ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Parte II
Em busca de uma redução de danos no encarceramento: por uma reinserção social singular (1)

Karina Nogueira Vasconcelos, 2013

A busca por uma redução de danos no encarceramento de mulheres no Bom Pastor foi orientada por uma expectativa de conhecer algo ou mesmo criar algo que pudesse tornar aquelas mulheres resistentes aos graves efeitos da prisão, que pudesse auxiliar no desenlace do nó conflitual que as vinclula a singulares repetições de retorno ao Bom Pastor. Parte-se das causas do encarceramento às concausas do retorno. Dentre essas concausas, o objeto do nosso estudo é a própria experiência carcerária.

Refletindo a partir dos dados coletados na experiência de campo, identifica-se o sofrimento como uma das causas, assim como uma das concausas do encarceramento e do retorno. Não se trata do mesmo sofrimento, mas se trata de um sofrimento. Não há qualquer intenção de criar categorias universais, mas de destacar um elemento transdisciplinar, constante e de forte afetação.

Buscar reduzir os danos do encarceramento por meio de práticas já anunciadas, muitas vezes até com força normativa, parecia não ser o caminho, pois, bem ou mal, foram categorias pensadas aceitando a violência carcerária e não pensadas contrariando a própria lógica carcerária. Durante todo o percurso essa busca não foi tão clara. Mas, o encontro com a Mediação Humanista, não por acaso, sinalizou, como perspectiva, o fim dessa busca e o paradigma da não-violência o confirmou.

A construção das etapas da busca por uma redução de danos no encarceramento dessas mulheres terá desfecho na Mediação Humanista. Antes de chegar lá, percorreremos em cada capítulo o caminho para a mediação. Este caminho, iluminado pela não-violência, se consolida no aprendizado ético-afetivo e encontra o seu fim na resiliência, que pode ser desencadeada, ou mesmo estimulada pela catarse.

1. O caminho para a mediação

Somente ao olhar para trás percebemos que nos antecede um caminho. Por muitos momentos senti como se alhinhavasse uma colcha de retalhos, ora com consciência de como ficaria, ora sem qualquer noção de tanta concentração nos detalhes dos retalhos. O final do trabalho: as irreparáveis singularidades de reunir retalhos que esteticamente se encontraram por afinidades doando harmonia a uma colcha tão curiosa e aquecedora.

1.1 O aspecto cultural da violência e a não-violência

Há uma forte atração teórico-prática entre o paradigma da violência, o modelo androcrático (ou hierárquico) e o cárcere assim como há uma evidente sintonia entre o paradigma da não-violência, o modelo gilânico (ou de parceria) e a Mediação Humanista.

Segundo Riane Eisler (2007), a Teoria da Transformação Cultural anuncia a possibilidade de uma convivência social pacífica não como uma bela utopia, mas como uma escolha concreta, contrariando, com base em descobertas arqueológicas, a história evolutiva do homem atrelada à história de violências e dominações simplesmente.

A autora afirma que houve no neolítico sociedades de parceria, ou seja, sociedades em que não existiam hierarquia e dominação entre homens e mulheres. Baseando suas análises em várias descobertas arqueológicas, sobretudo no sítio arqueológico de Creta, que apontam para sociedades sem hierarquia e dominação, que cultuavam a figura de uma deusa, tida como criação, harmonia entre os homens e a natureza, ela cria um modelo explicativo para esse tipo de sociedade intitulando-o de sociedade de parceria e concebe o amor como fundamento de agregação entre os homens e não o medo da violência.

Nós, seres humanos, dependemos do amor e adoecemos quando ele nos é negado em qualquer momento da vida. Não há dúvida de que a agressão, o ódio, a confrontação e a competição também acontecem no âmbito do humano, mas não podem ter dado origem ao humano porque são emoções que separam e não deixam espaço de coexistência para que surjam as coordenações de ações que constituem a linguagem. A agressão, a competição, a luta, o controle e a dominação podem ser cultivados depois de estabelecida a linguagem, e de fato foram cultivados na cultura patriarcal, mas quando passam a ser mantidos como parte constitutiva do modo de viver de uma cultura, os seres humanos que a compõem adoecem, seu intelecto se obscurece na contínua negação e perda de dignidade advindas da mentira e da fraude ou, na melhor das hipóteses, as comunidades humanas que a compõe se fragmentam, formando pequenos grupos sociais que lutam continuamente entre si. [...] Na cultura patriarcal, primeiro se nega a biologia do amor ao valorizar a guerra, a luta e a competição, e depois se busca o amor como algo especial no âmbito cósmico; na cultura matrística pré-pratiarcal, a biologia do amor é constitutiva do cotidiano e se dá sem esforço como parte do viver normal, que leva à dignidade conferida pelo respeito por si mesmo e pelo outro. Na cultura patriarcal, o individual e o social se contrapõem porque o individual se afirma nas conversações que legitimam a apropriação e a negação do outro pela valorização da competição e da luta; na cultura matrística pré-patriarcal, o social e o individual não se contrapõem porque o individual surge nas conversações que constroem o social a partir da convivência de indivíduos que não se apropriam do que são ao constituir o social. (2)

Depois de 10 anos de pesquisa, promovendo uma releitura minuciosa da história, Riane mostra como a invasão de povos indo-europeus, durante o neolítico, em várias regiões da Europa, foi difundindo, pelo símbolo da espada, o poder da destruição, da dominação, da guerra e a cultura da violência para povos que conheciam até então, pelo símbolo do cálice, o poder da criação, da parceria, da colaboração entre os sexos. Esta sociedade pacífica, baseada em valores criativos e sem hierarquia entre os sexos, chama-se sociedade de parceria, pautada na cultura gilânica (3); já a sociedade hierárquica, difusora da violência é chamada de sociedade de dominação, pautada na cultura androcrática (4). Segundo Eisler (2007, p. 96):

O valor supremo reinando no cerne do sistema dos invasores era o poder de tirar a vida, e não o de dar a vida. Esse é o poder simbolizado pela Espada 'masculina', e literalmente venerado pelos primeiros kurgans, segundo se vê de entalhes nas cavernas desses invasores indo-europeus. Pois, na sua sociedade dominadora, governada por deuses - e homens - guerreiros, esse era o poder supremo.

Após a dominação desses povos, a difusão dessa cultura da violência vem sendo constantemente reiterada e combatida na história da humanidade ocidental. Ao ler a história de forma descontínua e sob a perspectiva da Transformação Cultural, temos passado por períodos de forte cultura androcrática, mas nunca sem resistência de um retorno singular à cultura gilância. Essa interpretação nos conduz ao seguinte questionamento: qual a origem desse sentimento que afirma a possibilidade de uma vida social pacífica? Seria a esperança utópica ou a saudade inconsciente e histórica de uma experiência bem vivida? Certos de que o passado está no presente, talvez estejamos lutando pela afirmação possível de uma cultura da não-violência.

É inevitável que toda essa informação sobre nosso passado dê início a um conflito entre o velho e o novo dentro de nossa mente. A antiga visão diz que a primeira relação de parentesco (e depois econômica) evoluiu a partir dos homens que caçavam e matavam. A nova visão diz que os fundamentos de nossa organização social vieram da partilha entre mães e filhos. A antiga visão pintava a pré-história como a história do 'homem caçador e guerreiro'. A nova visão mostra mulheres e homens, juntos, utilizando nossas capacidades humanas singulares para nutrir e aprimorar a vida. [...] Em suma, dentro dessa nova visão da evolução cultural, a dominância masculina, a violência masculina e o autoritarismo não são inevitáveis, nem são dados imutáveis. E longe de ser um 'sonho utópico', um mundo mais pacífico e igualitário é uma possibilidade real para nosso futuro. (EISLER, 2007, p. 126)

É inevitável trazer o posicionamento de Muller (2007, p. 15) aludindo, de certa forma, a uma "transformação cultural" a partir do rompimento necessário com a cultura da violência.

Para invalidar a lógica de violência dos extremistas, devemos começar por romper com tudo aquilo que, em nossa própria cultura, legitima e glorifica a violência como virtude do homem forte. Essa ruptura será dolorosa, pois deverá ser feita em profundidade. Descobriremos que, para romper com a cultura da violência, será necessário rompermos, definitivamente, com nossa própria cultura. E não se pode negar a dificuldade em recusar a tradição que nos foi legada como uma herança sagrada. Mesmo quando já estivermos convictos de que a ruptura é necessária para deslegitimar definitivamente a violência, ela ainda irá se manifestar a nós, de algum modo, como uma renegação, uma abjuração. Será, sobretudo, interpretada como um sacrilégio pelos outros, por aqueles que querem defender a tradição. Esse sentimento de sacrilégio será intensificado quando houver, como geralmente ocorre, uma conjugação da ideologia da violência com uma doutrina religiosa. Aqueles que querem defender a integridade da doutrina denunciarão toda e qualquer ruptura como uma heresia e não deixarão de lançar o anátema contra os infiéis.

A violência é fruto da cultura e a não-violência é também cultural. Buschinelli (2004), numa interessante interpretação correlacional entre o poema "O medo" de Carlos Drummond de Andrade e a carta enviada por Einstein a Freud indagando-o sobre o porquê da guerra, afirma que a violência é a canalização do instinto de agressividade para a destruição do outro. Como esse canal para a guerra constitui um processo cultural, o processo civilizatório constitui, segundo a autora, a grande crença de Freud na canalização desse instinto não mais para a guerra. Freud se considerava um pacifista e evidencia que essa conduta de "intolerância constitucional à guerra" é fruto do processo civilizacional. A autora manifesta sua concordância com Freud e diz que compreende por civilização: símbolo, ligação, Eros ou palavra e, dessa forma, acredita na oposição "de modo contundente à violência".

Outra definição no mesmo sentido é dada por Montagna (2004, p. 103, grifo do autor): "Compreendo aqui violência como a agressividade proposta ou empregada com finalidade e desejo de destruir, de aniquilar, ou de dano à integridade de outro(s) ou de si mesmo. A integridade pode ser corporal, psíquica ou mesmo cultural." Complementa o autor que o que determina a violência é a destrutividade desejada, a intenção consciente ou inconsciente.

O instinto agressivo ou destrutivo (pulsão de morte), radicado no homem é tão fundamental para sua sobrevivência quanto a libido (pulsão de vida), como diz Fagundes (2004). Logo, o problema não é o instinto agressivo, mas sua canalização. É justamente sobre esse ponto que Lédio Rosa de Andrade, numa leitura psicanalítica, indaga sobre a relação entre Violência, Direito e Cultura.

Segundo Andrade (2007), a história da humanidade por vezes se confunde com uma história de lutas e matanças, tendo na banalização da violência, uma grande aliada à perpetuação da violência, ao ponto de atribui-la um destino biológico. No entanto, a violência não é instintiva, como o é a agressão. A violência é, portanto, a conjunção do instinto agressivo a um fim específico: aniquilação do outro. A violência guarda, portanto, um forte componente cultural. Para ele, o instinto corresponde a um comportamento ou atividade mental primitiva anterior à civilização ou à cultura. A civilização, por meio de interdições ou leis, oriundas da religião, da moral ou do direito, tolhe a agressão instintiva do homem, permitindo a vida em coletividade. Ocorre que esse tolhimento não é absoluto, visto a luta constante entre as pulsões (desejo agressivo) e a necessidade da vida comunitária (violência sob controle). Logo, conclui o autor que embora haja uma agressão natural e instintiva no ser humano, isso não faz dele um sujeito descontrolado. A cultura é um forte elemento dosador dessa relação.

Freud chama de "disposição à cultura" a aptidão do ser humano de transformar suas pulsões egoístas. Para ele, esta disposição pode ser dividida em uma parte inata e outra adquirida. A parte adquirida, ou seja, as pressões culturais que efetuaram transformações nas pulsões egoístas, nem sempre é resultado do crescimento do ser humano, porque estas transformações, não de forma obrigatória, vêm de um engrandecimento pessoal, isto devido ao fato de que a cultura também age sob recompensas e castigos. Portanto muitas pessoas não sofreram o que se poderia dizer uma transformação cultural para agir corretamente. Bem ao contrário, permanecem, subjetivamente, propensas ao mal, mas tão-só por agirem sob forte pressão, distanciam-se de seus verdadeiros desejos. Os moralistas são bons exemplos. Neste ponto, escrevendo sob as influencias da primeira guerra mundial, Freud deixa bem clara a diferença entre um ser humano civilizado e um hipócrita. (ANDRADE, 2007, p. 134)

Em razão do exposto, Lédio se questiona se após um processo educativo, embasado no amor e em outras virtudes, não estariam as pessoas aptas a viverem em paz e harmonia.

Como se pode perceber, há diversas abordagens no tema da violência, mas um, muito presente nessa análise é o de Filliozat (1997), para quem a violência está diretamente ligada à impotência de gerir os afetos, de exprimir e satisfazer as necessidades e não necessariamente à injustiça ou frustração. Logo, quando o sofrimento, a injustiça ou a frustração podem ser expressos e ouvidos, a pessoa pode recuperar sua integridade e a violência não terá mais lugar.

Para evitar a violência, para cessá-la, é fundamental o diálogo, para fazer com que as palavras tomem o lugar dos golpes. A não-violência passa, portanto, pela linguagem, mas que linguagem? Cada um sabe bem como uma palavra pode desencadear a fúria no outro, como uma frase pode realmente aprisionar mais que grades. Há uma linguagem da violência. É uma linguagem que julga, desvaloriza, nega a existência do outro, desconsidera as emoções. [...] E há a linguagem da não-violência, aquela que escuta e respeita, aquela que reconhece o outro, que compartilha as emoções, que exprime as necessidades. (FILLIOZAT, 1997, p. 174, tradução nossa).

Desdobrando essa interpretação e coligando-a à nossa temática, da palavra ao diálogo e à cultura de dar espaço ao sofrimento, podemos dizer que esse processo de civilização, perpassa, atualmente, pela difusão da cultura da paz.

Como Freud fala de instinto agressivo e não instinto violento, vários psicanalistas tentam evidenciar a diferença entre instinto de agressividade e violência, mostrando a relação entre eles. Para Jurandir Freire Costa (apud FAGUNDES, 2004, p. 28), Freud manifesta a clara possibilidade do instinto agressivo coexistir tanto com a paz como com a violência, visto que instinto agressivo não é o mesmo que violência. Nesse mesmo contexto, afirma Jurandir que violência "é o emprego desejado da agressividade com fins destrutivos, o desejo podendo ser consciente ou inconsciente, racional ou irracional." Inclusive complementa essa afirmação ilustrando que o instinto agressivo não exprime desejo de destruição, logo, uma agressão instintiva não é lida pelo autor da ação, por quem a recebe ou por quem somente observa, como uma ação violenta. Para ele, a violência é fruto da cultura, ou seja, uma forma particular de resolver um conflito que não foi resolvido pelo diálogo ou cooperação.

Daqui podemos perceber como abrir espaço a práticas pautadas pelo diálogo podem evitar ações violentas. Um dado interessante levantado por Fagundes (2004) é que a violência na negação do outro não é somente destrutiva em relação ao outro como também a si próprio, visto a negação da capacidade de amor, compaixão e reparação. Constata, ainda, que embora a violência sempre tenha existido entre os homens, também sempre existiu uma revolta contra ela, manifestada por meio da solidariedade, da compaixão, do bem comum, de valores éticos contra as injustiças, etc. Logo, a partir da afirmação de Freud no texto "Por que a guerra?" de que: tudo aquilo que contribui para o processo civilizacional trabalha contra a guerra, Fagundes conclui que o que Freud chama de contribuição ao processo de civilização é tudo que pode encorajar o desenvolvimento de ligações emocionais entre os homens, ou seja, é o amor que pode conter a destrutividade e a violência.

O relatório da Organização Mundial de Saúde sobre a violência mundial e a saúde de 2000 aponta fatores de risco de violência: pobreza, desigualdades sociais, desemprego, iniqüidades, normas que apóiam a violência, disponibilidade de armas de fogo, debilidade policial e de justiça, violência nos meios de comunicação. E recomenda as seguintes formas de combate à violência: criar, colocar em prática e monitorar planos nacionais de prevenção à violência; aumentar a capacidade de coleta de dados sobre a violência; definir prioridades e apoiar a pesquisa sobre as causas, as conseqüências, os custos e as atividades de prevenção à violência; promover respostas de atenção primária; fortalecer respostas para as vítimas da violência; integrar a prevenção da violência a políticas sociais de educação e promover eqüidade social e de gênero; incrementar a colaboração e o intercâmbio de informação em prevenção à violência; promover e monitorar a adesão de nações a tratados internacionais, leis e outros mecanismos para proteger os direitos humanos; buscar respostas práticas apoiadas internacionalmente para controlar o tráfico de drogas e de armas. (FAGUNDES, 2004, p. 38)

Numa interpretação de Lima (2004) à teorização de Freud sobre identificação, diz o psicanalista, docente do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que o processo civilizatório significa uma renúncia às satisfações instituais e que o grande mal-estar é resultante desse processo.

Ligando o mal-estar ao sofrimento, Marin (2004) relaciona as três causas do sofrimento do homem segundo Freud às promessas da Modernidade para afugentá-las. O fato é que essas promessas não foram cumpridas e o homem convive com o sonho de acabar com o sofrimento. Segundo ela, a psicanálise, inclusive, contribuiu com esse sonho comum, "num projeto iluminista de desvelamento do inconsciente, de regulação das emoções".

Segundo Freud (1997), o homem convive com três fontes de sofrimento: o poder superior da natureza, a fragilidade dos próprios corpos e a inadequação das regras para o ajuste das relações mútuas dos seres humanos. Enquanto as duas primeiras fontes são inevitáveis, a terceira é alvo de inaceitação, pois, como o homem pode criar regras que, ao invés de proteção e felicidade, causam sofrimento? A grande questão é que se faz a leitura de que o sofrimento social é fruto do processo civilizatório, da cultura, que estimula a contenção dos instintos em razão da vida coletiva.

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição [...] Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, quem, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns os outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. (FREUD, 1997, p. 111-112).

