. (2001, p. 102-3), em nenhum momento, o Pacto quis deixar a realização desses direitos a um futuro incerto: "A interpretação adequada da progressividade mencionada naquele instrumento internacional não é de 'indefinição' de metas e prazos para a realização dos direitos sociais, econômicos e culturais. Ao contrário, o Pacto buscou impulsionar sua realização." Neste instrumento internacional, cabe assinalar o direito ao trabalho; o direito a um nível de vida adequado, abarcando alimentação, vestimenta e moradia adequadas; o direito ao mais elevado nível de saúde física e mental; além do direito à educação.

Ressalte-se também a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989 (PIOVESAN, 2006; LIMA JR., 2003). Tais convenções constituem instrumentos fundamentais para o combate à tortura e às demais violações perpetradas contra as pessoas com transtornos mentais, a exemplo do que ocorreu no "caso Damião Ximenes", o primeiro caso brasileiro julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORREIA, 2005), no qual o Brasil foi condenado, tenho reconhecida parcialmente a sua responsabilidade internacional por violação de direitos humanos.

Outro instrumento internacional importante é a Declaração dos Direitos dos Deficientes Mentais, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 20 de dezembro de 1971 (MEDEIROS, 2004, p. 103). Esta Declaração não se limita apenas à atenção médica e ao tratamento físico das pessoas com transtornos mentais, assegurando, também, o direito à educação, à capacitação, à reabilitação, à orientação, à segurança econômica, a um nível de vida decente, além do direito à proteção contra a exploração, abuso e tratamento degradante, dentre outros direitos.

Além dessa, registre-se a Declaração de Caracas, a qual é considerada por Delgado (1992, p. 192) "o mais importante 'acordo' internacional sobre reforma psiquiátrica na América Latina nestes últimos anos". Aprovada em 14 de novembro de 1990, na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde, representa um marco na história da saúde mental nas Américas. Também foi assinada pelo Brasil e visa promover serviços de saúde mental de base comunitária sugerindo a reestruturação da assistência psiquiátrica existente, superando, assim, o modelo do hospital psiquiátrico, considerado o centro das críticas apresentadas pela referida Declaração. Esta define que a reestruturação da assistência em saúde mental na América Latina deve estar ancorada na substituição desta instituição, justamente pelo "papel hegemônico e centralizador" que exerce, acarretando o desrespeito aos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais (OMS, 2005, p. 208).

Deve-se mencionar, ainda, a Resolução nº 46/119 da ONU, aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 17 de dezembro de 1991, a qual adotou os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001; OMS, 2005). Essa Resolução teve origem nos anos 70, quando a Comissão dos Direitos Humanos da ONU passou a examinar a questão do uso da psiquiatria para fins de controle de dissidentes políticos. A preocupação inicial era com os critérios diagnósticos que eram utilizados em certos países, porém, o objetivo do trabalho ampliou-se para incluir o exame de formas de melhoria da assistência à saúde mental em geral. Tal Resolução contém 25 princípios e foi aprovada objetivando a humanização dos serviços em saúde mental, com o estabelecimento de padrões mínimos para assegurar os direitos das pessoas com transtorno mental. Nela são declarados os direitos à informação sobre o tratamento, a ser tratado mediante consentimento informado, à privacidade, à interdição e à integração social. E, de acordo com o Princípio 20 (OMS, 2005, p. 206), todos os direitos nela previstos estendem-se às pessoas presas e àquelas internas em HCTP, além de assegurar outros direitos:

  1. Este Princípio se aplica a pessoas que cumprem sentenças de prisão por infrações criminosas, ou que sejam de outro modo detidos no curso de procedimentos ou investigações criminais contra eles e sobre os quais se determinou possuírem uma doença mental ou se suponha terem uma doença mental ou se acredite que possam ter tal doença.
  2. Todas essas pessoas deverão receber a melhor atenção à saúde mental disponível conforme disposto no Princípio 1. Estes Princípios deverão ser aplicados a elas na maior extensão possível, apenas com as limitadas modificações e exceções que se fizerem necessárias nas circunstâncias. Nenhuma de tais modificações e exceções deverá prejudicar os direitos das pessoas nos termos dos instrumentos citados no parágrafo 5 do Princípio 1.
  3. A lei nacional poderá autorizar um tribunal ou outra autoridade competente, atuando na base de parecer médico competente e independente, a ordenar que tais pessoas sejam admitidas a um estabelecimento de saúde mental.
  4. O tratamento de pessoas nas quais se constatou uma doença mental deverá, em todas as circunstâncias, ser condizente com o Princípio 11.

Nesse diapasão, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1996, desenvolveu a "Legislação de Atenção à Saúde Mental: Dez Princípios Básicos", contendo uma interpretação adicional dos Princípios contidos na Resolução nº 46/119 da ONU, configurando, assim, um guia para auxiliar os países a desenvolverem legislações de saúde mental. Além disso, no mesmo ano, a OMS desenvolveu as "Diretrizes para a Promoção dos Direitos Humanos de Pessoas com Transtornos Mentais", que também auxilia na compreensão e interpretação daqueles Princípios e na avaliação do acesso aos direitos humanos nas instituições (OMS, 2005, p. 20).

No âmbito do sistema interamericano, destaque-se também a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, adotada em 07 de junho de 1999, a qual foi ratificada pelo Brasil em 15 de agosto de 2001. Dentre os instrumentos regionais de proteção dos direitos das pessoas com transtorno mental podem ser citados ainda a Convenção Européia dos Direitos Humanos, de 1950, e a Recomendação 1235 de 1994 sobre Psiquiatria e Direitos Humanos (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2001). Esta última estabelece "critérios para admissão involuntária, o procedimento para admissão involuntária, padrões para atenção e tratamento de pessoas com transtornos mentais, e proibições para prevenir abusos na atenção e prática psiquiátricas." (OMS, 2005, p. 16).

Com relação aos instrumentos do sistema global, é importante salientar a nova Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada por unanimidade em 13 de dezembro de 2006, sendo a primeira na temática dos direitos humanos a ser lançada no século XXI. De acordo com o seu artigo 1º, "O propósito dessa Convenção é promover, proteger e assegurar o desfrute pleno e em condições de igualdade de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência e promover o respeito da sua dignidade inerente." (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2006, p. 4) O documento ratifica todos os direitos das pessoas com deficiência, proibindo a discriminação contra as mesmas em todos os aspectos da vida, incluindo os direitos civis, políticos e econômicos e sociais, como o direito à educação e aos serviços de saúde, entre outros. Assegura, ainda, o reconhecimento da igualdade perante a lei, o acesso à justiça, bem como a liberdade e segurança da pessoa. Apesar de ter sido assinada em 30 de março de 2007, esta Convenção ainda não foi ratificada pelo Brasil, mas é um reconhecimento às contribuições e potencialidades desse grupo social.

Uma questão importante, no que se refere às pessoas internadas no HCTP, prevista nesta Convenção é o artigo 14, que trata dos direitos à liberdade e à segurança, determinando que os Estados Membros devem assegurar que pessoas com deficiência, em condições de igualdade às demais, "Não sejam privadas de sua liberdade ilegalmente ou arbitrariamente, e que qualquer privação de liberdade esteja de acordo com a lei, e em caso nenhum a existência de uma deficiência justifique a privação de liberdade." (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2006, p. 11).

Vale lembrar que antes desta Convenção, no âmbito da ONU, havia a Resolução 2.542, de 09 de dezembro de 1975, sobre a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, a qual estabelece que as pessoas com deficiência têm direito à segurança econômica e social, a um nível de vida decente e, de acordo com suas capacidades, a obter e manter um emprego ou a desenvolver atividades úteis, produtivas, remuneradas e a participar de sindicatos.

Diante desse arcabouço internacional de direitos humanos, vale trazer observação de Bobbio (1992, p. 25), que destaca como questão central qual é o modo mais seguro para garantir os direitos humanos "para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados".

2.2. Constituição Federal e normativa brasileira

No âmbito dos instrumentos nacionais, a Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece que o Brasil constitui-se um Estado democrático de direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. No seu artigo 5º, elenca diversos direitos fundamentais, salientando que todos são iguais e garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança. Ademais, no seu artigo 3º, a Constituição relaciona como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: "a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; reduzir as desigualdades sociais; e promover o bem de todos, sem preconceitos." E no seu artigo 6º, expressa os direitos sociais formalmente reconhecidos pelo Estado Brasileiro. Nesse sentido, todos os direitos nela previstos devem ser garantidos às pessoas com transtornos mentais.

Carvalho Netto (2005, p. 22-3) afirma que existe uma falta de atenção das constituições anteriores em relação aos "direitos fundamentais do portador de sofrimento mental", e acrescenta:

o portador de sofrimento mental não mais poderia ter a sua cidadania desconhecida; a eles deveria ser reconhecido o respeito a sua condição de ator da construção da cidadania, ou seja, a garantia da sua titularidade aos direitos fundamentais, exatamente na mesma medida em que são direitos da titularidade de todos os cidadãos.