Segundo Marin, a Modernidade alimentou a ilusão de que as causas desses sofrimentos poderiam ser controladas pela tecnologia, pela ciência e pela razão. Nas palavras de Marin (2004, p. 89): "O ideal de auto-suficiência, que a liberdade e a autonomia para o qual o homem moderno foi educado viria para protegê-lo, quem sabe, do incômodo do inferno que são os outros, parafraseando Sartre." Nesse contexto, continua Marin, aquilo que mais se vê hoje em dia é a "hipervalorização do 'cada um na sua' ou do 'estar bem aqui e agora', a importância do auto-conhecimento, do 'ser mais eu'."

A questão é que os sofrimentos são latentes. Como lidar então com eles nesse contexto de que sofrer é algo de "extremo mau gosto"? E como tratar deles se a sociedade contemporânea "nega a possibilidade do enfrentamento do sofrimento"? São interrogações a partir das constatações de Marin em sua leitura do comportamento social.

Para Marin (2004), a ética parece ser a grande saída no enfrentamento do sofrimento e lembra que, segundo Freud, "a ética é uma limitação do instinto." A ética se funda em função da alteridade, afirma Marin (2004, p. 97), logo, "é no enfrentamento, confrontando, encontrando o outro, resgatando a dimensão fundamental do ser humano - que é a de sua dependência em relação a outro ser humano -, que se pode encontrar soluções de paz para esses embates tantas vezes violentos. Por isso não se pode fugir à responsabilidade de tais encontros, mesmo que isso pareça tão insuportável nos dias de hoje."

Como diz Muller (2007, p. 31): "Exercer violência significa causar sofrimento, e o sofrimento pode ser mais temível do que a morte."

A não-violência se afirma como uma exigência para o homem a partir da experiência da violência nele ou no outro, afirma Muller (2007). Para o autor, mesmo sendo a não-violência uma "solicitação da razão", "exigência da consciência" ou mesmo "reinvidicação do espírito" anteriores à experiência da violência, é após experimentá-la que o homem toma ciência de sua "desumanidade", "irracionalidade", "nonsense".

Segundo Muller (2007, p. 23, grifo do autor), a violência é desequilíbrio, enquanto que a não-violência caracteriza-se por buscar o equilíbrio dentro do próprio conflito. Vejamos:

Na realidade, perante uma injustiça, a passividade é a atitude muito mais disseminada do que a violência. A capacidade de resignação dos homens é consideravelmente maior do que a capacidade de revoltar-se. Por isso, uma das primeiras tarefas da ação não-violenta é 'mobilizar', ou seja, colocar em movimento precisamente aqueles que se submetem à injustiça, despertando-lhes a agressividade para prepará-los à luta e suscitar o conflito. Não há conflito enquanto o escravo se submete ao seu senhor. Pelo contrário, é assim que a 'ordem' é estabelecida e reina a 'paz social', sem que nada nem ninguém possa fazer-lhes objeção. O conflito só ocorre a partir do momento em que o escravo demonstra agressividade suficiente para 'ir ao encontro' (ad-gradi) de seu senhor, ousar enfrentá-lo e reivindicar seus direitos. A não-violência pressupõe, antes de tudo, ser capaz de mostrar agressividade. Nesse sentido, é preciso assinalar que a não-violência encontra-se em maior oposição à passividade e à resignação do que à violência. A ação não-violenta coletiva deve permitir canalizar a agressividade natural dos indivíduos, de forma que não se expresse através dos meios da violência destruidora, meios que possibilitam outras violências e injustiças, mas por meios justos e pacíficos que possam construir uma sociedade mais justa e pacífica. Na realidade, a violência não deixa de ser uma perversão da agressividade.

A não-violência, como diz Muller (2007), é fundamentada na recusa a toda legitimação da violência. Para ele, por mais que as violências contemporâneas sejam explicadas a partir do contexto econômico-político, todas elas têm uma base comum: a cultura da violência. Apontando a violência como elemento cultural, o autor de "O princípio da não-violência: uma trajetória filosófica", evidencia a difusão cultural da violência, a partir da explicação da imitação mimética da conduta do outro (5), como elemento de identidade entre os homens. Assim, afirma que a paz não se instalará necessariamente pela aceitação das diferenças, pela tolerância às diversidades, mas pela recusa às nossas semelhanças, ou seja, a cultura que nos identifica.

Mas o que seria e como se daria essa cultura da violência? Para Muller (2007, p. 12-13, grifos do autor), a cultura da violência se dá quando:

[...] sob efeito da influência social, os indivíduos orientam seu comportamento privilegiando a violência como meio normal de defender sua comunidade ante as ameaças que pesam sobre ela. A sociedade cultiva a violência (cultivar vem do latim colare, que significa ao mesmo tempo cultivar e honrar), inculcando-a nos indivíduos como virtude do homem forte, do homem corajoso, do homem honrado, que se arrisca morrer para defender os 'valores' que dão sentido à sua vida. No imaginário popular, o herói é aquele que pegou em armas para defender a pátria contra os bárbaros. E a sociedade ergue monumentos e presta culto a seus heróis. [...] a partir do momento em que homens começaram a derramar seu próprio sangue por uma causa, esta, qualquer que seja, torna-se sagrada, e eles precisarão continuar a derramar sangue, a fim de que não se possa dizer que as primeiras vítimas o derramaram em vão. Efetivamente, é a violência que sacraliza a causa e não o inverso.

Ainda segundo Muller (2007, p.13), a cultura da violência está apoiada na "'ideologia da violência', cuja função é construir uma representação da violência que não deixa ver aquilo que ela é na verdade - desumana e escandalosa. [...] O objetivo almejado - e na maioria das vezes alcançado - é a banalização da violência." Ainda para o autor, é graças à ideologia da violência que cada indivíduo justifica sua própria violência.

Há uma grande problemática em torno da compreensão sobre a violência e a não-violência. Muller (2007) afirma que a não-violência tem uma consciência mais realista em relação à violência, pois compreende bem seu aspecto cultural e não toma a violência como algo natural, pois, para ele, a violência é somente uma expressão da agressividade, esta sim inscrita na natureza humana. Nesse mesmo sentido, encontra-se Freud, além de vários psicólogos e psicanalistas, já referenciados.

A agressividade é uma força de combatividade, de auto-afirmação, constitutiva da minha personalidade. Permite-me confrontar o outro sem esquivar-me. Ser agressivo significa manifestar-me diante do outro, caminhando ao seu encontro. O verbo agredir vem do latim aggredi, cuja etimologia ad-gradi significa 'caminhar em direção', 'ir ao encontro'. Apenas num sentido derivado agredir significa 'caminhar contra': isso se deve ao fato de que, na guerra, caminhar em direção ao inimigo significa ir de encontro a ele, ou seja, atacá-lo. Assim, em sua etimologia, o verbo a-gredir não implicaria uma violência maior do que o verbo pro-gredir que significa 'caminhar para frente'. Demonstrar agressividade significa aceitar o conflito com o outro, sem submeter-se à sua lei. Sem a agressividade, eu estaria constantemente em fuga diante das ameaças que os outros lançam sobre mim. Sem agressividade, eu seria incapaz de vencer o medo que me paralisaria e me impediria de opor-me a meu adversário e de lutar contra ele, para que reconheça e respeite meus direitos. Para ir em direção ao outro é preciso demonstrar audácia e coragem, pois significa ir em direção ao desconhecido, partir para uma aventura. (MULLER, 2007, p. 22, grifos do autor).

A não-violência vem se delineando, portanto, como um terreno propício à semente da Mediação Humanista, além de se harmonizar sobremaneira como o discurso propositivo de uma sociedade de parceria. A não-violência só faz sentido se pensarmos a partir de outros paradigmas, ou seja, fora do modelo androcrático ou de dominação, pois, raciocinando por meio de suas estruturas, só a violência faz sentido e pode ser de fato combativa. Por exemplo, pode-se perceber como a perspectiva sobre luta, coragem e medo é completamente diferente numa cultura violenta e não-violenta. Vejamos.

Como diz Muller (2007), interpretando Gandhi, a escolha pela não-violência é uma escolha dos bravos por não matar e não matar implica o risco de ser morto e esse risco produz um medo. Diante desse medo, a violência procura combater a sua causa, sem libertar o homem do medo, enquanto a não-violência liberta totalmente o homem do medo. Logo, exercitar-se na não-violência é prepara-se para a natural circunstância da morte. Esta morte pode advir da luta e a bravura está em enfrentá-la em nome do que dá sentido a vida que, para Gandhi, era a verdade intimamente ligada ao amor.

Toda luta exemplificada por Gandhi na não-cooperação dos indianos com a dominação do sistema colonial britânico evidencia que a luta não-violenta se dá em erradicar o mal sem eliminar aquele que o promove. A não-cooperação é uma ação que busca impedir o mal, após tentativas de dissuasão e convencimento para uma mudança de atitude.

[...] a não-violência é, antes de tudo e essencialmente, uma atitude, uma atitude que se distingue (da covardia e) da violência, uma outra atitude para com outros homens que gera uma outra atitude em relação à morte e ao homicídio. Ela é a atitude ética e espiritual do homem forte que reconhece a violência como a negação da humanidade e que decide recusar submeter-se ao seu domínio. Semelhante atitude fundamenta-se na convicção existencial de que a não-violência é uma resistência mais forte à violência do que a contra-violência. Indubitavelmente, o objetivo da ação não-violenta é criar condições que permitam ao adversário que escolheu a violência mudar de atitude. Esse objetivo é uma aposta que comporta um risco de morte. É precisamente nesse risco que se encontra a esperança da vida. (MULLER, 2007, p. 254-255, grifos do autor).

É curioso perceber como o discurso da não-violência comove, envolve, empolga e enleva. No auge da enlevação, logo vem o que se chama "choque de realidade" (volta ao enquadramento mental androcrático) e atribuimos à não-violência o patamar de utopia. Mas por que a utopia mexe tanto conosco e ao mesmo tempo afeta quase nada? Mexe tanto ao ponto de afastarmos essa força avassaladora que nos convida à felicidade e à satisfação, mas quase não nos afeta ao ponto de materializarmos nossos desejos em atitudes, em ação.

Por que para falar de não-violência, de paz, de amor, de libertação do sofrimento, temos que buscar um fundamento de legitimação no "clero secular", como diz Eisler? Por que enquadrar em categorias, aceitas pelos acadêmicos e muitas vezes construídas claramente numa perspectiva equivocada ou violenta, aquilo que flui?

Hoje, considerada por muitos não-razoável, a não-violência não é suscetível de atrair a atenção nem o interesse. Na melhor das hipóteses, desperta a simpatia distante de certo número de pessoas, que ainda manifestam uma extrema reserva em relação à não-violência. Tudo acontece como se as pessoas racionais sentissem, ante o olhar dos outros, certo pudor que as impedisse de levar a não-violência a sério. (MULLER, 2007, p. 233).

A liberdade da sensibilidade ainda não aconteceu e nem da racionalidade. Talvez ainda estejamos sob o jugo da razão moderna que de aspecto da razão foi soerguida ao patamar de absoluto. É imprescindível reproduzir, como desfecho, trechos do pensamento de Eisler (2007, p. 268-270):

Esse assunto da nossa interconexão mútua - que Jean Baker Miller chama de filiação, Jessie Bernand chama de 'ambiência feminina de amor/dever', e que Jesus, Gandhi e outros líderes espirituais chamam simplesmente de amor - é ainda hoje também objeto da ciência. A 'nova ciência' que vai se formando, da qual a teoria do caos e a produção acadêmica feminista são parte integrante, vem focalizando mais os relacionamentos que as hierarquias. [...] Salk escreveu sobre uma nova ciência da empatia, uma ciência que usará razão e emoção 'para mudar a mentalidade coletiva e influenciar construtivamente o curso do futuro humano'. Essa abordagem científica - adotada com grande sucesso pela geneticista Barbara McClintock, que ganhou o Prêmio Nobel em 1983 - olha para a sociedade humana como um sistema vivo do qual todos nós somos uma parte. Como disse Ashley Montagu, esta será uma ciência coerente com o sentido verdadeiro e primeiro da educação: promover e desenvolver as potencialidades inatas do ser humano. Acima de tudo, e como afirma Hullary Rose em Hand, brain, and heart: a feminist epistemology for the natural sciences [Mão, cérebro e coração: uma epistemologia feminista para as ciências naturais], esta não será mais uma ciência 'voltada para o domínio da natureza ou da humanidade enquanto parte da natureza'. Evelyn Fox Keller, Carol Christ, Rita Arditti e outras cientistas observam que, sob o manto protetor da 'objetividade' e da 'independência do campo disciplinar', a ciência tem frequentemente rejeitado como 'não científicas' e 'subjetivas' as preocupações compassivas, consideradas pela visão tradicional como demasiadamente femininas. [...] A nova ciência é também um passo importante para que possamos fazer uma ponte entre ciência e espiritualidade a fim de cobrir a lacuna criada, em boa parte, por uma cosmovisão que relega a empatia às mulheres e aos homens afeminados. Os cientistas começaram a reconhecer que, assim como o conflito artificial entre espírito e natureza, entre mulher e homem e entre as diferentes raças, religiões e grupos étnicos (todos fomentados pela mentalidade de dominação), também nosso modo de encarar os conflitos precisa ser revisto. [...] A utilização do conflito não-violento como forma de conseguir mudanças sociais não se trata de mera resistência passiva. Recusando-se a cooperar com a violência e a injustiça através do uso de meios não-violentos e justos, estamos criando a energia transformadora positiva que Gandhi chamou de satyagraha ou 'força da verdade'. Como disse Gandhi, o objetivo é transformar o conflito em vez de suprimi-lo ou detoná-lo através da violência.

Muller (2007) expõe bem a diferença entre a violência e a não-violência diante de um conflito aludindo ao episódio de Alexandre Magno diante um complicado nó que, se dasatado, segundo o oráculo, lhe garantiria o império da Ásia. O então rei da Macedônia, após tentar sem sucesso desatá-lo, corta o nó com a espada. Assim é a ação violenta, diz Muller, "corta o nó em vez de dasatá-lo". Para ele, solucionar um conflito, ou seja, promover o desenlace, implica intervir ao mesmo tempo nas suas causas e a violência não é capaz dessa atitude em diferentes ações, visto concentrar-se em uma só causa, atuando em uma só direção.

A mediação é uma experiência de desenlace, que se caracteriza na passagem da adversidade para a conversação, como expõe Muller (2007), ou seja, na condução de um para ou outro, no intuito de passar da conversa à compreensão e desta à reconciliação. Esse processo se dá trazendo à tona e trabalhando os afetos que outrora ensejaram o conflito. Diz Fagundes (2004, p. 24) que: "Violência e agressão são ações, enquanto raiva, hostilidade, agressividade e ódio são afetos subjacentes, mobilizadores dessas ações."

Nesse diapasão, nossa proposta é justamente trabalhar esses afetos para evitar a violência, estando cientes de que várias são as causas da violência, mas, como diz Gerber (2004, p. 46): "[...] o ser odiento e violento é inevitavelmente um falso-self apavorado com o próprio desamparo."

Dessa forma, a busca pela redução de danos no encarceramento das mulheres do Bom Pastor já encontrou seu norte: combater a violência com a não-violência, procedimentalizada em ações que buscam tratar as emoções, promovendo a libertação do sofrimento. Essa é a grande não cooperação com a violência, é a inaceitação do convite à violência, é a expressão da ação não-violenta, é a nossa satyagraha, inspirada nas ações do povo indiano com o apoio e a orientação de Gandhi, na luta pela libertação.

1.2 "Evasão legal": práticas redutoras de danos e inclusão social

Refletindo acerca da experiência trazida por Pavarini no curso: "Como liberar-se da necessidade do cárcere: um curso de pesquisa-ação sobre a penalidade em Pernambuco", voltado à compreensão do cárcere, do aprisionamento e da cidade, pode-se perceber algumas práticas que vêm auxiliando na redução da violência no ambiente carcerário e, ao mesmo tempo, contribuindo para o processo de inclusão social.

Falar de inclusão social é brigar com o mundo, disse Pavarini, pois as sociedades são, em regra, anoréxicas. É preciso ter consciência de que a luta é grande e difícil de ser vencida, por isso, é preciso pensar em propostas concretas e não abstratas.

Com o Estado Social, tentou-se a inclusão de todos, mas isto não aconteceu em todos os países e está declinando nos demais. Além do que, a origem da pena é de exclusão. A pena tem adquirido formas diferentes com o passar dos tempos, no entanto, é importante ressaltar que o castigo é uma prática antiga e sua lógica é produzir sofrimento e exclusão. Logo, é possível incluir mais pessoas a partir de um processo de exclusão?

Parece óbvio que não. No entanto, o que fazer? Aceitar que as coisas sejam assim mesmo? Não enxergar que a violência na cidade está também vinculada à violência institucional (6) no ambiente carcerário? Ou pensar práticas redutoras de danos que diminuam a violência carcerária e também torne mais "vivível" a cidade (7)? Antes da análise dessas medidas, é fundamental relembrar algumas coisas.

A história do cárcere moderno é ligada à captação do lumpemproletariado, ou seja, classe que rejeita a cultura do trabalho moderno, aqueles que romperam o contrato de trabalho, aos quais não cabem direitos, que não se tem como incluir, ou seja, o pobre delinquente. O cárcere moderno nasceu com a proposta de educar ao trabalho se possível, pois, caso contrário, contribuía para dizimar o lumpem quando as doenças e as guerras não o dizimaram suficientemente, diz Pavarini (2011). Segundo pesquisas realizadas na Itália, a cada um ano preso, a expectativa de vida é reduzida em 15 anos. "O cárcere faz mal à saúde!" Na prática, constata o autor, o cárcere é um resquício da escravidão, cuja finalidade é fazer como que os presos percam seus direitos e se tornem objetos.