Com a Constituição de 1988, o reconhecimento dos direitos humanos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, insculpidos nos artigos 5º, 6º e 7º, constitui um marco para a garantia desses direitos no Brasil. Nesse caso, ela impõe ao Estado brasileiro o dever de promover ações que garantam a inclusão de todas as pessoas, tomando como base o princípio da igualdade. É o que ocorre com a saúde, que está prevista no referido artigo 6º como um direito social e no artigo 196 da Constituição que prevê que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", reafirmando o compromisso deste na formulação de políticas públicas visando garantir esse direito.

No que se refere à legislação específica voltada às pessoas com deficiências, registre-se a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, dentre outras questões. Vale ressaltar o seu artigo 1º:

Art. 1º. Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência, e sua efetiva integração social, nos termos desta Lei.
§ 1º. Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.
§ 2º. As normas desta Lei visam garantir às pessoas portadoras de deficiência as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento e das demais disposições constitucionais e legais que lhes concernem, afastadas as discriminações e os preconceitos de qualquer espécie, e entendida a matéria como obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade.

Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências, e prevê no seu artigo 1º que "A Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência compreende o conjunto de orientações normativas que objetiva assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiência." Verifica-se que no âmbito interno vai se consolidando um conjunto de normas para assegurar os direitos desse grupo de pessoas.

No âmbito do direito à saúde, cabe registrar outros instrumentos de proteção. O Conselho Federal de Medicina (CFM) adotou os princípios da Resolução nº 46/119 da ONU, de 17 de dezembro de 1991 "como guia a ser seguido pelos médicos do Brasil" através da Resolução CFM nº 1.407, de 08 de junho de 1994 (MEDEIROS, 2004, p. 109). Ainda com base nesses princípios, o CFM editou a Resolução CFM nº 1.598, em 09 de agosto de 2000, a qual normatiza o atendimento médico a pacientes portadores de transtorno mental (MEDEIROS, 2004). Esta Resolução configura-se como um mecanismo importante para garantir aos referidos pacientes os meios adequados a suas necessidades de saúde, sejam hospitalares, ambulatoriais, comunitárias ou outras.

Deve-se ressaltar, ainda, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), elaborado pelo Ministério da Justiça em conjunto com diversas organizações da sociedade civil, que, identificando os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil, apresentava como objetivo "eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização". Tal Programa, instituído em 13 de maio de 1996, através do Decreto nº 1.904, continha 227 propostas de ações governamentais, divididas em quatro eixos, com previsão de execução em curto, médio e longo prazos. Dentro desses eixos, vale destacar as propostas referentes à proteção do direito à vida, à liberdade e ao tratamento igualitário perante a lei.

O Programa Nacional de Direitos Humanos II (PNDH II), aprovado pelo Decreto nº 4.229, de 13 de maio de 2002, atualizou o PNDH I, trazendo no seu bojo propostas de ações governamentais nos diversos campos dos direitos humanos. No que se refere à saúde mental, percebe-se uma inovação, pois, diferentemente do Programa de 1996, o atual Programa elenca seis propostas (n. 365 a 370) no sentido de garantir os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais. Nessa seara, cabe ressaltar as propostas que dizem respeito especificamente aos HCTP:

366. Estabelecer mecanismos de normatização e acompanhamento das ações das secretarias de justiça e cidadania nos estados, no que diz respeito ao funcionamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico.
367. Promover esforço intersetorial em favor da substituição do modelo de atenção dos hospitais de custódia e tratamento por tratamento referenciado na rede SUS.

Nesse percurso, registre-se a promulgação da Lei nº 10.216, em 06 de abril de 2001, a qual dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e sobre a reformulação do modelo assistencial em saúde mental, refletindo os princípios da Reforma Psiquiátrica, que será analisada mais detidamente a seguir, devido à sua relevância para a garantia dos direitos humanos desse grupo específico.

Com referência aos instrumentos de garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais autoras de delito, os mesmos são frutos de debates que se iniciaram no ano de 2001, com a "III Conferência Nacional de Saúde Mental" (BRASIL, 2002c, p. 127-128) e com o "Seminário Direito à Saúde Mental -Regulamentação e Aplicação da Lei 10.216/01" (BRASIL, 2001). Além disso, em 2002 é realizado o "Seminário Nacional para a Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico", no qual foram formuladas diversas propostas visando assegurar os direitos dos "usuários dos serviços de assistência psiquiátrica privados de liberdade" (BRASIL, 2002a, p. 42).

No ano de 2003 é publicada, pelos Ministérios da Saúde e da Justiça, a Portaria Interministerial nº 1777, de 09 de setembro de 2003, que aprova o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, "destinado a prover a atenção integral à saúde da população prisional confinada em unidades masculinas e femininas, bem como nas psiquiátricas". Tal documento faz referência aos HCTP, no seu artigo 8º, § 3º: "Os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico serão beneficiados pelas ações previstas nesta Portaria e, em função de sua especificidade, serão objeto de norma própria", corroborando o que consta na parte referente aos Recursos Humanos, que prevê: "Em decorrência de suas espeficidades, os Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, Manicômios Judiciários e Sanatórios Penais serão objetos de normas próprias que deverão ser definidas de acordo com a Política de Saúde Mental, preconizada pelo Ministério da Saúde." (BRASIL, 2005, p. 18 e 27). O Plano é complementado por outra Portaria, a de nº 268, de 17 de setembro de 2003, do Ministério da Saúde, a qual determina, entre outras coisas, que os "Manicômios Judiciários com população de até 100 pessoas presas deverão dispor de serviço de saúde, cadastrado no SCNES [...]" (BRASIL, 2005, p. 62).

Apesar de tais Portarias, somente no ano seguinte percebe-se uma maior atenção às pessoas internadas nos HCTP, com a aprovação da Resolução nº 05, de 04 de maio de 2004, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), a qual estabelece as diretrizes para a adequação das medidas de segurança às disposições da Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que traz a possibilidade dessas pessoas terem acesso aos seus direitos. Tal resolução prevê a integração dos HCTP à rede de cuidados do Sistema Único de Saúde, o que corrobora o direito a tratamento adequado e leva em consideração a garantia de acesso ao melhor serviço de saúde mental disponível. Há que se ressaltar o caráter preventivo da atenção em saúde mental, previsto nesta Resolução. Ocorre que, depois de mais de três anos da publicação desta, a maior parte dos HCTP do país não implementou as mudanças necessárias para assegurar tais direitos (BIONDI, 2006).

Nos anos seguintes outros instrumentos relevantes no campo da saúde mental e dos direitos humanos são elaborados. Em 2005, é lançada a Carta de Brasília, a qual traz os Princípios Orientadores para o Desenvolvimento da Atenção em Saúde Mental nas Américas, fruto da "Conferência Regional para a Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 Anos depois da Declaração de Caracas", convocada pelo Ministério da Saúde do Brasil, pela Organização Pan-Americana da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde, ocorrida nos dias 7 a 9 de novembro de 2005, com o objetivo de avaliar os resultados obtidos desde 1990. Este documento reafirmou a validade dos princípios orientadores contidos na Declaração de Caracas, apontando os desafios que se tornaram mais evidentes naquele período de 15 anos e convocando todos os atores envolvidos para que continuassem avançando na implementação dos princípios éticos, políticos e técnicos da referida Declaração.

Um instrumento mais recente é a Portaria Interministerial nº 3.347, de 29 de dezembro 2006, do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, que institui o Núcleo Brasileiro de Direitos Humanos e Saúde Mental, o qual foi constituído por um Grupo de Trabalho criado especificamente para este fim, através da Portaria Interministerial nº 1.055, de 17 de maio de 2006, formulada pelos referidos Ministérios. No mencionado instrumento constam as diretrizes e linhas de atuação do Núcleo, conforme as propostas contidas no Relatório Final daquele Grupo de Trabalho, sendo ele

uma iniciativa que visa ampliar os canais de comunicação entre o Poder público e a sociedade, por meio da constituição de um mecanismo para o acolhimento de denúncias e o monitoramento externo das instituições que lidam com pessoas com transtornos mentais, incluídas as crianças e adolescentes, pessoas com transtornos decorrentes do abuso de álcool e outras drogas, bem como pessoas privadas de liberdade.

Vale lembrar que a formulação de normas para garantir a qualidade da atenção em saúde mental no país toma impulso a partir da Lei de Reforma Psiquiátrica, em 2001, juntamente com os demais mecanismos de garantia de direitos dela decorrentes.