Diante disso, enfatiza Pavarini, é preciso pensar realisticamente uma sociedade distinta e, para essa utopia concreta, o discurso dos Direitos Humanos significa uma possível estratégia. O que fazer concretamente, portanto? Segundo ele, reduzir, ao máximo, o tempo do encarceramento, por meio da evasão legal, estratégia vinculada ao trabalho e à educação dos mecanismos legais para sair mais rapidamente do cárcere.

A construção da consciência de como sair do cárcere legalmente, ou seja, educar os presos nos meios legais de reduzir o tempo na prisão é um passo importante, mas lembra o autor de "Cárcere e Fábrica" que nenhuma proposta de inclusão consegue seguir adiante sem o apoio da opinião pública (8), sem a mudança de estereótipos, por isso, são fundamentais projetos nesse sentido de esclarecimento e sensibilização da sociedade para a realidade do cárcere e para a necessidade de acolhimento do reeducando. No entanto, essas práticas não se tornam suficientes se não forem aliadas à inserção do ex-detento no mercado de trabalho.

É fato a dificuldade de empregar ex-presidiários, por isso, a afirmação de que o cárcere produz mais pobreza e marginalização, então, como promover a inserção no mercado de trabalho dessas pessoas? O mercado tem como (ou quer) acolhê-las?

O cárcere é, portanto, um problema da cidade. Nessa perspectiva, Pavarini apresentou o Projeto "Cárcere e cidade", esclarecendo que cabe à sociedade civil reduzir o espaço da penalidade, através, por exemplo, da prática do voluntariado, que é uma forma de ação política. Como o cárcere é reprodutor da violência, à medida que aumenta-se o cárcere, cresce o índice de violência.

A batalha pelos direitos humanos perpassa por algumas questões que podem contribuir para redução de danos no encarceramento de pessoas, mas, em síntese, como o cárcere é um locus de não direito, a única reforma carcerária é reduzir o cárcere. É preciso, portanto, estruturar uma agenda política precisa, com alianças políticas e voluntariado, atenta a algumas diretrizes gerais, dentre as quais:

  1. Ao se abrir novo cárcere, é preciso fechar o anterior;
  2. É preciso que seja determinada e cumprida, a partir dos índices internacionais, a quantidade de presos e os seus espaços;
  3. Em caso de superpopulação, converter a pena privativa de liberdade em alguma restritiva de direitos para aqueles que estão presos e, até que se abra uma nova vaga, deixar os novos presos em outra custódia cautelar diferente da prisão;
  4. Criar um governo do cárcere, um sujeito político, composto por: políticos, administradores, professores, alunos, empresários, inclusive, ex-presos e familiares de presos. Essa associação tem a perspectiva de humanizar o cárcere e de reduzir o número de pessoas no cárcere, reduzindo o próprio cárcere;
  5. Capacitação dos Agentes Penitenciários;
  6. A formação profissional no cárcere;
  7. Abrir o cárcere à sociedade civil;
  8. Inserir essas perspectivas na mídia;
  9. Promover comunicações internacionais;
  10. Produzir artigos, divulgando essas práticas e discutindo essas temáticas do encarceramento.

Consciente dessa realidade e estimulada pela necessidade de estipular ações políticas capazes de reduzir os efeitos dessocializantes do cárcere, estrutura-se a proposta de levar a Mediação Humanista ao Bom Pastor, como uma importante ação no conjunto de ações propostas pelo Professor Pavarini.

1.3 A educação ético-afetiva e sua função social: uma etapa continuada no processo de Reinserção Social Singular

Segundo Juliana Merçon (2009), a existência de um corpo é marcada por sua constante relação com outros corpos, pela sua possibilidade de afetar e ser afetado. Afetividade é exatamente isso: a arte do encontro de afetar e ser afetado. A questão é que esse encontro pode diminuir nossas forças ou nos potencializar. É característica de corpos mais complexos serem mais potentes, ou seja, terem maior potencialidade de se afetar, de se sensibilizar e, também, de afetar, de produzir. Quanto mais potente, mais conscientemente produz afetos.

Estamos nos relacionando durante todos os momentos. Ora somos submetidos a experiências tristes e alegres, ora procuramos vivenciar, espontaneamente, essas experiências. Ocorre que o aumento da potencialidade de um corpo se dá com o encontro de paixões alegres, ou seja, de experiências alegres, coisa que acontece ao inverso com experiências tristes.

Segundo Spinoza, os homens são dotados de um conatus, ou seja, de um esforço ou tendência afirmativa de o sujeito persistir na sua existência, como explica Deleuze em "Espinoza e os signos". O conatus seria o esforço para experimentar a alegria - já que os afetos de alegria promovem a expansão de nossas potências de agir - e, também, para afastar a tristeza. A potência de agir ou força de existir é diretamente proporcional à alegria e inversamente proporcional à tristeza.

Na perspectiva interpretativa de Merçon, portanto, aumento ou redução de potência está vinculado a um aspecto ético na orientação da convivência social, e não analisado isoladamente, autonomamente. Ao refletirmos sobre a potência, sem relação com a ética, uma paixão triste, uma experiência negativa, pode, sim, potencializar um corpo. A raiva, a revolta, a angústia são, muitas vezes, sentimentos potencializadores, no entanto, a depender de como são canalizados, podem significar, ao inverso disso, redução de potência. Se canalizados para a destrutividade de si mesmo ou de outros corpos, não há que se falar em aumento de potência.

No ambiente carcerário, há alguns encontros alegres, potencializadores, e tantos outros tristes, como: solidão, quando se quer o outro; ausência de liberdade, quando se tem a "tranca"; espaço, quando se divide um fino colchão para três; agir com espontaneidade, quando só resta "sim, senhor!", ou meramente o silêncio; uma comidinha preparada por você ou por uma pessoa querida, quando só se tem "aquela comida"; o acolhimento de um ente querido, quando só se tem um tratamento hostil, desrespeitoso, por vezes, cruel. Diante dessas tristezas, como falar de encontros alegres, logo, aumento de potência?

O cárcere não se restringe a isto. Algumas coisas vão desvendando esse universo tão preconcebido e tão repleto de dobras. Ele se denota na cinematográfica capacidade de adaptação de uma determinada detenta na Colônia Penal Feminina, que conversava com um gato e com os diversos pombos do Bom Pastor, e se questionava: como alguém pode ser tão ruim assim de fazer mal a um desses animais, quando ela mesma se autodenominava "caça-rato". Essa "menina de rua", era assim que ela se apresentava, embora já tivesse mais de 30 anos, foi capaz de desenvolver amor, atenção e cuidado, foi capaz de afetar demais. Certa vez, quando de longe avistou alguém que lhe trazia uma sacola de plástico, contendo um detergente, uma água sanitária e alguns sabonetes, emocionou-se dizendo: "agora eu sou alguém! Antes eu era caça-rato". É possível ser só, não ter família, não ter visita, viver como "caça-rato" e promover tantos afetos positivos?

O cárcere é, também, o relato de outra detenta que me disse, certa vez, "às vezes a gente só percebe que teria outra alternativa ao que fizemos quando estamos aqui", ou ainda, uma terceira detenta que, contrariando um comentário acerca da abolição do cárcere, disse: "eu acho certo existir a cadeia... se não fosse ela, eu ainda estaria traficando... fui pega na minha primeira tentativa de tráfico."

Segundo Merçon (2009), a ética de Spinoza pode ser compreendida como um aprendizado afetivo, ou seja, um processo singular de expansão de nossas potências. Por isso, a educação ético-afetiva é tida como a arte de propiciar encontros potencializadores.

Para ela, a educação tem vários poderes, entre eles, a organização da vida em sociedade, a busca pela preservação ou atualização do bem comum, assim como, o controle social exercido por paixões tristes. A grande questão é refletir sobre o que seria, realmente, bem comum como finalidade da educação, para evitar que a moral, fundamento educacional do bem comum, não afaste o sujeito daquilo que lhe é útil, em nome de um sistema generalista do bem e do mal. Ainda para a referida autora, o verdadeiro bem só pode ser favorecido pela educação se esta se pautar na liberdade e não na obediência de seus poderes.

Assim compreendida, a educação atua organizando encontros, buscando promover concórdia e ajuda mútua entre seus membros, constituindo, com suas regras, um viver comum. A educação pode ser, nesse sentido, considerada um auxílio formador, derivado da potência coletiva em seu esforço para perseverar em sua existência. A educação formal, como produtora de encontros que expandem as nossas potências de pensar e agir, soma-se, assim ao aprendizado ético-afetivo individual, o qual se constitui como uma experiência longa, lenta e árdua, sempre atravessada pelos riscos postos por potências superiores e contrárias. [...] a educação busca oferecer caminhos práticos para a transição de nossa passividade e impotência à atividade que alcançamos pelo exercício de nosso pensar. (MERÇON, 2009, p. 120).

É certo que faz parte do processo educacional moderno também a promoção da obediência por meio de paixões essencialmente tristes, tais quais, o medo e a esperança, identificados tanto nas políticas de manutenção do Estado moderno, como também, na política carcerária. Essa relação é possível por serem instituições modernas inseridas num mesmo processo econômico-cultural. Vejamos:

Assim, ao afirmar que a coesão social e a submissão às regras do Estado resultam do medo que temos de vivenciar um mal maior e da esperança de um bem maior, Spinoza indica que a formação e a manutenção do Estado tem por base a própria tristeza, isto é, a marca de nossa passividade, de nossa carência de conhecimento ou a importância do nosso pensar. Por serem as paixões constitutivas do nosso viver, ou, em outras palavras, por não podermos ser guiadas por um pensar constantemente ativo, haverá também, na organização e regulamento das associações sociais produzidas pela educação, elementos ligados ao medo de punições e à esperança de recompensas, cuja força varia conforme experienciemos ou não a potência de nosso próprio pensar. Lembremos, contudo, que como ressaltado anteriormente, é também do próprio interesse do Estado que não sejamos fortemente dominadas pelo medo ou pela esperança, visto que, se tememos demasiadamente suas intervenções, retornamos a um suposto estado de desproteção, no qual as ameaças superam nossas forças, o que atesta a importância da organização civil e pode levar à sua própria ruptura ou dissolução. O Estado e a educação, portanto, têm também perigos a temer, pois, da mesma maneira que, no estado natural, um homem depende tanto menos de si próprio quanto mais razões tem para temer, também a cidade se pertence tanto menos quanto mais em a recear. Consequentemente, embora paixões tristes participem da formação e exercício dos poderes da educação, é também para próprio benefício do todo social que a educação venha a promover a ativação de nosso pensar. (MERÇON, 2009, p. 124-125).

É possível aqui estabelecer uma relação entre esse modelo educacional "esperança e medo" e o modelo que vigora na política carcerária, ou seja, "prêmio e castigo". A lógica educativa do cárcere se dá através da opção entre se estar melhor ou pior no cárcere, ou seja, se você tem bom comportamento carcerário, você pode fazer jus a uma série de benefícios: trabalhar dentro ou fora da unidade prisional, reduzir a pena ou ter o perdão do restante da pena (comutação de pena e indulto), ter saídas temporárias, etc. Se você, ao invés, não "quer colaborar", o cárcere pode ser ainda mais rígido e difícil ("tranca" e entorpecentes). O dado interessante foi o comentário do agente penitenciário quando mencionou que os presos "perigosos" (geralmente ligados ao crime organizado) são os que mais apresentam bom comportamento carcerário; já os "ladrões de galinha" sempre estão metidos em confusão. Ainda segundo ele, os perigosos conhecem o procedimento carcerário e sabem como agir para tornar a estada menos dolorosa; já os outros ...

Essa lógica de prêmio e castigo, ou tradução da pedagogia da meritocracia, segundo Pavarini (1987), configura-se como um meio de educar os detentos no respeito à lei, ou seja, às regras do jogo, imperativas também para a sociedade em geral. A partir dos prêmios e dos castigos, percebe-se que há vários cárceres no mesmo cárcere. Para cada detento, ele se apresenta diferentemente, singularmente.

Dessa forma, no ambiente carcerário, esse modelo de educação é mais pautado nas ameaças de punição e recompensa que na razão ético-afetiva e, somente em algumas circunstâncias, é capaz de favorecer o aumento de potências positivas.

Assim como outros processos sociopolíticos necessários à preservação do viver comum, a educação tende tanto à atividade como à passividade, pois constitui-se, em sua base imaginativa, tanto por elementos que podem vir a gerar conveniência, composição ou racionalidade, como também através de mecanismos que geram coesão por meio de restrições, mitos, ilusões ou superstições. O princípio que movimenta a educação, tanto no exercício de seu poder produtor de paixões alegres como de seu poder controlador por meio das paixões tristes, é conatus da coletividade. (MERÇON, 2009, p.126).

Cabe-nos, portanto, investigar se é possível estabelecer uma educação potencializadora no ambiente carcerário, ao invés de uma limitadora. Essa análise se dará sob inspiração spinozana e buscará desvendar a base mítica que apoia essa educação por meio da obediência.

1.3.1 A educação ético-afetiva em ambiente carcerário: singularidades e possibilidades

Encarcerar é o mesmo que escravizar, como afirma Pavarini (2011). O aprisionamento é um processo de tornar o homem escravo, o homem objeto a ser manipulado conforme um desejo estatal, manifestado pelo processo educacional, pautado na obediência. Dessa forma, é possível afirmar que a educação escraviza o homem, visto a produção de afetos passivos?

É importante enfatizar que a obediência, por si só, não torna o homem escravo. Segundo Spinoza (apud MERÇON, 2009, p. 135), há diversas formas de obediência e para diferenciá-las, o autor traça um comparativo entre um escravo, um filho e um súdito:

[...] escravo é aquele que é obrigado a obedecer às ordens do dono, que não visam senão o que é útil para quem manda; filho, porém, é aquele que faz o que lhe é útil por ordem dos pais; súdito, finalmente, é aquele que faz, por ordem da autoridade soberana, o que é útil ao bem comum e, consequentemente, também é útil a si próprio.

Logo, a educação pode tanto diminuir como aumentar a potência. Como diz Merçon (2009, p. 138):

A capacidade de agir com base no conhecimento e na virtude, e não no medo ou na punição, é o que distingue uma educação sábia de uma educação que exerce um poder que se mantém pela inadequação de suas paixões e de seus mecanismos opressores.

Sendo o fim da educação, como afirma a referida autora, a libertação do sujeito do medo, ao invés de dominá-lo por este sentimento, subjugando-o, atende o cárcere a sua função educacional? A ética, no âmbito da educação, diminui as relações de obediência e poderes morais educativos.

Há diversos teóricos que negam qualquer contribuição do cárcere para a reinserção social, dentre eles, Alessandro Baratta e Massimo Pavarini, pois afirmam que punir e educar são ações que não se associam. Afirma Pavarini que é mais fácil o cárcere deixar de existir do que ele ser capaz de reinserir o sujeito, visto, certamente, não ser essa a sua preocupação.

A privação de liberdade é o modelo punitivo por excelência - o castigo moderno. Como castigar, produzir sofrimento, promover encontros tristes, reduzir a potência de agir e educar o sujeito para uma convivência pacífica? O sujeito é devolvido a uma sociedade que o teme, que não acredita na sua capacidade de reinserção, que não o enxerga como um sujeito positivamente potente, capaz de produzir afetos positivos e que, possivelmente, não o acolherá.

Dentro do contexto dessa sociedade capitalista, será que se pretende a formação de um sujeito potente ou se intenciona a devolução do sujeito à parcela da sociedade miserável e não violenta, submissa, apática, não reativa (pois reação também é conatus)? Pelo visto o problema não é tanto o que fazer, ou como fazer para reinserir o sujeito na sociedade, mas para onde seria essa reinserção, o que se pretende que esse sujeito seja. É, esses sujeitos podem ser vistos simplesmente como massa (9). São sujeitos ou são massa? São alvo de educação ou de adestramento? Estão para serem reinseridos onde estavam, ressocializados, conforme a socialização da cultura dominante, ou colocados onde se pretende, no "não território", na ausência de poder, no mínimo de potência?

Logo, o cárcere é um espaço de punição ou de educação? É possível punir e educar ao mesmo tempo? Pelas razões aqui discutidas nas análises dos dados produzidos na pesquisa de campo e pelas violentas relações travadas constantemente nos ambientes prisionais, não é possível diagnosticar o cárcere como um espaço de educação, ele é um espaço de punição. Baratta (2002, 183-184) explicita bem essa diferença e inviabilidade de comunhão dessas estratégias.

A comunidade carcerária tem, nas sociedades capitalistas contemporâneas, características constantes, predominantes em relação às diferenças nacionais, e que permitiram a construção de um verdadeiro e próprio modelo [...] O cárcere é contrário a todo moderno ideal educativo, porque este promove a individualidade, o auto-respeito do indivíduo, alimentado pelo respeito que o educador tem dele [...] A educação promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante.

Segundo Baratta (2002, p. 186), o cárcere é uma instituição que não educa o sujeito e nem tem interesse nessa proposta, na verdade, ele culmina no processo de marginalização, ao promover a exclusão social.

[...] o cárcere reflete, sobretudo nas características negativas, a sociedade. As relações sociais e de poder da subcultura carcerária têm uma série de características que a distinguem da sociedade externa, e que dependem da particular função do universo carcerário, mas na sua estrutura mais elementar elas não são mais do que a ampliação, em forma menos mistificada e mais 'pura', das características típicas da sociedade capitalista: são relações sociais baseadas no egoísmo e na violência ilegal, no interior das quais os indivíduos socialmente mais débeis são constrangidos a papéis de submissão e de exploração. Antes de falar de educação e de reinserção é necessário, portanto, fazer um exame do sistema de valores e dos modelos de comportamento presentes na sociedade em que se quer reinserir o preso. Um tal exame não pode senão levar à conclusão, pensamos, de que a verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo condenado: antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão. De outro modo permanecerá, em quem queira julgar realisticamente, a suspeita de que a verdadeira função desta modificação dos excluídos seja a de aperfeiçoar e de tornar pacífica a exclusão, integrando, mais que os excluídos na sociedade, a própria relação de exclusão na ideologia legitimante do estado social.

O cárcere, na verdade, promove os processos de desculturação e o da aculturação ou prisionalização. A desculturação se caracteriza pela:

[...] desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade (diminuição da força de vontade, perda do senso de auto-responsabilidade do ponto de vista econômico e social), a redução do senso da realidade do mundo externo e a formação de uma imagem ilusória deste, o distanciamento progressivo dos valores e dos modelos de comportamento próprios da sociedade externa. (BARATTA, 2002, p. 184).

Já a aculturação ou prisionalização configura-se como a:

[...] assunção das atitudes, dos modelos de comportamento, dos valores característicos da subcultura carcerária. Estes aspectos da subcultura carcerária, cuja interiorização é inversamente proporcional às chances de reinserção na sociedade livre, têm sido examinados sob o aspecto das relações sociais e de poder, das normas, dos valores, das atitudes que presidem estas relações, como também sob o ponto de vista das relações entre os detidos e o staff da instituição penal. Sob esta dupla ordem de relações, o efeito negativo da 'prisionalização', em face de qualquer tipo de reinserção do condenado, tem sido reconduzido a dois processos característicos: a educação para ser criminoso (10) e a educação para ser bom preso. (11) (BARATTA, 2002, p. 185).

Mesmo ciente dessas questões, há momentos, situações e experiências que podem auxiliar no processo educativo, embora esse resultado esteja vinculado ao sujeito resiliente. Clemmer (2004), ao investigar a cultura carcerária, elenca alguns indicadores do grau de prisionalização dos condenados, ou seja, do grau de assimilação do modo de vida, dos costumes e da cultura carcerária. Dentre esses fatores, um dos que mais indicam o mais baixo grau de assimilação da cultura carcerária é a continuação das relações positivas com pessoas fora do cárcere. Como afirma o autor, a maior ou menor interação com a cultura carcerária não determina o baixo índice de criminalidade, mas a pesquisa realizada indica um forte tendência entre a menor interação e o baixo índice de criminalidade. Essa análise por exemplo evidencia que mesmo submetidos ao mesmo processo, há situações que singularizam a estada de cada pessoa no cárcere, minimizando ou agudizando o processo de prisionalização.

É certo que falar de educação é apontar para formação do sujeito, é pensar a economia e a cultura. Projetar um novo sujeito é construir uma nova economia, uma nova cultura. Essa ambição pode ser caracterizada como ingenuamente utópica ou como fruto de uma soberba intelectual, cujos fins poderiam até resultar num adestramento contemporâneo. Mas essa pretensão pode se caracterizar como uma utopia concreta, ou seja, uma utopia compartilhada por pessoas em diversos séculos e que hoje denominamos difusão da cultura da não-violência, lema central dos Direitos Humanos.

A utopia concreta não é uma noção atrelada ao desejo de uma sociedade melhor no futuro, futuro esse do qual o utópico não participa, senão deixando seus escritos manifestando seu desejo. A utopia concreta está vinculada ao sujeito atuante, ao sujeito consciente do seu tempo, ao sujeito capaz de perdoar o passado, para projetar o futuro e ciente de que perdoar o passado não é esquecê-lo, como afirma François Ost em "O tempo do Direito". A utopia concreta é praticada por diversas pessoas, profissionais e intelectuais que propõem práticas sem a pretensão de criar modelos universais para reduzir os danos de práticas antigas, com vistas à promoção da chegada de uma sociedade sem a marca de tanta violência.

Aderindo à essa compreensão, é que se passa à discussão desse aprendizado ético-afetivo em ambiente carcerário, capaz de promover encontros alegres, potencializadores e reduzindo as paixões tristes, pois, segundo Deleuze, as paixões tristes e dos que delas se servem só indicam o quão impotente se é.

Nenhuma divindade, ninguém mesmo, a não ser um invejoso, se compraz com a minha impotência e com o meu desgosto, e toma por virtude as lágrimas, os soluços, o temor e outras coisas do mesmo gênero que são o sinal de uma alma impotente: mas, pelo contrário, quanto maior é a alegria que nos afecta, maior é a perfeição a que passamos, isto é, tanto mais participamos, necessariamente, da natureza divina. Por conseguinte, usar as coisas e delas extrair o maior prazer possível (não, é claro, até à saciedade, pois isso já não daria prazer) -, eis o que é próprio do homem sábio... Os supersticiosos, que gostam mais de censurar os vícios do que ensinar as virtudes, e que não se aplicam a conduzir os homens pela Razão mas a contê-los pelo temor, de tal modo que evitem mais o mal do que amem as virtudes, não pretendem outra coisa senão tornar os outros tão infelizes como eles próprios são; deste modo, não é de admirar que eles sejam, o mais das vezes, insuportáveis e odiosos aos outros homens... (DELEUZE, p. 146-147).

O aprendizado ético-afetivo adquire-se nos momentos dos encontros que nos potencializam, assim como na descoberta da nossa potencialidade e da nossa finitude. Faz parte desse aprendizado o uso da razão afetiva, manifestada pelo conatus de cada indivíduo, que é a compreensão daquilo que nos é mais útil. Isso porque, segundo Merçon, nosso dever ético se configura como um desejo ativo do bem (leia-se: aquilo que nos é útil, potencializador) para si e para os outros.

Uma educação ético-afetiva é uma educação para o reconhecimento dessas potencialidades que, por meio do uso da razão afetiva permite ao homem o caminho do bem comum a ele e ao outro. Para tanto, segundo Merçon (2009, p. 79-80):

[...] um aprender que inspire a formação de noções comuns envolve, portanto, a experimentação de alegrias. A busca por composições marcadas, predominantemente, por paixões alegres, das quais resulta o aumento de nossa potência de agir, faz de nosso aprendizado afetivo uma verdadeira arte do encontro. Essa arte experimentalista, da qual os encontros são a inspiração, o material e o processo, tece-se entre a tensão de dois fios: é, ao mesmo tempo, o empenho do nosso pensar para vivenciar nossas potências por meio de alegrias, empenho ao qual Spinoza chama virtude, e uma espécie de abertura ativa às determinações da Natureza, expressa pela compreensão de que somos limitadas, sempre sujeitas a afetos que impõem-se como obstáculos aos nossos esforços. O aprendizado afetivo, quando pensado como uma arte do encontro, constitui-se, portanto, como um processo do qual participam o desejo de construir configurações potentes e, igualmente, o entendimento de que essas configurações não são resultados antecipáveis de nossos esforços, pois não seguem os comandos de uma suposta vontade soberana. Nosso pensar prepara-nos, assim, para o que pode vir a potencializá-lo, e essa preparação envolve a própria compreensão de nossa vulnerabilidade ou finitude modal: um pensar forte é aquele que entende o quanto está exposto a fraquezas - sabe que não somos, afinal, um império em um império.

A educação ético-afetiva é uma educação para a vida que pode ser pensada em ambientes formais de educação ou mesmo em espaços informais. No entanto, para o desenvolvimento dessa educação há uma série de empecilhos que se configuram como mitos.

Os três mitos são: mito da falta, mito do método e mito da finalidade. A falta significa ausência de conhecimento, uma lacuna; já o aprendizado ético-afetivo nada tem a ver com o preenchimento de uma lacuna, visto a concepção de plenitude, de seres não faltantes. (MERÇON, 2009).

O método de um aprendizado ético é distinto de uma educação moral. Como diz Merçon (2009), o devir ético de um ensinar se traduz como um cuidado atento para a ativação do pensamento dos sujeitos, inspirando-os à vivência das próprias potências. A finalidade de um devir ético é construída por nosso próprio desejar ativo, ou seja, aquilo que nos potencializa.

Portanto, tanto o método quanto a finalidade da educação ético-afetiva são singulares, visto que, os homens não são iguais, não têm as mesmas potências.

A natureza que define cada ser humano, isto é, sua essência ou potência, é sempre singular. Por conseguinte, um fim que venha a participar de um devir ético, incitando-nos a atualizar uma natureza mais potente ou perfeita, não é concebido com base em ideias universais ou poderes alheios, mas considera que a perfeição das coisas deve ser avaliada exclusivamente por sua própria natureza e potência. (MERÇON, 2009, p. 160).

Então, à luz do entendimento de Merçon (2009), o aprendizado ético-afetivo se dá por meio de afetos de alegrias nos encontros potencializadores, cuja finalidade está associada às expressões das potências mutáveis com o entendimento e com o desejo e não a um método estático. É importante perceber que, nesse contexto, tanto o método quanto o fim são sempre provisórios e singulares.

Dada a singularidade de nossas forças para afetar e ser afetadas, para compreender o arranjo afetivo único que nos determina, os fins provisórios os quais imaginamos e aos quais nos orientamos em um viver ético não são transferíveis, isto é, não atuam como um modelo para outras. Isso porque sua força reside, justamente, no fato de ser a expressão singular de nossas próprias potências de compreender como nos integramos à rede que nos determina e de pensar o que virá a contribuir para a expansão de nossas forças. A criação de um modelo ético ao qual aspiramos só pode ser, portanto, o resultado dos esforços de cada uma. Sua generalização e prescrição implicariam sua própria dissolução como fim ético e conversão em modelo moral." (MERÇON, 2009, p. 161-162).

Com base também nesse entendimento é que elaboramos a proposta de uma educação ético-afetiva no Bom Pastor. Tal educação pode ser desenvolvida por todos que trabalham na unidade prisional, desde o diretor, passando pelos agentes e alcançando os responsáveis pelas assistências jurídica, médica, educacional e psicossocial. Evidenciando estas duas últimas. Para isso, torna-se essencial uma formação, uma espécie de capacitação na indicação de pistas orientadoras desse processo. Como para esse processo é fundamental o fortalecimento ou restabelecimento de vínculos que promovam afetividade positiva, logo, potencializadora, a inserção dessas pessoas é essencial e, essa participação no processo implicaria certas alterações nos requisitos estipulados para visitação. É uma mudança de perspectiva e de práticas, sem tantas implicações financeiras.

Essa educação consiste na produção de encontros potencializadores e no estímulo à reflexão e à resiliência, logo, todos podem colaborar, em especial, os setores psicossocial e educacional.

Nesse sentido, é imprescindível uma proposta metodológica, nos cursos educacionais oferecidos no Bom Pastor, que atenda bem a esses elementos indicados nessa proposta. Essa metodologia deve levar em conta esses elementos, apreensíveis por meio de elementos simbólicos que circundam o dia-a-dia dessas mulheres, caso contrário, cairemos num modelo ideológico pouco plausível, irrealizável ou inefetivo.

Nesse sentido, expõe semelhante posicionamento, Ana Maria de Barros (2012), em sua pesquisa na Penitenciária Juiz Plácido de Souza em Caruaru, ao anunciar a necessidade, inspirada em Paulo Freire, de promover um educação na prisão, por meio das salas de aula, capaz de trabalhar os estereótipos pertencentes ao universo dos encarcerados. Reforça a autora a necessidade de uma educação penitenciária que trabalhe criticamente valores democráticos, princípios violados, resgate de autoestima e promova uma reflexão para a retomada de suas vidas após a saída do cárcere.

Ainda nessa esteira, João Constantino Gomes Ferreira Neto (2011), em sua pesquisa sobre a escolarização de menores privados de liberdade, no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Abreu e Lima, aponta para a necessidade de uma releitura da metodologia e dos conteúdos utilizados no processo educacional, com o intuito de estimular os menores à reflexão sobre suas vidas. Para isso alerta que:

[...] a análise dos dados aponta ser necessário que os conteúdos disciplinares sejam de interesse dos adolescentes e jovens internos, com ênfase no acolhimento e na proteção dos mesmos, para que superem as adversidades e reconquistem a sua inserção socioeconômica, a partir da criação de mecanismos de acompanhamento que possibilitem uma preparação mínima para sua futura inclusão social, através da escolarização.

Dos breves comentários a essas pesquisas, pode-se perceber a necessidade não só do desenvolvimento de uma metodologia própria para lecionar em ambientes de privação de liberdade, como de conteúdos que estimulem a reflexão e a resiliência, desenvolvidos a partir de temas vinculados ao universo dos alunos. Dessa forma, a sala de aula pode ser um grande esteio para o desenvolvimento da proposta aqui desenvolvida.

1.4 Resiliência: a arte da superação

Conforme já analisado, há no cárcere diversos encontros tristes redutores de potência, mas há também diversas pessoas que sofreram os reveses da vida e ressurgiram modificadas, potencializadas. Pessoas capazes de gentilezas como abrir um sorriso, dar um abraço, falar com doçura, pessoas resilientes aos efeitos do cárcere. Estas são capazes de atos solidários: dividir, espontaneamente, com quem não tem visita, o sabonete, o absorvente, uma comida especial, pagar um picolé, ou mesmo, vir visitar depois de solta a amiga que lá ficou, ajudar a "tirar a cadeia"; de respeitar e vivenciar a maternidade; de produzir o belo: bisquis, brinquedos de madeira, pintura em telas, artesanatos.

A indagação é: todos são resilientes? A resiliência é uma condição nata ou pode ser adquirida? O cárcere é capaz de punir e educar ao mesmo tempo? É possível produzir encontros tristes, reduzir potências e reinserir o sujeito ou essa redução de potência impulsiona o movimento de retorno ao cárcere?

A resiliência transformou-se em importante alvo de análise. Será que é possível testar o grau de resiliência dessas mulheres como se testa a capacidade de resiliência de pessoas submetidas a campos de concentração (os cárceres se assemelham aos campos de concentração para pobres, como diziam Berkeley e Paris, na nota aos leitores brasileiros do livro: "As prisões da miséria" de Loïc Wacquant)? Mas como fazê-lo? Somando-se, como isso poderia ser compreendido ou manipulado politicamente? Resilientes seriam as mulheres que, em razão dos sofrimentos do cárcere, passassem a viver fora da delinquência ou resilientes seriam as mulheres que, não obstante os sofrimentos do cárcere, retornariam à mesma vida delinquente ao invés de se adaptar à subjetividade de pobre trabalhador e não deliquente, como o esperado pela sociedade? Como dizer que ser resiliente é enquadrar-se na primeira hipótese e negar uma visão moralista e maniqueísta, quando, muitas dizem que furtaram porque precisaram e quando não há nenhuma reflexão de arrependimento pelo que se fez? Ao mesmo tempo, como dizer que ser resiliente é enquadrar-se na segunda hipótese sem deturpar as concepções teóricas de resiliência que trabalham com o estímulo à formação de um sujeito autônomo, responsável e ético? Além do mais, que autonomia tem essa pessoa resiliente que integra constantemente um circuito de repetições e retornos, ainda que singulares, a um sofrimento declarado?

A noção de resiliência passou a ser fundamental para o trabalho, para a construção da proposta da Reinserção Social Singular.

Resiliência é um termo que veio da Física e foi assimilado pela Psicologia e pelas Ciências Sociais. Para a Psicologia, a resiliência se apresenta como "um conjunto de qualidades que favorecem o processo de adaptação criativa e transformação a despeito dos riscos e adversidades" (POLETTI, DOBBS, 2007, p. 13).

Já para as Ciências Sociais, o termo resiliente é usado como: "a capacidade de vencer, viver, desenvolver-se positivamente de maneira socialmente aceitável, apesar do estresse ou de uma adversidade que normalmente comportam o grave risco de uma saída negativa". O conceito de resiliência, que não pode ser resumido simplesmente à capacidade de superar, tem duas dimensões: a "capacidade de proteger sua integridade sob fortes pressões" (resistência à destruição) e "capacidade de se construir, criar uma vida digna de ser vivida, a despeito das circunstâncias adversas". (VANISTENDAEL, 2000 apud POLETTI, DOBBS, 2007, p. 13).

Para Celso (2009, p. 13) resiliência diz respeito "[...] à capacidade de pessoas, grupos ou comunidades não só de resistir às adversidades, mas de utilizá-las em seus processos de desenvolvimento e crescimento social."

A resiliência pode se manifestar em momentos de grande acumulação de estresse e tensão. A resiliência é uma capacidade que pode ser adquirida. Segundo Poletti e Dobbs (2007, p. 16-18):

Os resilientes são feridos, mas possuem as competências necessárias para curar a ferida e cicatrizá-la. No entanto, ao longo de suas vidas, essa cicatriz será testemunha de sua luta e vitória. Os resilientes poderão usar a experiência adquirida para compreender melhor outras pessoas feridas na vida e ter compaixão delas.

A resiliência, para Celso (2009), determina o grau e as formas de defesa que serão desenvolvidos, além de fortalecer os sistemas de resistência e construir barreiras à vulnerabilidade às pressões.

1.4.1 Como se tornar resiliente?

Como dizem Poletti e Dobbs (2007, p. 36), "[...] a resiliência se cria em função do temperamento da pessoa, da significação cultural da ferida e do tipo de apoio social de que ela dispõe." É importante ressaltar, ainda, que o fenômeno da resiliência não é absoluto nem estável. Por isso, afirmam as referidas autoras que a resiliência deve ser sempre encorajada. Há ainda pesquisadores que apontam como elementos fundamentais para a resiliência, segundo as referidas autoras:

  1. Redes de Ajuda Social;
  2. A capacidade de encontrar um sentido para a vida, aspecto ligado à vida espiritual e à religião;
  3. Aptidões e sentimento de controlar (pelo menos um pouco!) a sua vida;
  4. Amor-próprio;
  5. Senso de humor.

Segundo Steven e Sybil Wolin (apud POLETTI; DOBBS, 2007, p. 37-39), a resiliência apresenta sete aspectos fundamentais:

  1. A tomada de consciência, que é a capacidade de identificar os problemas e suas raízes para si mesmo e para os outros, permanecendo sensível aos sinais fornecidos pelas pessoas que se encontram ao redor.
  2. A independência, que é baseada na capacidade de estabelecer limites entre si mesmo e as pessoas próximas, distanciar-se daquelas que nos manipulam e romper as relações de má qualidade.
  3. O desenvolvimento de relações satisfatórias com os outros, a capacidade de escolher parceiros com boa saúde mental.
  4. A iniciativa, que permite se controlar e controlar seu ambiente tendo prazer ao realizar atividades construtivas.
  5. A criatividade, que permite pensar de forma diferente dos outros, e encontrar refúgio num mundo imaginário, que possibilita também esquecer o sofrimento interior e exprimir positivamente suas emoções.
  6. O humor, cujo objetivo é diminuir a tensão interior e desvendar o lado cômico da tragédia.
  7. A ética, guia da ação, pois sabemos o que é bom e o que é mau e aceitamos correr o risco de viver com base nesses valores. A ética permite também desenvolver a ajuda mútua e a compaixão.