2.2.1. Reforma Psiquiátrica e Política Nacional de Saúde Mental

Dentre os mecanismos de proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, a Reforma Psiquiátrica merece destaque, tendo em vista os seus princípios e objetivos, e o alcance que vem tendo em vários países do mundo, e, mais recentemente, no Brasil (AMARANTE, 1996). No campo da saúde mental, diversos países passaram por reformas, cada um com pressupostos, contextos e estratégias diferenciados. São exemplos dos movimentos de reforma na contemporaneidade: a psicoterapia institucional, as comunidades terapêuticas, a psiquiatria de setor, a psiquiatria preventiva, a antipsiquiatria e a psiquiatria democrática (AMARANTE, 1998). Pode-se citar como exemplos das reformas legislativas: a Lei 180 de 1978 da Itália; o Mental Health Act inglês de 1983; e a Lei francesa de 1990 (DELGADO, 1992).

O modelo assistencial psiquiátrico hegemônico passou a ser discutido a partir do final da década de 1940. As críticas se fundamentam no anacronismo e na ineficácia do modelo (COHEN, 2006b; SÁ JR., 1997). As denúncias recorrentes de violência nas instituições psiquiátricas têm sido objeto de mobilizações da sociedade civil e de profissionais de saúde. O crescente clamor social contra as diversas formas de desrespeito aos direitos humanos tem fortalecido uma consciência acerca da importância da luta pelo direito à singularidade, à subjetividade e à diferença. Nesse sentido, a ampliação da compreensão a respeito da natureza discriminatória dos estabelecimentos psiquiátricos envolveu familiares, comunidade e outros atores sociais na discussão da cidadania das pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos.

Em relação às ações necessárias para a garantia dos direitos humanos destas pessoas, Costa (2003, p. 143) reitera o caráter segregador destes estabelecimentos afirmando que o hospital psiquiátrico tornou-se um "emblema da exclusão e seqüestro da cidadania", considerando, ademais, sua repercussão na vida das pessoas com transtornos mentais ao longo dos últimos duzentos anos.

Ao longo do século XX, foram empreendidos esforços para alterar a realidade asilar mediante o desenvolvimento de outros modelos de atenção capazes de promover um maior grau de interação e de democracia nas relações existentes entre os profissionais e os internos das instituições psiquiátricas. Segundo Delgado (1992, p. 19), a partir dos anos 60, "a noção de reformar a psiquiatria passa a ser tributária de um nítido movimento de crítica aos pressupostos teóricos daquela instituição. A crítica ao espaço asilar torna-se condenação dos efeitos de normatização e controle da psiquiatria." O advento do Movimento da Reforma Psiquiátrica marca um novo período, a partir do final da década de 1970, propondo a superação do modelo hegemônico de caráter excludente e discriminatório. De todos os modelos implementados ao longo desse século, apenas com a proposta da Psiquiatria Democrática (KINOSHITA, 1990; DELGADO, 1991; AMARANTE, 1998; COSTA, 2003) -Reforma Psiquiátrica -, implementada na Itália, é que, de fato, se efetivou a ruptura com o hospital psiquiátrico. O modelo asilar/carcerário começou a ser substituído por uma rede diversificada de serviços de atenção diária em saúde mental de base territorial e comunitária.

Segundo Barros (1994, p. 190),

A chamada Psiquiatria Democrática Italiana fez alianças com outros movimentos sociais, radicalizou a força das denúncias sobre a violência da instituição psiquiátrica. Criou, igualmente, caminhos para a desmontagem do manicômio, entendida como desconstrução de materialidades e dos saberes médico-psicológicos. Desinstitucionalizar significaria assim, para os italianos, lutar contra uma violência e lutar por uma transformação da cultura dos técnicos, aprisionados, também, a uma lógica e a um saber que não deseja uma análise histórica mais aprofundada.

A noção de desinstitucionalização é trazida por Rotelli (2001, p. 90-1): "O projeto de desinstitucionalização coincidia com a reconstrução da complexidade do objeto que as antigas instituições haviam simplificado". O objetivo, portanto, era desmontar os aparatos que sustentam a doença mental, o que denota um "processo social complexo", como afirma Kinoshita (1990, p. 76-80), pois "suscita conflitos, crises e transformações dentro da rede mais ampla das estruturas institucionais (...) nas quais o circuto psiquiátrico está inserido". Para o movimento italiano, a psiquiatria constitui uma das instituições da violência, e como tal, deve ser negada (BASAGLIA, 1985).