As pessoas resilientes sentem a necessidade de organizar suas próprias vidas, de assumir a responsabilidade de sua vida. Elas reconhecem seus erros e os consertam se possível. Elas têm compaixão e respeito pelo outro.

Muitas pessoas sobrevivem às dificuldades, crises, mas o fazem de uma maneira negativa, entrando na delinqüência, comportando-se como feras contra os outros humanos. Esses indivíduos não podem ser qualificados como resilientes, pois sobreviveram, mas não manifestam as características fundamentais da resiliência, que incluem o respeito por si mesmo e pelos outros, bem como a compaixão. (POLETTI; DOBBS, 2007, p. 72-73).

Logo, todo sujeito pode tornar-se resiliente, pois "ninguém é tão machucado pela vida a ponto de ser definitivamente esmagado". Essa condição não pode ser imposta ou ensinada, mas pode ser estimulada.

Como uma planta vivaz, a resiliência pode se desenvolver. Ela depende de vários fatores que estão freqüentemente reunidos numa conjunção de acontecimentos e encontros, que parecem depender daquilo que chamamos de acaso. Em função desses encontros, de uma disposição interna e de acontecimentos particulares, a trajetória de vida de um ser humano pode ser profundamente modificada. [...] Nas trajetórias de resiliência, há freqüentemente uma oportunidade fugidia e imprevisível, uma chance que pode ser aproveitada, mas não provocada, e que a capacidade de ter esperança de querer seguir em frente permite perceber em meio às provações da vida. (POLETTI; DOBBS, 2007, p. 97-98).

Segundo Celso (2009, p. 17-18):

O grau de resiliência pode ser alterado pela educação e é assim possível injetar confiabilidade, segurança e esquemas de organização mesmo em pessoas ou comunidades aparentemente apáticas. A pessoa ou organização resiliente necessita ser ágil, apresentar facilidade em acolher a diversidade, contextualizar o conhecimento e sua cíclica transformação, revelar poder sistêmico e criar solidariedade, sabendo dar a volta por cima, reajustar-se rapidamente após perturbações, choques ou frustrações e, sobretudo, achar saídas. Saber explicar-se, possuir autoconfiança, sentido da efemeridade e da importância da biodiversidade, e construindo-se permanentemente realizam julgamentos éticos. O grau de resiliência de uma pessoa pode até ilustrar seu potencial de inteligência, considerando que a inteligência é a capacidade de resolver problemas e criar produtos de valor social.

2. A mediação como caminho e o caminho da mediação

Parafraseando Aberto Almeida em: "O perdão como caminho... e o caminho do perdão", estrutura-se a proposta de levar a experiência da Mediação Humanista ao Bom Pastor, destacando a mediação como um caminho e o caminho da mediação.

2.1 A Mediação Humanista: entre o sofrimento e a catarse

Para falar sobre a Mediação Humanista, é imprescindível falar sobre Jacqueline Morineau. Arqueóloga de profissão, Jacqueline tornou-se pesquisadora em numismática grega no British Museum. Sua atividade profissional começou a se modificar quando ela passou a dedicar parte de seu tempo a um centro de acolhimento de jovens que acabaram de sair da prisão em Brixton. Graças a essa experiência, Jacqueline, após seu retorno à França, foi indicada para participar de um pequeno grupo de reflexão, no Ministério da Justiça da França, sobre a criação de uma estrutura alternativa nos tribunais, que pudesse melhor atender às demandas da população. Assim, no final de 1983, nascia a proposta de criação da primeira estrutura de "Ajuda às vítmas e Mediação", tendo sido Jacqueline encarregada de criar o primeiro órgão de ajuda às vítimas e de mediação penal, em colaboração com a Procuradoria da República em Paris.

Jacqueline começou a formar mediadores quando não havia qualquer pessoa na França com experiência na formação à mediação. Da prática adquirida com a experiência de Brixton de dar espaço ao grito, ao sofrimento, eis que nasce a "Mediação Humanista", cujo coração é "o encontro com o sofrimento para que este seja transformado, para que se possa sair do caos e reencontrar a harmonia, a humanidade de cada um." (MORINEAU, 2008, p. 77, tradução nossa).

Ao tentar estruturar o material para a formação de mediadores, Jacqueline refeltiu acerca dos filósofos gregos, de suas pesquisas nos temas da Justiça, da bondade, da sabedoria, enfim, no que seria viver, voltando-se, portanto, às questões fundamentais dos homens. Foi então que ela percebeu que não havia nada a ser ensinado tecnicamente, mas um caminho de vida a ser compartilhado, uma experiência a ser vivida conjuntamente. Como diz Jacqueline (2008, p. 78, tradução nossa): "A mediação é o cenário onde se apresenta 'A Comédia Humana' com toda a sua riqueza composta de desespero e esperança."

A formação na Mediação Humanista nasce, então, como diz Jacqueline, de duas experiências: os 20 anos de prática na mediação, ou seja, 20 anos de experiência com os conflitos, sofrimentos e emoções das partes e sua experiência pessoal ligada ao sofrimento pela morte de familiares próximos, em especial, mãe, pai e filho, num curto período de tempo. Dessas experiências associadas à crença de Jacqueline na capacidade de renascimento de cada pessoas depois de vivenciar situações difíceis, surge o método de formação na Mediação Humanista, que, na verdade, não se trata propriamente de um método, mas de um processo, pois o método está em constante transformação.

Em 1993, ou seja, após 10 anos da prática da Mediação Humanista com o Ministério da República de Paris, a Lei 93-2 institucionalizou a mediação que pode ser desenvolvida em outras jurisdições da França. Hoje, cerca de 80% (12) dos casos encaminhados ao CMFM (Centre de Médiation et de Formation à la Médiation) pelo Parquet de Paris que passam pela experiência da Mediação Humanista resultam na retirada das queixas. É importante destacar, ainda, que embora a Mediação Humanista tenha nascido da experiência da mediação penal, hoje, ela se difunde para as mais diversas áreas: família, escola, comunidade, cárcere.

2.1.1 Em que consiste a Mediação Humanista?

Mediação, como diz Morineau (2005), é estar entre, estar no meio de, pois estar entre é fundamental para se atingir o coração do conflito. Para Jacqueline, um dos principais aspectos da Mediação fora já identificado por Platão, e constitui a capacidade de ver as coisas na sua unidade e na sua multiplicidade. É diante dessa realidade múltipla e única que se desenvolve o processo da Mediação Humanista, que embora possa ser oportunizado a todos, depende de cada um a aceitação do processo.

A Mediação Humanista não é uma técnica, mas uma prática de dar a palavra, de oferecer um espaço ao conflito e, por meio de um "jogo de espelhos", oportunizar uma outra perceção do conflito e, quem sabe, o desatrelamento da condição de sofrimento, alcançando a paz. Abre-se então um espaço para se exprimir a diferença e reconhecer a diferença alheia.

Este é o objetivo da mediação: acolher o sofrimento para que este transcenda e se abra a um novo equilíbrio, a uma harmonia vivenciada consigo mesmo e com os outros e, porque não, a uma nova forma de bem-estar. O desespero vem da incapacidade de sair de uma condição de sofrimento, contrariamente, a esperança nasce da descoberta de que é possível libertar-se, ou seja, salvar-se. (MORINEAU, 2008, p. 82, tradução nossa).

O "jogo de espellhos" entre as partes em conflito e os mediadores consiste nos sentimentos e emoções sentidas e refletidas pelos mediadores a partir da fala das partes. Os mediadores, utilizando as expressões: "eu sinto" ou "eu te sinto", vão oportunizando que as partes reconheçam ou não aqueles sentimentos e emoções e falem sobre eles.

Aqui torna-se importante, como diz Jacqueline (2005), a percepção do não-dito, do sentido oculto do que foi dito, daquilo que foi voluntariamente ocultado ou simplesmente ignorado, mas que pode vir à tona, graças ao jogo de espelhos. Assim, os mediadores podem se tornar uma espécie de catalisador entre o dito e o não dito, auxiliando as partes na expressão de suas dualidades. Esse processo é bastante importante, visto que geralmente o problema e a demanda enunciados pelos protagonistas não correspondem aos reais problemas e demanda das partes, afirma Jacqueline (2005), após uma experiência de quase dois mil casos de mediação.

Os mediadores falam pouco ou de forma sintética. Dessa forma, dando a palavra e possibilitando a escuta do sofrimento, pode-se passar da Crisis à Catharsis, fases do processo de Mediação, mais adiante tratadas.

A mediação opera com um jogo de espelhos bastante complexo. O mediador recebe a emoção da parte em mediação e devolve uma imagem, dando a palavra à parte para que ela possa se exprimir. Mas o sofrimento da parte pode também tornar-se o reflexo do sofrimento do mediador. A mediação se apresenta, portanto, um campo de aprendizagem não somente para as partes em mediação, mas também para os mediadores que muito aprenderão em relação a si mesmos. É surpreendente constatar como as emoções são universais, mesmo sendo todas diferentes. Imaginamo-nos numa atitude de auxílio aos outros, mas, de fato, procuramos ajudar a nós mesmos. (MORINEAU, 2008, p. 94, tradução nossa).

No que tange à universalidade das emoções, Isabelle Filliozat (1997), psicoterapêuta especializada em Análises Clínicas Transacional e mestre em Programação Neurolinguística, com experiência de mais de 20 anos no trabalho com as emoções, afirma que as emoções são nossa linguagem comum. Isabelle trabalha com a aprendizagem de uma gramática emocional e nominar as emoções faz parte do primeiro passo desse aprendizado. Para ela, a emoção, assim como toda linguagem tem uma gramática, por meio da qual pode-se aprender como cultivar e exprimir nossas emoções autênticas, como escutar os outros, como erradicar sentimentos que ferem, aprisionam e destroem e como compartilhar as alegrias.

Para ela, compreender melhor os outros e reagir com empatia às necessidades e sentimentos alheios nos permite ter menos medo dos outros e de nos sentir mais próximos, mais solidários, reforçando, portanto, a cooperação e a solução dos conflitos de maneira não-violenta. A alfabetização emocional por meio da escuta do nosso coração com os outros é a sua proposta.

Para aprofundar alguns elementos vinculados ao tema da Mediação Humanista, cabe inicialmente um questionamento: o que é emoção?

Etmologicamente, "moção" evoca movimento e o prefixo "e" indica a direção para o exterior. Emoção é um movimento para fora [...] uma sensação que nos diz quem somos e nos coloca em relação com o mundo. [...] Elas [as emoções] nos individualizam e nos conferem a consciência de nossa própria pessoa. (FILLIOZAT, 1997, p. 31, tradução nossa).

Segundo Filliozat (1997, p. 31, tradução nossa), a vida emocional está estreitamente ligada à vida relacional e o compartilhamento das emoções nos permite sentir próximos uns dos outros.

Os parâmetros fisiológicos da emoção são universais. [...] Todos os homens [...] vivem as mesmas contrações estomacais, aumento do ritmo cardíaco e o ressecamento da boca nas mesmas circunstâncias. Se as manifestações exteriores de nossas emoções e as palavras para as nomear são definidas culturalmente, nós sentimos os mesmos movimentos internos. Nossos sentimentos, fatores de discórdia quando eles não podem ser ouvidos e falados conjuntamente, nos religam para além das culturas.

Nessa perspectiva, é possível quantificar as emoções? Segundo Filliozat (1997), há, pelo menos, cinco emoções de base em todas as culturas. São elas: raiva, medo, tristeza, alegria e repugnância. O medo ou a surpresa, a raiva e a alegria são expressas pelas mesmas contrações musculares. Embora emoções e sentimentos estejam estreitamente vinculados, enquanto as emoções são biológicas, instintivas, os sentimentos são frutos de elaborações secundárias.

Essa constatação nos remete mais uma vez ao ponto fundamental da Mediação: a unidade e a pluralidade, pois embora tenhamos emoções comuns, portanto, mais fáceis de reconhecer, os sentimentos advém de nossa elaboração, guardando, portanto, singularidades. Durante o processo de Mediação, o jogo de espelhos é capaz de promover o reflexo não somente de emoções, mas também de sentimentos, logo, ele lida tanto com a unicidade como com a singularidade. Para o desenvolvimento aprimorado e autêntico desse processo é imprescindível o estabelecimento da empatia e a boa utilização do silêncio.

O silêncio é realmente fundamental na Mediação, pois é ele que "situa o nível de troca do diálogo. Não são as palavras que permitem a resolução da situação, ou seja, um raciocínio de ordem lógica, mas sim o espaço criado pelo silêncio." (MORINEAU, 2008, p. 181, tradução nossa). Ainda segundo Jacqueline, o silêncio proporciona um diálogo de cada parte consigo mesma, visto que graças ao "jogo de espelhos", as partes são reenviadas para si mesmas, por meio das imagens refletidas.

Na mediação, este efeito [do jogo de espelhos] é duplo, pois ele permite às partes em conflito a compreensão de que o outro, o adversário, não é o único responsável, pois o 'outro' se refere também a si mesmo. Portanto, a confrontação se dá não mais com o adversário, o outro, mas com o adversário que está em si. O cenário muda completamente. Ninguém é mais encarregado de estabelecer "a verdade", somente eu sou responsável. Todas as mentiras, todas as ilusões das quais eu me nutria assim como suas consequências vêm à tona diante da clara e crua realidade. (MORINEAU, 2008, p. 181-182).

Através dessa prática do diálogo, constata Jacqueline (2008), a mediação se aproxima dos ensinamentos da filosofia socrática e do Evangelho cristão, proporcionando ao indivíduo o reencontro de seu eixo vertical terra-céu assim como de seu eixo horizontal homem-homem.

Como diz Morelba Pacheco, mediadora do CMFM, no material do curso de formação na Mediação, a "Mediação é o espaço-tempo durante o qual o sofrimento pode se exprimir, pode ser acolhido e, em seguida, pode-se transformar em fonte de renovação no futuro." (tradução nossa). Na Mediação há as partes que trazem o conflito e os mediadores, cuja função é acolher o conflito ali exposto, dando a palavra, para que cada parte possa expor fatos e emoções.

O papel dos mediadores é o de ser "um terceiro entre", um estranho ao conflito que facilitará o diálogo, as trocas, que ouvirá cada parte sem julgar o que está sendo dito. Por isso, acolhe o conflito com benevolência e empatia e possibilta que as partes se escutem, que sintam as diferenças entre elas, no entanto, descubram também valores comuns, o que pode possibillitar a abertura para uma nova visão sobre o conflito. Os mediadores dão às partes sua presença, uma qualidade de presença. Por isso, diz-se que a Mediação é um estado de espírito que permite aos mediadores estarem presentes a eles mesmos e aos outros. O mediador não irá procurar compreender o porquê e o como dos fatos, como diz Jacqueline (2008), mas simplesmente perceber-se diante de uma realidade de sofrimento.

A benevolência, tão essencial na prática da Mediação, se configura como um benefício tanto para quem a doa, quanto para quem a recebe, como diz Rosenberg (2003). Para ele, há uma linguagem e interações que reforçam essa atitude da benevolência, intituladas pelo autor de Comunicação Não-Violenta, cujos principais aspectos é não confundir observação e valoração, é saber expor os fatos com objetividade, abstendo-nos de julgar os atos dos outros e formular nossas demandas numa linguagem clara, exprimindo mais o que queremos do que aquilo que não queremos.

O aprendizado do não-julgamento é um elemento essencial na Mediação. O julgamento sobre o que se é dito é bastante comum na nossa sociedade, no entanto, essa prática é responsável por vários conflitos nas relações, como diz Jacqueline. Geralmente os conflitos são de responsabilidade de ambas as partes, mas é bastante difícil esse reconhecimento.

A força do nosso amor próprio nos impede de aceitar qualquer responsabilidade na situação e, sobretudo, de reconhecer que nós podemos errar. Temos muito medo de perder ou arranhar nossa imagem cuidadosamente construída. Na Comissão de Reparação-Reconciliação, criada na África do Sul em 1996 para evitar um banho de sangue ao final do Apartheid, o mais difícil, no encontro entre vítima e agressor, foi chegar ao pedido de perdão. Nós encontramos a mesma situação na mediação, pois esquecemos o quanto o perdão dado ou recebido, que implica ultrapassar o julgamento do outro, pode ser libertador e purificador. (MORINEAU, 2008, p. 177-178, tradução nossa).

Como diz Filliozat (2001), uma vez que as emoções são ouvidas, as feridas reconhecidas e a reparação efetuada, a compaixão e o perdão ganham lugar. Para ela, o perdão é impossível se o sofrimento não vem escutado e se a justiça e a verdade não vêm restabelecidas. Para isso, é imprescindível reconhecer a realidade de sua história, esclarecer o caos emocional (identificar cada emoção e suas causas), sentir as emoções e ultrapassá-las em busca da cura interior.

As fases da Mediação, de certa forma, se aproximam do que Filliozat (1997, p. 203, tradução nossa) chama de etapas do perdão. São elas:

1. Expresse seus sentimentos. Diga ao seu agressor o quanto ele lhe fez sofrer com aquele comportamento. Compartilhe eventualmente "seus fantasmas paranóicos", ou seja, as razões que você imagina (por exemplo: "Eu pensei que tu fizeste isso porque não me amas mais"). 2. Dê a palavra ao outro, verifique suas intuições, suas conclusões. O comportamento dele foi dirigido contra você? 3. Procure que o outro reconheça seu sentimento. Para que você possa perdoar, isso é importante, ou melhor necessário, que o outro reconheça a realidade de sua dor. 4. Peça reparação.