A experiência italiana levou à desconstrução do manicômio, possibilitando a construção de uma rede de atenção, composta por centros de saúde mental, cooperativas de trabalho e serviços de emergência psiquiátrica, e produzindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade para as pessoas que precisavam de assistência psiquiátrica (ROTELLI, 1992a).

No Brasil, inspirando-se no referido modelo italiano, diversos setores das áreas de saúde pública e dos direitos humanos convergiram esforços na tentativa de ruptura, construindo, como proposta alternativa, a estruturação de uma rede de serviços de atenção diária em saúde mental de base territorial, correspondente ao modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), cujo projeto integra os usuários às suas respectivas famílias e à comunidade (FARAH, 2000). O CAPS é um serviço de saúde aberto e comunitário do SUS, constituindo-se um lugar de referência e tratamento para pessoas com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves, dentre outros, "cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado" intensivo, comunitário e personalizado criado para ser substituto às internações em hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2004a, p. 13, 2007; MINAS GERAIS, 2006).

A construção de uma proposta inovadora na atenção à saúde mental, de acordo com Costa (2003, p. 173), almeja "[...] a cidadania e a recuperação das garantias e direitos fundamentais dos portadores de Transtornos Mentais". O autor reconhece, ainda, que "[...] torna-se cada vez mais relevante a atuação dos organismos da sociedade responsáveis por essa proteção e garantias constitucionalmente asseguradas."

O norteamento da Reforma Psiquiátrica brasileira encontra-se voltado para a busca da recontextualização das pessoas com transtornos mentais, por meio da garantia dos seus direitos e do exercício da cidadania. A referida Reforma vem sendo implementada a partir da decisão política dos governantes, da capacidade técnica em formular novas formas de compreender e lidar com a loucura por parte dos profissionais e da capacidade de articulação dos usuários dos serviços de saúde mental e de seus familiares. Nesse sentido, é importante trazer consideração de Carvalho Netto (2005, p. 23):

Fruto da luta pelo reconhecimento, travada inclusive pelos próprios afetados, organizados em movimentos sociais, a Lei n 10.216/2001, expressa claramente a inclusão do portador de sofrimento ou transtorno mental no elenco daqueles a quem, pública e juridicamente, reconhecemos a condição de titular do direito fundamental à igualdade, impondo o respeito de todos à sua diferença, ao considerar a internação, sempre de curta duração em quaisquer de suas modalidades, posto que, necessariamente vinculada aos momentos de grave crise, uma medida excepcional ao próprio tratamento.

Vale reiterar que o movimento de Reforma aborda a loucura na perspectiva dos direitos humanos e não a partir de questões clínicas, como diagnósticos, terapêuticas e prognósticos. A questão principal para os militantes da Reforma é a situação social das pessoas com transtornos mentais e não a eficácia dos dispositivos médicos. Nesse caso, importante pontuar que este movimento foi impulsionado pelo Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que nasce em julho de 1987, após a realização da I Conferência Nacional de Saúde Mental, no II Congresso Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental, realizado em Bauru-SP, com o lema "Por uma sociedade sem Manicômios", que exigia que os Hospícios fossem substituídos por outras formas de tratamento, capazes de garantir a dignidade e a liberdade dos usuários dos serviços de saúde mental, com base nos seus direitos (AMARANTE, 1998).

O Movimento Antimanicomial, que enfatizou a necessidade de transformações do modelo da atenção à saúde mental oferecida no país, conta com a participação de técnicos, de usuários dos serviços de saúde mental e de familiares desses usuários, e organizou sua estrutura administrativa como fórum nacional, congregando várias entidades, como Organizações Não Governamentais e Conselhos de familiares de usuários. Ao longo dos seus 20 anos de existência no Brasil, houve a formação de vários núcleos nos Estados, os quais conseguiram mobilizar a aprovação de leis estaduais de Reforma Psiquiátrica.

Nessa construção, cabe ressaltar ainda a realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, em dezembro de 1992, que teve como tema: "A reestruturação da atenção em saúde mental no Brasil: modelo assistencial e direito à cidadania". Esta Conferência teve como finalidade "definir diretrizes gerais para a 'Reforma Psiquiátrica', no âmbito da Reforma Sanitária Brasileira, orientando a reorganização da atenção em Saúde Mental no Brasil nos planos assistencial e jurídico-institucional" (BRASIL, 1994, p. 1), através da discussão democrática entre os diversos setores da sociedade. O Ministério da Saúde adotou o relatório final desta Conferência como diretriz oficial para a reestruturação da assistência em saúde mental no país, estipulando como marcos conceituais desse processo a atenção integral e a cidadania (BRASIL, 1994).

O processo de superação da centralidade do hospital psiquiátrico tem sido contemporâneo da dinâmica de descentralização das ações e dos serviços de saúde inaugurada formalmente na Constituição Federal de 1988, artigos 1º e 204, juntamente com as Leis Orgânicas de Saúde - Lei nº 8.080/90 e Lei nº 8.142/90 - e as Normas Operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS). A consolidação normativa do Estado Democrático de Direito refletiu, portanto, também na esfera dos interesses dos cidadãos, inclusive daqueles com transtorno mental. Costa (2003, p. 163) afirma que "Em face da complexidade dessa transformação e em função de sua amplitude, ela está sendo implementada de forma progressiva, mas irreversível em um crescente de iniciativas que orientam os novos serviços." Essa transformação pode ser verificada a partir da legislação e da execução de programas baseados nos direitos dessas pessoas.

A Política Nacional de Saúde Mental foi objeto de recentes reformulações: uma nova perspectiva no ordenamento jurídico do país em relação à pessoa com transtorno mental ensejou, com a sanção presidencial, a Lei nº 10.216, em 06 de abril de 2001. Esta legislação especial dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e sobre a reformulação do modelo assistencial em saúde mental (BRASIL, 2002b), refletindo, assim, os princípios da Reforma Psiquiátrica: desinstitucionalização, desospitalização e garantia de direitos.

Esta Reforma visa, dentre outros aspectos, criar uma rede de serviços diversificados, regionalizados e hierarquizados que promova a efetiva contextualização e reabilitação psicossocial da pessoa com transtorno mental. Nesta perspectiva, apresenta como princípios: a centralidade da proteção dos direitos humanos e de cidadania das pessoas com transtornos mentais, a necessidade de construir redes de serviços que substituam o modelo hospitalocêntrico e a pactuação de ações por parte dos diferentes atores sociais (RIBEIRO, 1999). Contemplando mudanças significativas no modelo de atenção psiquiátrico, o advento desta nova política se identifica com o paradigma da co-responsabilidade da sociedade e do Estado, com evidente perspectiva da descentralização administrativa que já fora inaugurada em normas anteriores relativas ao segmento infanto-juvenil, em 1990, à saúde, através das Leis Orgânicas de Saúde e da própria Lei Orgânica da Assistência Social.

As orientações dispostas no texto da Lei nº 10.216/2001, que substitui a legislação psiquiátrica de 1934 (Decreto nº 24.559, de 3 de julho de 1934), subvertem a lógica das instituições totais inovando em diversos procedimentos e estabelecendo os direitos das pessoas com transtornos mentais, conforme prevê o parágrafo único do seu artigo 2º:

  1. ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;
  2. ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;
  3. ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;
  4. ter garantia de sigilo nas informações prestadas;
  5. ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;
  6. ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;
  7. receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;
  8. ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;
  9. ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Esta lei afirma o direito ao tratamento respeitoso e humanizado dessas pessoas, preferencialmente em serviços substitutivos, estruturados segundo os princípios da territorialidade e da integralidade do cuidado. Ela dispõe, ainda, que a internação psiquiátrica configura-se como último recurso terapêutico a ser adotado, sendo a sua concretização condicionada à emissão de parecer médico com a devida explicitação de seus motivos.

Sobre isso, Carvalho Netto (2005, p. 23) pontua:

O tratamento enquanto tal, segundo o disposto no § 1º do art. 4º, em consonância com o direito assegurado ao portador de sofrimento mental no inciso II do Parágrafo Único do art. 2º, terá como sua finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio. A internação, assim, em rigor, só é excepcionalmente admitida, para os momentos de grave crise, quando os recursos extra-hospitalares revelem-se insuficientes, e, muito embora o § 2º do art. 4º se refira ao "tratamento em regime de internação", à luz dos demais dispositivos da Lei, essa expressão apenas pode significar a admissão da internação, em qualquer de suas modalidades, como uma medida excepcional, temporária e de curta duração, para possibilitar a continuidade do efetivo tratamento, que sempre promoverá a reinserção social do portador de sofrimento ou transtorno mental e não o seu isolamento. (grifos do autor)

Dentre as inovações trazidas pela nova Política Nacional de Saúde Mental, estão: oficinas terapêuticas, oficinas de capacitação/produção, ambulatórios de saúde mental, equipes de saúde mental em hospitais gerais, moradias terapêuticas e centros de convivência (COSTA, 2003). O Ministério da Saúde conta, atualmente, com uma política voltada para o investimento e fortalecimento da rede de atendimento extra-hospitalar. A rede é composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), núcleos de atenção integral em Saúde da Família, Serviços Hospitalares de Referência para Álcool e Drogas, residências terapêuticas e projetos de inclusão social por meio da geração de renda e trabalho.