A escolha pelo perdão, com ou sem a participação do outro implica a libertação do rancor e/ou remorso, como diz Alberto Almeida (2012). Para desenvolver o perdão é fundamental colocar-se no lugar do outro, agir com empatia. Para Almeida (2012, p. 81-82), empatia é:

[...] um exercício de amorosidade, de vez que o egoísmo nos fixa numa posição de personalismo, sem abrir espaços para outros olhares, mormente pela janela do nosso ofensor. Esta forma de se colocar diante do outro resulta num estreitamento da nossa visão acerca do outro e do seu comportamento, gerando aumento da dificuldade de compreendê-lo e, por conseguinte, perdoá-lo.

O perdão é um excelente elemento para compor nosso estudo, visto ser muito comum a convivência com remorsos ("culpa tóxica" (13)) e mágoas ou rancores. O remorso pode-se caracterizar como uma agressão dirigida para si, enquanto o rancor se configura como uma agressão dirigida para o outro, como diz Almeida (2012). O perdão, como caminho de dispersão dessa agressão é, segundo Alberto Almeida (2012, p. 12), "antes uma viagem, do que um porto de chegada. É também um ato, mas é, sobretudo, um hábito de caminhar."

Os efeitos do não perdão, como diz Almeida (2012), podem ter consequências psicosocioemocionais, psicoespirituais e biológicas. Quanto às consequências psicosocioemocionais, segundo o autor, elas tanto podem se restringir às emoções, manifestando-se por meio de dificuldades nas relações interpessoais, visto o "lixo emotivo" que carrega para as relações, como podem avançar, promovendo a desorganização da estrutura psíquica, afetando o pensamento, a memória, a concentração, a afetividade, a inteligência ou mesmo, de maneira mais intensa e complexa, desenvolvendo patologias variadas, como transtornos da personalidade e da conduta, da ansiedade e do humor, esquizofrenia, autismo, etc. Como diz Almeida (2012, p. 39-40):

Assim, surgem silêncios ruidosos, agressividade excessiva, complexo de superioridade, tristeza imotivada, medo exagerado, perfeccionismo, autocomiseração, complexo de inferioridade, mesquinhez, falas contundentes, distanciamentos nocivos, aproximações invasivas, etc., tudo revelando conteúdos não devidamente elaborados, porque foram colocados 'embaixo do tapete' e, como tal, transparecem no dia a dia, ou, então, irrompem abruptamente fazendo um estrago.

Além dessas consequências, vale a pena citar também, como diz Alberto, as "distonias energéticas", que resvalam para o corpo, desarmonizando-o e favorecendo o desenvolvimento de doenças.

Já os efeitos do perdão constituem um nova ética comportamental, caracterizada pelas significativas transformações promovidas pelo perdão como caminho, referenciadas por Almeida (2012, p. 71): "vicissitudes em aprendizado, erro em experiência, negatividade em lição, dor em dom, sombra em luz". Esse caminho transformador passa por reconhecer do próprio erro (arrependimento), responsabilizar-se, corrigir o erro (reparar) e celebrar o perdão. Para o remorso o autoperdão e para o rancor o heteroperdão.

2.1.2 A empatia: presença, silêncio, energia e não-julgamento

Na Mediação Humanista, a empatia é um elemento fundamental e, por isso, merece uma análise mais detida. Na Mediação, os mediadores se apresentam numa equipe de dois ou três, para facilitar a identificação de cada parte com cada um deles. Eles agem para facilitar o diálogo, para facilitar a tomada de consciência do outro e para uma nova qualidade na relação, sem exercer o papel de árbitro, juiz, conselheiro ou mesmo conciliador. A postura deles é neutra, imparcial. Eles agem com empatia.

Empatia, segundo Faure e Girardet (2012, p. 43), é uma "qualidade de atenção multisensorial", sem palavras. A empatia se torna, portanto, uma história de silêncio, que se estabelece a partir da energia lançada, da necessidade formulada, da conexão entre as partes. Este silêncio ajuda a parte no encontro do seu silêncio interior. A partir daí, as trocas entre as partes e os mediadores se dão em todas as dimensões sensoriais: palavras, gestos, atitudes, olhares, tom da voz, posições corporais, tensão e distensão físicas, sincronia das atitudes, ritmo respiratório, etc. Resumindo os pontos principais que caracterizam a empatia tem-se: acolhimento do outro e doação de tempo, atenção e energia.

É importante diferenciar simpatia e antipatia de empatia. Como dizem Faure e Girardet (2012): simpatia e antipatia indicam que se foi afetado emocionalmente pelo que o outro viveu - movimento para dentro; já empatia indica um desatrelamento da questão trazida pelo outro - movimento para fora.

O processo da Mediação se desenvolve melhor com o real estabelecimento da empatia e o afastamento da simpatia ou antipatia. De fato, não é um aprendizado fácil, visto que o mais comum é o estabelecimento da simpatia ou antipatia, muitas vezes estabelecidas pelo julgamento e valoração daquilo que está sendo dito. Ouvir, doar atenção, acolher sem julgar não é uma técnica, mas uma experiência, um aprendizado contínuo.

O processo de recepção do sentimento do outro, como diz Filliozat (1997), se dá através de uma escuta das necessidades sem uma interferência na tentativa de acalmar. O simples fato da pessoa se sentir acolhida na sua emoção já a acalmará. Após a aceitação da emoção, é importante manifestar a percepção sobre o que foi sentido.

A empatia, segundo Filliozat (1997 e 2001), é essa capacidade de perceber o que o outro sente, é essa "troca autêntica entre dois humanos". Para ela, a empatia é uma importante dimensão da inteligência emocional, pois ela exige a saída do egocentrismo para se centrar no outro. Exige um sentir sem julgar, um acolhimento da expressão do afeto do outro.

Por isso é tão importante essa qualidade de presença do mediador, caracterizada por uma escuta atenta e um olhar presente, ou seja, um acolhimento com empatia. Como ressalta a autora, empatia não significa leitura do pensamento, ou mesmo instrumento de manipulação sobre o outro, empatia é o respeito pela individualidade alheia.

A linguagem da empatia se dá através de uma "escuta ativa", como diz Thomas Gordon (discípulo do pai da empatia - Carl Rogers), pois esta se trata de uma linguagem eficaz, atenta à finalidade da comunicação, que dá mais importância aos sentimentos que aos fatos, para ele, uma comunicação sem respeito configura-se como ineficaz.

Gordon (apud Filliozat, 1997, p. 290, tradução nossa) especificou 12 importantes barreiras à comunicação:

1. Ordenar, comandar, exigir; 2. Ameaçar, amedrontar; 3. Fazer um discurso moralizador, fazer um sermão; 4. Aconselhar, propor soluções; 5. Dar uma lição, fornecer fatos; 6. Julgar, criticar, desaprovar; 7. Parabenizar, passar a pomada; 8. Ridicularizar, apelidar; 9. Interpretar, analisar; 10. Tranquilizar, simpatizar; 11. Investigar questionar; 12. Iludir, tratar com diversão, dar pouca importância.

Essas atitudes, em geral, dificultam o diálogo, a troca e, como se pode perceber, algumas evidentemente agressivas e outras, muitas vezes simpáticas ou gentis, mas que, na verdade, interrompem ou frustram o processo cartático que pode acontecer ao final do processo de troca, de diálogo. Essas barreiras são completamente evitadas no processo de Mediação, que autenticamente só abre espaço para a verdadeira empatia. É interessante perceber os efeitos produzidos pelo estabelecimento da empatia.

Carl Rogers (apud ROSENBERG, 2003, p. 73), por exemplo, discorre acerca dos efeitos da empatia sobre o outro. Segundo ele, quando uma pessoa se sente realmente ouvida, sem julgamentos ou enquadramentos, ela é capaz de redescobrir seu próprio universo e continuar seu caminho. Mas, para que isso aconteça, é fundamental a presença que se contenta só em estar lá, sem necessidade de agir, como diz Rosenberg ao citar Buda. A empatia exige, portanto, uma atenção ao outro, à sua mensagem, àquilo que ele precisa expressar e se sentir compreendido.

Obter essa postura é bem difícil, como diz Rosenberg (2003), pois é natural que se assuma a postura de aconselhar, consolar, dar o próprio exemplo, levantar questões moralizantes ou mesmo interrogar o outro. No entanto, é imprescindível concentrar nossa atenção no que se passa com o outro e nas suas demandas.

Como diz Claude Steiner (apud Faure e Girardet, 2012, p. 85, tradução nossa): "Estabelecer a empatia não é nem deduzir, nem pensar, nem ver, nem ouvir as emoções dos outros... a empatia é, de fato, um sexto sentido com o qual percebemos a energia das emoções, da mesma forma que nossos olhos percebem a luz."

A pessoa que escuta com empatia age como um espelho que recebe e reflete o que foi passado, sem modificar a informação, como dizem Faure e Girardet (2012). Aqui percebe-se que a empatia, elemento fundamental na Mediação Humanista, também é um elemento fundamental na Comunicação Não-Violenta. Há grandes semelhanças entre esses dois movimentos de pacificação social, que utilizam além da empatia e da paráfrase (que consiste em fazer uma espécie de resumo do que foi dito, lançando ao outro sua interpretação sobre o que foi dito e oportunizando ao outro corrigir aquilo que ficou mal interpretado), o acompanhamento do outro, ajudando-o no seu religamento às suas necessidades.

A prática da Mediação Humanista se baseia na interação de todos esses elementos, que juntos caracterizam o processo de acolhimento do sofrimento, por meio da importância da palavra, da autenticidade da expressão do sofrimento e da energia da benevolência capaz de propiciar aos "médiants" (as pessoas que apresentam o conflito) uma nova percepção sobre o conflito. Essa prática contribui, portanto, para a promoção da cultura da paz.

A mediação foi elaborada para atender as pessoas em crise, num 'estado de grito', quando aquilo que está insuportável passa a criar conflitos com aqueles que estão ao seu derredor. Mas os outros também têm suas histórias, também guardam no coração um grito sufocado, reprimido. Do encontro desses dois gritos surge a crise, expressão do sofrimento e da confusão vividos por cada um. (MORINEAU, 2008, p. 87, tradução nossa).

Segundo Morineau (2005), uma situação dolorosa ou injusta constitui um obstáculo que para ser superado é imprescindível ser confrontado e a Mediação oferece esse espaço-tempo para essa liberação, iniciada pela esperança de reparação.

Marshall Rosenberg (apud Faure e Girardet, 2012, p. 97) diz uma coisa que reflete bastante minha experiência no curso de formação na Mediação Humanista em Paris: "Não é preciso conhecer o contexto para se conectar de coração com alguém." Durante os estágios de formação pude sentir assim como fiz sentir às pessoas que comigo estavam em formação essa realidade. Meus estudos na língua francesa não me propiciavam, sobretudo nos primeiros estágios, uma compreensão plena do contexto apresentado pelas pessoas em conflito. No entanto, essa dificuldade linguística não dificultou, acredito até que auxiliou, minha compreensão dos sentimentos e emoções que vinham à tona no processo de Mediação. Às vezes era curioso como as pessoas se reconheciam nos sentimentos e emoções por mim refletidos no jogo de espelhos, mas, em seguida, numa simples conversa, se davam conta de minha incipiente compreensão da língua francesa. Foi uma experiência muito importante, desafiadora e enriquecedora no processo de formação.

2.1.3 A Mediação Humanista como um processo

O "espírito da Mediação", como denomina Morineau (1998), aponta para uma nova concepção de Mediação que surge da ligação entre uma base filosófica enraizada na cultura clássica, em especial, nos filósofos gregos e a experiência de campo, com a prática da Mediação no CMFM. Esse espírito consiste na busca da harmonia, que, segundo Morineau, não pode nascer senão das diferenças e contradições localizadas no coração da experiência humana. Por isso, "a mediação é a cena onde o drama do conflito se desenvolve".

A Mediação Humanista, como diz Jacqueline (2008), se desenvolve em três etapas: Theoria, Crisis e Catharsis, também identificadas no direito grego e na tragédia grega.

2.1.3.1 Theoria

A Theoria, fase incial, consiste em Accueil, Exposé des faits e Resumé. O Accueil consiste na recepção das pessoas em conflito com benevolência. Após essa recepção, o mediador encarregado dessa primeira fase expõe o quadro da Mediação, informando o discorrer do processo e ressaltando a confidencialidade. É um momento muito importante, porque é o primeiro contato das pessoas com os mediadores. As pessoas chegam e é fundamental esse momento de acolhimento para que elas se sintam à vontade, diante de uma situação de exposição, já que elas falarão de assuntos, às vezes, bastante íntimos para pessoas desconhecidas. Certamente o que contorna esse desconforto é a empatia estabelecida pelos mediadores e a sinceridade e respeito do decorrer do processo.

A Exposé des faits é o momento que sucede o Accueil. Nesse momento, o mediador que fez a recepção das partes em conflito passa a palavra a cada uma das partes, para que elas exponham sua percepção do conflito, uma após a outra, sem ser interrompida. Durante esse momento os mediadores só escutam, doando sua qualidade de presença.

Após a exposição dos fatos pelas partes, passamos ao momento do Resumé, quando um mediador resume aquilo que ele entendeu dos pontos de vista de cada uma das partes de maneira imparcial e objetiva, abrindo espaço para que algo seja acrescentado ou algum mal-entendido seja superado. A partir de então, há uma abertura ao diálogo, inclusive consigo mesmo. É comum que o mediador que fez o resumo dos fatos inicie o jogo de espelhos, dirigindo-se a uma das partes e refletindo o seu sentir.

Nesta fase, quando os mediadores entram em contato com o conflito das partes, ou seja, quando as partes expõem "fragmentos de suas vidas", os mediadores estão a contemplar "sentido etmológico de teoria, guardando uma justa distância para 'ver' e 'discernir' o sentido oculto das coisas" (MORINEAU, 2008, p. 127, tradução nossa).

Durante a Theoria, cada parte se exprime, fala de como viveu certa situação. É um momento de expressão e escuta recíproca entre as partes em conflito, como diz Morineau (2005).

2.1.3.2 Crisis

A Crisis se caracteriza, como diz Jacqueline (2008, p. 128, tradução nossa), pela "confrontação dos dois sofrimentos, cujas histórias narradas permitirão reconstruir o encadeamento das causas." Tudo o que foi narrado pelas partes, durante a Theoria, provoca reações dos protagonistas, como diz Jacqueline (2005), logo eles se percebem em oposição. É justamente essa confrontação entre as partes que se chama Crisis, logo, a Theoria é que provoca a Crisis.

'Crisis': a etimologia grega nos direciona à necessidade de escolher, de discernir para poder tomar uma decisão. Esta decisão pode tornar-se julgamento, condenação da justiça, resultado de um processo. Trata-se de um momento importante ligado a um acontecimento, a uma situação que separa, que cria disputa, que requer transformação. Podemos perceber que a palavra é pesada, plena de simbologia. Em primeiro lugar, ela exprime um estado de separação, resultante de uma situação do passado ou de um acontecimento recente, bastante forte, que promove uma reconsideração do presente e do futuro. (MORINEAU, 2008, p. 87-88, tradução nossa).

Nesta etapa, ocorre a troca que vai se dando a partir do reconhecimento das emoções, graças ao "jogo de espelhos", o reconhecimento das necessidades não satisfeitas que compõem a origem das emoções expressas e a tradução das necessidades em valores (os valores de cada um, a visão de mundo expressa através de valores).

Essas necessidades podem ser de várias ordens: fisiológica, de segurança, de pertencer, de estima, de conhecimento, de estética, metafísica. Rosenberg (2003, p. 48-50, tradução nossa) traz algumas necessidades, que ele chama de necessidades de base, comuns aos homens. São elas:

Autonomia

  • escolher seus sonhos, seus objetivos, seus valores,
  • escolher os meios de satisfazer seus sonhos/objetivos/valores.

Bem-estar físico

  • abrigo,
  • ar,
  • contato, toque,
  • água,
  • expressão sexual,
  • movimento/exercício,
  • alimentação,
  • proteção contra formas de vida que ameaçam a Vida (vírus, bactérias, insetos, predadores, em especial seres humanos),
  • repouso.

Comunhão espiritual

  • beleza,
  • harmonia,
  • inspiração,
  • ordem,
  • paz.

Desenvolvimento

  • autenticidade,
  • criatividade,
  • integridade,
  • senso.

Interdependência

  • aceitação,
  • amor,
  • avaliação,
  • calor,
  • confiança,
  • consideração,
  • empatia,
  • possibilidade de contribuir ao enriquecimento da vida,
  • proximidade,
  • conforto,
  • respeito,
  • sinceridade,
  • apoio.

Segundo Jacqueline (2005), essa dualidade entre as partes em conflito e os mediadores remete cada um dos protagonistas a sua própria dualidade, ao seu próprio combate íntimo. Essa fase vem precedida pela Catharsis, visto que, por meio do jogo de espelhos e dos seus reflexos, as partes vão pouco a pouco se distanciando de suas emoções e adquirindo um outro olhar sobre a situação vivenciada que pode propiciar uma mudança no comportamento de cada um. Nesse momento chegamos à Catharsis.

2.1.3.3 Catharsis

A Catharsis consiste na clarificação após a Crisis, na purificação, na transformação - reparação moral e material. Nessa fase há um reconhecimento recíproco das pessoas em conflito, um reencontro nos valores, um novo olhar sobre o outro e sobre a situação e, daí, a emergência de soluções escolhidas pelas próprias pessoas em conflito e não soluções impostas por quem quer que seja. Trata-se da retomada dos fatos em um outro nível.

Como diz Morineau (2008, p. 129, tradução nossa), o desenvolvimento de todo o processo só é possível quando o grito, que está por trás do sofrimento, é liberado. Só assim a transformação final - objetivo do processo de Mediação - se opera, e o sofrimento - "uma forma de morte" - se transmuta em vida. Assim, "há a transformação da pessoa, de sua atitude, uma ruptura com a mentira para o outro e para si, uma consciência do mundo de ilusões que foi criado e a visão de um novo porvir."