Às residências ou moradias terapêuticas, criadas pela Portaria nº 106, de 11 de fevereiro de 2000, do Ministério da Saúde, cabe (art. 3º):

  1. garantir assistência aos portadores de transtornos mentais com grave dependência institucional que não tenham possibilidade de desfrutar de inteira autonomia social e não possuam vínculos familiares e de moradia;
  2. atuar como unidade de suporte destinada, prioritariamente, aos portadores de transtornos mentais submetidos a tratamento psiquiátrico em regime hospitalar prolongado;
  3. promover a reinserção desta clientela à vida comunitária.

Nesse caso, é importante salientar que a já mencionada Resolução nº 5, de 04 de maio de 2004 do CNPCP, no seu item 13, prevê o estabelecimento de cotas específicas para garantir o acesso dos egressos dos HCTP aos serviços residenciais terapêuticos que forem sendo criados.

Destaca-se, ainda, a criação, no ano de 2003, do Programa "De Volta para Casa", que tem como objetivo auxiliar o processo de reinserção social das pessoas com transtornos mentais. Este Programa foi criado pela Lei nº 10.708, de 31 de julho de 2003, que institui o auxílio-reabilitação psicossocial, no valor de R$240,00 (duzentos e quarenta reais), para pacientes com transtornos mentais egressos de internações, tendo sido regulamentada pela Portaria nº 2.077, de 31 de outubro de 2003, do Ministério da Saúde, que condiciona o benefício àqueles que tenham sido internados por período igual ou superior a dois anos. Este auxílio financeiro responde a uma antiga reinvindicação dos Movimentos Antimanicomial e de defesa dos direitos humanos: a reintegração social do usuário juntamente com a sua inserção nos serviços territoriais-comunitários e de atenção diária. Tal benefício também deve ser garantido às pessoas egressas de HCTP, de acordo com o que prevê o §3º do artigo 3º da referida lei: "Egressos de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico poderão ser igualmente beneficiados, procedendo-se, nesses casos, em conformidade com a decisão judicial." Esta orientação é recomendada às Secretarias Estaduais que administram o sistema prisional através da Resolução nº 3, de 4 de maio de 2004, do CNPCP (BRASIL, 2007, p. 49).

Como afirma Delgado (2001, p. 181) acerca da mudança do modelo assistencial psiquiátrico: esta "implica, pois, a desmontagem desse aparato de internações, vigorosamente constituído sobre a base de uma ampla rede institucional e sobre um conjunto de fatores sociais e administrativos favorecedores da segregação hospitalar". Assim, a diminuição do número de internações merece atenção, pois configura um dos indicadores relevantes para avaliação desse novo modelo de atenção em saúde mental. Ademais, essa mudança na área da saúde deve estar articulada com outras políticas sociais.

Por fim, faz-se necessário destacar a grande importância da atuação dos próprios usuários dos serviços de saúde mental na luta pelas mudanças necessárias à construção de um novo modelo de atenção, constatando o louco como agente transformador da realidade. De acordo com Amarante (1998, p. 121), "delineia-se, efetivamente, um novo momento no cenário da saúde mental brasileira", com a participação das pessoas com transtornos mentais nos movimentos de transformações no campo da saúde mental:

O louco/doente mental deixa de ser simples objeto da intervenção psiquiátrica, para tornar-se, de fato, agente de transformação da realidade, construtor de outras possibilidades até então imprevistas no teclado psiquiátrico ou nas iniciativas do próprio MTSM. Seja nos espaços destas associações, seja em trabalhos culturais, atua-se no surgimento de novas formas de expressão política, ideológica, social, de lazer e participação, que passam a edificar um sentido de cidadania que jamais lhes foi permitido.

Atualmente, os grandes desafios da Reforma Psiquiátrica brasileira são a implementação dos serviços substitutivos previstos nos instrumentos e normas que asseguram os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais e a efetiva reorientação do modelo de atenção à saúde mental das pessoas internadas nos HCTP, com o conseqüente reconhecimento destas pelos CAPS, como uma clientela do SUS (BRASIL, 2007).