Segundo Le Roy (2011), a Theoria caracteriza o momento em que cada parte expõe suas razões, seus argumentos - os paradigmas da argumentação. Aqui vêm à tona as contradições, as oposições. A Crisis, por sua vez, é a confrontação entre as teses levantadas, para se alcançar a verdade, mais que a materialidade dos fatos. Essa é uma fase muito tensa, podendo derivar na revelação de coisas intencionalmente ocultadas. Por fim, a Catharsis, também chamada de purificação, significa o retorno à paz. Mas, se esta não é alcançada, ao menos pode auxiliar no esclarecimento dos fatos.

Traçando um paralelo entre a experiência da "Mediação Comunitária" africana e a "Mediação Humanista", pode-se dizer que as quatro funções da "Mediação Comunitária", na visão de Jean-Godefroy Bidima (apud LE ROY, 2012, p.51-52) também se aplicam à Mediação Humanista. As quatro funções são: domesticação da violência, visto que a Mediação institui um espaço comum; pedagogia social, pois o importante é salvar a relação e não saciar a vingança; promover a coexistência de consenso e pluralismo, aqui o dissenso se corporifica num espaço social pacífico; abertura a compromissos que atendam às especificidades e alteridades.

A Mediação é um processo de simbolização, capaz de dar sentido, pois, muitas vezes, as demandas das partes em conflito visam a algo mais que uma reparação material ou o reconhecimento dos fatos, como diz Morelba. Os objetivos da Mediação são, portanto, assegurar a reparação dos danos causados e, por fim, a desordem causada pela situação de conflito (pela mudança de ponto de vista das partes sobre o conflito) e o reconhecimento recíproco, pois, frequentemente, os erros são cometidos por ambas as partes. É como diz um provérbio africano, trazido por Mannozzi (2003, p. 8, tradução nossa): "Não existem pessoas que não se entendam, mas somente pessoas que ainda não tenham se falado."

A mediação é assim um processo educativo de se dar conta do outro e de acolher seu sofrimento.

Na mediação, abrir-se à dimensão do espírito, ensina-nos a ultrapassar a dimensão factual e emocional do conflito para dar voz à dimensão profunda do ser. Para conduzir as partes em conflito aos seus próprios caminhos, os mediadores precisam aprender a sair de si mesmos, a se esquecerem de si, para, então, tornarem-se transparentes, espelhos límpidos para a recepção da imagem do outro, do sofrimento alheio. [...] A mediação, através ou fora de qualquer religião, abre nosso coração e pode transformar o escândalo do sofrimento em caminho de realização, satisfação. [...] O mediador desenvolve também sua capacidade de encontrar as partes em conflito bem mais na esfera do sentimento que na esfera mental. A escuta do corpo se abre ao espírito. (MORINEAU, 2008, p. 148-149, tradução nossa).

A Mediação, desenvolvida nos últimos anos, diz Jacqueline (2008), a fez encontrar o que está no coração da experiência humana - o sofrimento e suas consequências para o indivíduo e para a sociedade. Por isso, ela descreve o objetivo da mediação como sendo elevar a pessoa, ajudando-a a se religar aos seus valores essenciais e, assim, passar a viver melhor com ela mesma e com os outros. Esse processo se caracteriza por uma passagem do sofrimento e da prisão à pacificação e esperança que se dá graças à aquisição de um nível de consciência mais elevado, no qual o homem pode encontrar sua dignidade.

Em sintonia com esse entendimento e enfatizando a vasta dimensão da mediação como um instrumento de solução não-violenta dos conflitos, Muller (2007, p. 154-155) afirma que:

[...] a mediação não deve se configurar como uma 'experiência social', deixada a cargo da iniciativa privada. Deve ser considerada como uma das primeiras modalidades de regulação dos conflitos sociais, como um dos elementos essenciais que participam na constituição do elo social. Nessa perspectiva, o mediador deve ser reconhecido como um dos principais atores sociais a contribuir para o estabelecimento da paz social. [...] A prática da mediação nos diversos setores da sociedade pode, assim, tornar-se um dos principais métodos de resolução não-violenta de conflitos, tanto entre indivíduos como entre grupos. Ao evitar recorrer aos métodos repressivos do Estado e permitir que os cidadãos participem diretamente na gestão dos conflitos entre cidadãos, a mediação favorece a auto-regulação da violência social.

2.2 A Mediação Humanista no Bom Pastor: o caminho da Reinserção Social Singular

Para pensar a implementação e a procedimentalização da Mediação Humanista no Bom Pastor, é imprescindível enumerar e esclarecer algumas preucauções.

A primeira precaução na construção dessa proposta: a Mediação Humanista é uma oferta, não uma imposição.

A consciência da oferta é fundamental para a estruturação de propostas concretas e não meramente abstratas, apresentando-se como solução para todos os problemas. Como se sabe e como se pode constatar ao pesquisar o Bom Pastor, vários são os fatores que levam ao crime, várias são as dificuldades do processo de reinserção social. Há um certo consenso entre os autores, sobretudo, de formação materialista, que não se pode pensar a inclusão social sem oportunizar trabalho. Parece ser um ponto pacífico. Mas o que dizer daqueles que rejeitam essa cultura do trabalho e foram socializados conforme padrões ditos pela sociedade delinquentes?

Até para esse aspecto fundamental do processo de inclusão social por meio do trabalho, há a consciência de que o trabalho é um meio eficaz sim, mas não para todos, pois há também rejeição à essa forma de inclusão, logo, a proposta de inclusão pelo trabalho também é uma oferta. Adentrando a realidade dos cárceres brasileiros, em especial de Recife, como oferecer um trabalho de um salário mínimo e um modelo de vida burguês: "o trabalho dignifica o homem", quando a sociedade humilha, menospreza e mata (moralmente e fisicamente, por exemplo em filas de hospitais) esse trabalhador? Ao difundirmos a cultura do: "você vale o que você tem", oferecer esse trabalho regular e essa vida exemplar só parece interessante para quem, mesmo vivendo do crime, não consegue o suficiente para se manter, ou mesmo, para quem cansou das repetidas idas ao cárcere, das humilhações sofridas, enfim, para os criminosos "maloqueiros", assim denominados na gíria da cadeia.

Além do mais, se pensarmos do ponto de vista da estrutura social, ou seja, das sociedades não includentes, não há qualquer interesse em incluir, por isso o processo de homicídio, por partes de várias instituições. Incluir somente alguns faz parte do próprio processo de exclusão da grande parte.

Então, da mesma forma que o trabalho é uma proposta, visto não atingir todos os presos, pois nem todos querem trabalhar, a mediação também é uma proposta, nem todos aceitarão, nem todos os problema de inclusão social perpassam pela ótica do sofrimento atrelado a um ciclo de retorno, ainda que singular.

A segunda precaução: a Mediação Humanista tem por objetivo o acolhimento e a libertação do sofrimento por meio da catarse. Essa é uma experiência consolidada e reconhecida, com funcionamento de mais de 30 anos. Pensar a inclusão social a partir da libertação do sofrimento, com a interrupção do retorno ao cárcere é uma perspectiva, visto não haver ainda experiência nesse sentido. O primeiro projeto de levar efetivamente a Mediação Humanista aos cárceres franceses está atualmente em tramitação no CMFM (Centre de Médiation et de Formation à la Médiation) em Paris.

Esse trabalho se reconhece, portanto, como um ensaio propositivo que lida com os possíveis reflexos do sofrimento e da libertação do sofrimento a partir da análise da realidade de algumas mulheres encarceradas no Bom Pastor e de suas percepções acerca do crime, do cárcere e do retorno.

A terceira precaução: levar a Mediação Humanista ao Bom Pastor, ou seja, a inserção de uma prática acolhedora de sofrimento para sua libertação em uma realidade de inúmeros sofrimentos, contribui para a formação de uma sociedade menos violenta, mais consciente, mais responsável e mais feliz.

Como diz Muller (2007, p. 117): "A história da repressão de crimes pelo Estado talvez seja muito mais terrível do que a história dos crimes. [...] Com o pretexto de odiar o crime, a sociedade odeia o criminoso, já esmagado pelo infortúnio." O cárcere é a representação da violência do sistema penal, que pune uma violência com outra violência e este trabalho vem propor uma ação resistente aos efeitos do cárcere, assim como a ação não-violenta resiste às injustiças e às violências.

Sendo assim, como levar a Mediação Humanista ao Bom Pastor? O que isso pode significar? A "Mediação Humanista" assim como a Justiça Restaurativa são movimentos de auxílio material (e não meramente formal, como infelizmente tem-se apresentado a nossa Justiça tradicional) às necessidades profundas do homem em sofrimento. A Justiça Restaurativa, por exemplo, segundo Howard (2002) - o seu fundador - está centralizada na reparação e fundamentada no respeito à vítima, ao infrator e à sociedade, por isso, esta forma de justiça implica essas partes na solução da problemática do crime, através de práticas de diálogos diretos ou indiretos entre essas partes. Pautada na responsabilização e reparação, a Justiça Restaurativa é uma forma de cuidar do homem em prol da construção de uma sociedade pacífica.

Por volta das décadas de 70 e 80, uma série de movimentos, estudos e práticas vem tentando difundir uma outra cultura - a cultura da não violência, ou cultura da paz. Movimentos de alternativas à Justiça ou mesmo de práticas inovadoras inseridas nos modelos de Justiça tradicionais, como Justiça Restaurativa, a exemplo da obra de Howard Zehr, diversas práticas de diálogo e mediação, a Mediação Humanista criada por Jacqueline Morineau e processos pedagógicos de educação à não violência, como a Comunicação Não-Violenta de Marshall Rosenberg, fazem parte desse contexto.

Como processo no desenvolvimento da cultura da paz, falar sobre a Mediação Humanista nos conduz ao seu contra-ponto - a cultura da violência. O desafio do nosso estudo é trazer um processo não-violento para dentro de uma estrutura onde impera a violência, estrutura que nasceu na Modernidade e é completamente fiel à máxima de que uma violência deve ser combatida com outra violência, se possível maior.

A Mediação Humanista se apresenta como uma prática consciente da realidade plural dos aspectos acima abordados e extremamente respeitosa ao sofrimento e à angustia pela busca do estar-bem.

O sofrimento, ponto central do nosso tema, dentre as várias razões que implicam o retorno ao cárcere é, nessa análise, uma importante e potente causa de retorno. Identificado esse elemento, a questão é saber como esse sofrimento pode ser trabalhado, que práticas poderiam auxiliar o acolhimento de liberação do sofrimento a fim de interromper o ciclo do retorno, ou ao menos contribuir para a extinção do ciclo.

O processo catártico pode sim contribuir para a libertação do sofrimento e para a aquisição de uma vida diferente e fora do ciclo de sofrimentos que faz parte da vida daquelas mulheres encarceradas. Isso certamente auxiliará o processo de redução de danos no encarceramento com vistas a uma reinserção social singular. A Mediação Humanista é apontada aqui como um fator, visto que o processo de reinserção é extremamente complexo e envolve vários fatores tão discutidos pela Sociologia e Psicologia.

É importante destacar o que foi identificado durante a pesquisa do Bom Pastor como possíveis explicações para as "quedas" e como fatores capazes de auxiliar na interrupção do ciclo de retorno. Como principais explicações para as "quedas" estavam: "má companhia", "para consumo de drogas", e "para sustento da família", constando na má companhia o companheiro. Um dado interessante é que geralmente o envolvimento com "más companhias" sucediam situações de sofrimento duradouro ou circunstancial.

Já no quesito o que poderia evitar nova "queda" estavam: a possibilidade de um emprego, o desejo de não mais decepcionar a família e o desejo de liberdade. Tudo isso mais indicava um cansaço da repetição de retorno ao cárcere do que uma nova forma de projeto de vida ou de perspectiva para a saída de lá. Para algumas a mediação como um caminho, para outras o caminho da mediação.

A mediação como caminho leva ao resgate, à catarse, à libertação do sofrimento, que de tanto machucar, tanto machucou. O caminho da mediação leva à resiliência, à capacidade de refazimento, de construção de novos modelos.

Este trabalho enfatiza o aspecto do acolhimento e liberação do sofrimento a partir da Mediação Humanista associada à difusão do aprendizado ético-afetivo, pois, como diz Isabelle Filliozat (1997) nós somos responsáveis tanto pelos nossos atos como pelos nossos sentimentos.

A Mediação como caminho reflete o próprio processo de libertação do sofrimento, evitando que este promova a repetição de retornos, ainda que singulares, ao cárcere; já o caminho da mediação é o percurso de preparação para a catarse e o acompanhamento do que a sucede.

Refletindo acerca do caminho da mediação, sob inspiração de Alberto Almeida em "O perdão como caminho... e o caminho do perdão", pode-se dizer que, da mesma forma que Alberto estabalece uma gradação no caminho do perdão para que esse seja atingido, há umas etapas que constituem o caminho da mediação. O perdão, como já referido, é uma forte estratégia combatente à culpa tóxica, ao rancor, que se constitui como caminho de percepção e reflexão acerca das condutas nas relações interpessoais. É um meio de esclarecimento e uma reação à cultura da expiação do sentimento de culpa por meio do holocausto do cárcere.

O caminho da mediação se identifica bastante com o caminho do perdão, tanto do autoperdão quanto do aloperdão. São caminhos de libertação do sofrimento que se afirmam contrários à cultura da violência e ao culto do sofrimento expiatório.

Segundo Alberto (2012), os degraus no caminho do perdão são: 1- desejar, contatar e descobrir; 2- conviver, conhecer e compreender; 3- conscientizar e aceitar; 4- transformar, amadurecer e felicitar. Movimento semelhante podemos perceber no caminho da mediação: 1- desejar revisitar os sofrimentos para contatá-los e contatá-los para os descobrir em toda sua extensão; 2- conviver com eles, conscientemente, para bem conhecê-los e os conhecer para compreendê-los; 3- conscientizar-se deles para aceitá-los; 4- buscar transformá-los para amadurecer e amadurecer para buscar felicidade e bem-estar.

Nesse caminho, é importante perceber que não basta se libertar do sofrimento, é fundamental construir uma mudança de padrão de funcionamento psicobiológico, sociocomportamental e moral-espiritual, como diz Aberto Almeida (2012, p. 152). Ainda, segundo ele, as ações positivas, além de uma reparação justa, "promovem uma imunização para que não se repitam os mesmos deslizes."

Falar sobre o perdão não é tarefa tão simples, sobretudo pela forte conotação religiosa que tem quando associado à noção de pecado. Como diz Muller (2007, p. 75), é necessário "repatriar" o perdão ao âmbito da filosofia, pois há uma "exigência ética do perdão" entre os homens, que precisa ser trabalhada e afirmada, caso contrário, abre-se espaço a vinganças e retaliações.

A vingança é estrita reciprocidade, pura imitação da violência do adversário. Em primeiro lugar, o perdão vem romper com a reciprocidade e a imitação. Enquanto o ressentimento, o rancor e o ódio aprisionam o indivíduo aos grilhões do passado, o perdão leva-o a se libertar deles, permitindo-lhe entrar no futuro. [...] A vingança prolonga no futuro as consequências destruidoras de um ato maléfico cometido em circunstâncias que não mais existem. A vingança é inoportuna, intempestiva, anacrônica e vem sempre fora de hora.

É importante ainda ressaltar que perdão nada tem a ver com esquecimento, como já dizia François Ost e nesse mesmo sentido afirma Muller (2007, p. 76-77):

O perdão não perde a memória do passado - o esquecimento não é uma virtude e sim uma distração -, mas orienta-se resolutamente para o futuro. Existe um 'dever de memória' do passado que é um dever de vigilância em relação ao futuro, mas é preciso, do mesmo modo, estar atento para que a memória do mal não seja um empecilho ao futuro. [...] O perdão não destrói a recordação mas é uma aposta no futuro. [...] Enquanto a vingança é uma forma de desespero, o perdão é inteiramente vitalizado pela esperança de recomeçar. Recusar a vingança e oferecer o perdão ao oponente não equivale a renunciar à justiça. Isso pressupõe que vingar-se não é fazer justiça, o que de fato teremos de admitir. Pelo contrário, perdoar é abrir o caminho da justiça. [...] Numa relação pessoal, trata-se de perdoar o próximo; já numa relação política, trata-se de perdoar quem está distante. Tanto num caso como no outro, o perdão torna possível, quando não a reconciliação, pelo menos a conciliação; em outras palavras, permite restabelecer ou estabelecer relações de justiça. Mas, para que estas se efetivem, é importante que a pessoa que causou o mal reconheça suas responsabilidades, insira-se na história do perdão e participe, ela própria, de sua dinâmica.

Nesse percurso de autoconhecimento e perdão, há alguns recursos que podem auxiliar no caminho da mediação, como por exemplo o diálogo. Segundo Alberto (2012):

O diálogo é o instrumento para reparar danos e refazer relações, desde o simples pedido de desculpas até o ato de recolocar a verdade pela conversa profunda e continuada. Ao empregá-lo, vamos restaurando os relacionamentos e reconquistando a paz interna perdida, por meio da reparação de dores perpretadas interna ou externamente.

Uma prática que pode auxiliar no desenvolvimento do diálogo e que se afina às perspectivas da Mediação Humanista e da educação ético-afetiva é a da Comunicação Não-violenta (CNV) de Marshall Rosenberg. O processo da CNV é composto por quatro elementos que se desenvolvem como fases: observação, sentimento, necessidades e pedido.

Essa proposta em fases não guarda qualquer rigidez na comunicação, inclusive é possível estabelecer a comunicação não-violenta sem que seja pronunciada qualquer palavra, como diz Rosenberg (2006). Essa proposta se apresenta como uma orientação a elementos fundamentais para o estabelecimento da CNV, como uma espécie de guia ou educação à percepção desses componentes.

A observação consiste no momento de atenção voltada "às ações concretas que [...] afetam o nosso bem-estar", àquilo que nos incomoda. Em seguida vem o momento de percepção do sentimento que nos acomete diante da observação que fazemos e, daí, vem a compreensão das necessidades que levam a esse sentimento. Por fim, "as ações concretas que pedimos para enriquecer nossa vida." (ROSENBERG, 2006, p. 26).

O uso da CNV consiste, portanto, em recomendações que permitem uma comunicação mais clara, menos confusa e não-violenta. Frequentemente mistura-se observação com avaliação (julgamento), assim como pedido com exigência. Essas confusões são muito relevantes durante a comunicação, podendo conduzir a um contato violento ou não violento.

Há, como diz Rosenberg (2006), uma forma de comunicação alienante da vida que se caracteriza por julgamentos moralizadores sobre a conduta alheia, a ponto de tratar como errados ou maus aqueles que agem em dissonância conosco, pelo estabelecimento de comparações e pela substituição do pedido pela exigência. Todas essas práticas bloqueiam a compaixão durante a comunicação.

Um dos principais elementos da CNV é a empatia, é o estar presente, é, como diz Rosenberg (2006) referenciando o filósofo chinês Chuang-Tzu, a escuta com todo o ser, que ultrapassa a escuta só do ouvido ou só do intelecto.

A CNV se desenvolve a partir do momento em que nos propomos a uma escuta com empatia das necessidades dos outros, muitas vezes embutidas numa fala violenta. É muito importante procurar desvendar a necessidade que se encontra por trás de uma comunicação violenta. A compreensão dessa necessidade, muitas vezes não evidente, pode-se dar pela prática de parafrasear o que está sendo dito. A paráfrase tem a função de demonstrar a empatia e de possibilitar o esclarecimento do que se quer. Durante a paráfrase, além da pessoa se sentir ouvida e compreendida, descortina-se a real necessidade e ela se torna clara inclusive para a pessoa que a sente. A partir desse momento, é possível para a pessoa que até então escutou com empatia expressar também suas necessidades e uma nova forma de comunicação pode se estabelecer.

Com a CNV, Rosenberg já mediou as mais variadas formas de conflito em várias partes do mundo. Sua vasta experiência possibilitou a difusão da CNV de forma didática que pode ser aprendida e aplicada. O interessante nesse processo é perceber como uma educação à escuta com empatia associada a uma clara manifestação de nossas necessidades pode contribuir para a dissolução de um conflito ou mesmo, de forma preventiva, pode evitar que o conflito se estabeleça.

Diante da análise de todos esses elementos, pode-se indagar: Por que implementar esse caminho no Bom Pastor? E mais: como fazê-lo?

Com a pretensão da possibilidade de uma redução de danos no encarceramento, propor a Mediação Humanista como um caminho é oportunizar uma imunidade aos efeitos destruidores do cárcere e, ao mesmo tempo, apresentar uma proposta de interrupção do ciclo de retorno pela libertação do sofrimento. Com o apoio do aprendizado ético-afetivo, do estímulo à resiliência e da Comunicação não-violenta, a promoção desse processo autoimune pode-se estabelecer, conforme as etapas acima descritas, que se coadunam respectivamente às fases de desejo, contato, descoberta, convivência, conhecimento, compreensão, conscientização e às fases da aceitação, transformação, amadurecimento e felicitação.

Assim, é possível estabelecer uma proposta de redução nos danos do encarceramento, possibilitando uma interrupção do ciclo de retorno ao cárcere, com a aquisição de uma postura resiliente aos nefastos efeitos do processo de encarceramento.

2.2.1 A singularidade da proposta: a singularidade dos casos

Questão importante a refletir é: essa proposta se aplica a todas as pessoas encarceradas? Nas motivações para as práticas delitivas, foram mencionadas, por exemplo, para uso de drogas, para sustentar a família, por aventura, por má companhia. Esses são alguns exemplos, não categorias limitadas. Só aqui, percebe-se imensa diferença nas causas. Através dos relatos, notam-se diferentes formas de lidar com a sua prática e no julgamento da prática alheia. Para algumas, o crime foi correto e significou a única forma de não morrer de fome, de trazer melhores condições para dentro de casa, de garantir a proteção de um familiar ao matar aquele que lhe ameaçou a vida, além de diferentes razões por estar ali, diferentes sentimentos sobre o delito.

Um só modelo é capaz de dar conta dessa realidade plural? Mas, todos acham que precisavam da pena ou de reinserção social ou mesmo querem se reinserir diferentemente no meio? Certamente esse projeto é para todos que ali estão, sobretudo, para os que dele quiserem participar ou puderem ser estimulados para essa necessidade pessoal. Trata-se de ofertar uma proposta e não de submeter pessoas a um modelo ainda que singular.

O cárcere é um locus de seletividade social e isso não é uma novidade. O grande público da "cadeia" é o lumpen, aquele com pouca instrução, sem atividade profissional formal, habitante de comunidade carente. É como diz Wacquant (2001), a miséria é criminalizada e o cárcere agudiza a marginalização. Quanto a isso Pavarini (1987, p. 1) faz uma interessante reflexão: a sociedade é claramente desigual, mas, diante de certos fenômenos, busca um tratamento igualitário, como diante do crime. "Todos diferentes, mas todos do mesmo lado no confronto daquele que foi condenado penalmente".

Nossa sociedade tem uma triste propensão a culpar as vítimas. Trata-se de uma estratégia utilizada para confortar-se. Se acreditarmos que há boas razões para que uma pessoa sofra, isso quer dizer que esse sofrimento é merecido. Então, se sou "bom", não terei que passar pela mesma experiência, uma vez que não a merecerei. Esse raciocínio existe sem que estejamos realmente conscientes dele, é uma forma de mecanismo de defesa. Rejeitando os indivíduos que estão atravessando as crises da vida ao culpá-los, pensamos inconscientemente que estamos nos protegendo da infelicidade que os tormenta. (POLETTI, ROSETTE, 2007, p. 65- 66).

É preciso pensar o problema do encarceramento sobre todos os aspectos, mas sobretudo, contextualizado.

A partir dos temas analisados com as narrativas das entrevistadas, nossas últimas considerações apontam para vários cárceres no Bom Pastor: um cárcere para quem trabalha, um cárcere para quem não trabalha, um cárcere para quem vive na "tranca", à base de droga lícita ou ilícita, para quem não tem visita, para quem não tem dinheiro, para quem é "caça rato".

Essa proposta de Reinserção Social Singular contempla, portanto, práticas redutoras de dano, como exemplo: o estímulo à resiliência, à reflexão sobre as próprias práticas e à reparação do dano causado, assim como, ao trabalho como um mecanismo necessário no processo de reinserção social.

A Reinserção Social Singular faz parte da construção de um projeto de inspiração pedagógica, pautado na resiliência, na não-violência, na interexistência, no aprendizado ético-afetivo e na Mediação Humanista. Esta, por sua vez, constituindo-se como um caminho, um processo que deriva na catarse, configura-se como um processo pedagógico e cultural.

O mediador pratica, de certo modo, a arte da maiêutica (do grego maieutiké, que significa a arte de realizar um parto), ou seja, ajuda seus interlocutores a 'dar à luz' a sua própria verdade. A capacidade do saber ouvir do mediador se mostra aqui determinante para que sua ação seja bem-sucedida. Quem se sente ouvido, já se sente compreendido. Terá confiança não só para relatar os fatos, pelo menos sua versão dos fatos, mas também, e o mais importante, exprimir o que 'vivenciou'. Para desatar o nó de um conflito, não basta estabelecer a verdade objetiva dos fatos, é necessário apreender a verdade subjetiva das pessoas, com suas emoções, desejos, frustrações e sofrimentos. Dessa forma, cada um pode identificar os sentimentos que o impusionam a agir. A escuta ativa do mediador, por si só, tem um efeito terapêutico que começa a libertar o interlocutor de suas angústias, medos, cóleras e violências latentes, e chega a desarmar a hostilidade que este alimenta na relação com o adversário. (MULLER, 2007, p. 153, grifo do autor).

Trata-se, portanto, de uma proposta para redução de danos no encarceramento, centrada no sujeito afetivo e contínuo educando. A proposta, conscientemente aberta aos seus devires, assenta-se em paradigmas conceituais refletidos na experiência de campo, durante o desenvolvimento da pesquisa empírica na unidade prisional feminina do Recife - Bom Pastor - e no curso de formação à Mediação Humanista desenvolvido pelo Centre de Médiation et de Formation à la Médiation (CMFM), em Paris.

2.2.2 Por uma Reinserção Social Singular para o Bom Pastor: algumas sugestões durante o percurso

Unindo as noções de aprendizado ético-afetivo, de resiliência e de mediação às práticas de evasão legal discutidas por Pavarini, pensamos uma proposta de reinserção social singular de forte inspiração pedagógica, com vistas à implementação de certas práticas redutoras de danos ao encarceramento das mulheres no Bom Pastor.

Quando se fala de inspiração pedagógica, é importante destacar as bases dessa pedagogia. Aqui, toma-se por base o sujeito afetivo, singular, como uma realidade autônoma, porém em interação contínua com o meio e com os demais sujeitos. Dessa forma, partimos da premissa de que a existência é um grande processo pedagógico. Sabendo-se que cada sujeito é singular, o processo pedagógico também é singularizado, pois, as experiências vivenciadas refletem diferentemente em cada ser.

O processo que propomos é contrário à noção de massa, de massificação, de negação da individualidade. Propomos aqui o resgate do ser singular, do ser em constante aprendizagem. Nessa perspectiva, a inspiração pedagógica volta-se ao amadurecimento do ser, à reflexão dos próprios feitos e, se possível, à reparação do dano provocado. O processo de autoconhecimento, estimulado pela maiêutica socrática, associado a um processo de educação ético-afetivo, pautado na resiliência e estimulado pela prática da Mediação Humanista, formam as bases de um processo de redução de danos, com vistas à uma reinserção social singular. A reinserção do homem é parte desse processo pedagógico, apenas iniciado ou reiniciado durante a prisão.

É importante destacar ainda que o sujeito singular não é indiferente ao outro e nem independe das relações no percurso do processo de reinserção de inspiração pedagógica. Não se trata do resgate do indivíduo como um átomo, trata-se do sujeito singular que, com os vínculos estabelecidos, amadurece e se desenvolve, aprendendo.

Nessa base, para a proposta pedagógica, não há um currículo pronto e acabado, um modelo aplicável a toda realidade prisional, este currículo deve estar sempre em construção, associada à perspectiva das educandas.

A noção de reinserção social singular, portanto, é móvel, fluida, para ser pensada em cada realidade e não como uma proposta universalista, aplicável a toda e qualquer realidade. Não se trata de uma proposta modelar, finita na elaboração de um conceito. Se assim fosse, contrariaria a própria perspectiva de singularidade que a move, pois é como dizia Nietzsche (2010, p. 35), o conceito vem da "inobservância do individual e efetivo".

O projeto de redução de danos em ambiente carcerário se configura como uma proposta teórico-prática com vistas à reinserção singular. Este projeto, cujas linhas gerais apresentamos aqui, deve-se ater aos seguintes elementos fulcrais:

1- A quantidade de Agentes Penitenciários trabalhando na unidade prisional, além de uma constante capacitação dos Agentes e Diretores Penitenciários para os problemas do encarceramento sobre a personalidade e as práticas que podem reduzir os danos do encarceramento e contribuir para a reinserção social singular;

2- Procurar modificar a rotina da unidade prisional, inserindo atividades capazes de atender ao processo de redução de danos, contornando o grave problema da superpopulação carcerária (14), através, por exemplo, da redução da "tranca". Uma dessas atividades, certamente, deve ser laboral, através do emprego e de cursos profissionalizantes no Bom Pastor, que atualmente emprega 150 mulheres, quando mantém trancadas mais de 500 mulheres. Para auxiliar nessa proposta, a difusão da experiência do voluntariado seria de grande valia. A inserção dessas medidas, a princípio, amainaria dois outros graves problemas frequentes nas unidades prisionais em geral: a droga lícita e ilícita utilizadas para "impedir que a cadeia vire", para fazer passar o tempo e suportar, além de outras coisas, a tranca;

[...] sei não, é tranca direto, 24 hora com 48. Tranca direto: sai pá tomar café de 7, entra às 8, sai de meio dia, entra às uma, sai de 5 e entra às 6. É uma vida, sei não, é 24 hora por 48, uma discussão, uma agonia na cela...

3- A quantidade e a qualidade das refeições é outro grande problema bem associado à cantina da unidade prisional, distinguindo, ainda mais, quem pode comprar e quem não pode comprar, quem tem o poder, portanto, de escolher o que comer e quem não o tem;

4- A restrição dos visitantes é outra queixa frequente. Além do processo bastante burocrático, o grau de parentesco;

É fundamental estimular a manutenção dos vínculos afetivos, pois o afrouxamento é frequente. O fortalecimento dos vínculos assim como o restabelecimento dos rompidos são relevantes fatores no processo autoimune aos efeitos devastantes do cárcere.

5- O acompanhamento psicoterapêutico e social individual e em grupo na unidade e não somente atendimento psicossocial;

O acompanhamento psicoterapêutico dos sujeitos é dado durante a pena e após o cárcere, neste momento, a finalidade é um monitoramento com visitas psicossociais. Há no Bom Pastor, apenas duas psicólogas que se revezam ao longo da semana, sem uma infraestrutura adequada, tanto para o atendimento psicossocial, bem como, para qualquer possibilidade de fazer um atendimento e/ou acompanhamento psicoterapêutico adequado, em razão, também, da ausência de uma sala que promova o sigilo e o conforto para o desenvolvimento de um bom trabalho.

O atendimento psicossocial está muito mais no campo das relações, de como o sujeito lida com os processos e fenômenos da vida. A psicoterapia orienta um tratamento ou acompanhamento com o intuito de proporcionar, ao paciente, o desenvolvimento de "insights", como fator de mudança. Este conceito quer dizer literalmente, visão interna, visão para dentro, além da superfície. Desse processo, tende a surgir a elaboração e/ou o devir de um novo sujeito, mais ciente de si mesmo.

A questão das Assistências, sobretudo, a médica (ginecológica) e a jurídica.

[...] não tem direito a uma assistente social, que é uma onda quando nós quer falar com a assistente social aqui, é um aperreio... não tem direito a um ginecologista, já num tem ginecologista aqui... dentista é péssimo. Parece que é duas dentistas pra um bocado de mulher... não tem como a pessoa ser atendida assim não, 'menin'... oxe, a pessoa fica aqui e sai revoltada, revoltada mermo.

Uma das principais queixas das mulheres foi, também, em razão da desassistência médica, sobretudo ginecológica, pois no Bom Pastor não há ginecologista, há somente uma clínica geral e duas pediatras. Muitas, por precisarem de atendimento, sobretudo as gestantes, necessitam de remoção para hospitais e, em razão do pouco efetivo, não conseguem essa assistência, garantida por lei.

Por causa dela dona [fulana] mulher tava grávida, tava passano mal aí eu peguei passei, cheguei aqui eu disse a ela, minha senhora [sicrana] tá passando mal, você quer saber mais do que eu que sou doutora? Você num é nada. Eu disse eu num sou nada, num sou ninguém, agora no trabalho ela tá muito baixa, tá passando mal aí mudei de ideia, aí num gostei, aí fui cobrada, depois que me viu aí atrás, aí ela num gosta de mim por causa disso.

6- A questão do trabalho e de cursos profissionalizantes no Bom Pastor pode ser pensada a partir das próprias empresas lá atuantes. Essas empresas poderiam comprometer-se com uma espécie de cota para empregar as ex-detentas que, para essas empresas, trabalharam durante a detenção. Para evitar situações como a ocorrida com uma detenta que, ao pedir emprego na fábrica onde trabalhava para quando saísse da cadeia, ouviu de um agente penitenciário, após algum tempo sem resposta da empresa: "para você trabalhar para essa empresa de novo, só se voltar para a cadeia." É fundamental batalhar por mais convênios com outras empresas, já dentro dessa proposta da cota, estimulando, inclusive, com incentivos fiscais.

Associado a esse processo de inspiração pedagógica, com fulcro na formação de um sujeito livre, autônomo, norteado pela ética da responsabilidade sobre sua vida e respeito à alteridade, está a proposta da reinserção por meio do trabalho. De forma alguma estamos resgatando o processo de adestramento moderno por meio do trabalho. Aqui o que se pretende é gerar oportunidades de trabalho para o detento e ex-detento, de acordo com suas habilidades e vontade. Um meio atual de auxiliar no resgate da dignidade no autossustento e da família.

Para que o detento possa ser integrado no mercado de trabalho é fundamental a profissionalização, quase inexistente na massa carcerária. A inserção de cursos profissionalizantes foi uma medida trazida com bastante êxito no processo de redução de danos, menos tempo na "tranca", maior possibilidade de reinserção.

É importante trabalhar com a noção de produtividade avaliada, não apenas economicamente, mas socialmente, como sugere Pavarini (1990). Além do mais, é fundamental o estabelecimento de condições para o processo de autodeterminação dos detentos no que tange ao processo de emancipação, pois, como afirma Pavarini (1990), essa é uma forma de encarar o problema da reinserção social, superando duas crenças ingênuas: a de que o mercado e a sociedade são capazes de reintegrar os socialmente frágeis e a de que um investimento assistencialista é capaz de resolver o problema.

7- A mediação de conflitos como redução de danos.

Na composição desse processo, a prática da Mediação Humanista é fundamental. Essa prática pode ser inserida no Bom Pastor através da capacitação das mulheres encarceradas interessadas na formação para esse processo, assim como, do corpo de técnicos do psicossocial. Assim, poderia ser instituída a mediação para os conflitos entre as mulheres encarceradas ou entre estas e pessoas a ela vinculadas, que poderia vir ao Bom Pastor, para participar do processo de mediação. Poderia também ser instituída a mediação para os conflitos entre as mulheres encarceradas e os agentes penitenciários ou técnicos do sistema prisional. Tal prática configura-se como um processo de acolhimento de conflitos e estímulo à sua dissolução pela proposta de auto-responsabilidade e perdão, não esquecimento, mas reconciliação, como diz François Ost (1999), pois só o perdão, a reconciliação com o passado, torna o homem capaz de projetar com responsabilidade e clareza o futuro.

8- Atendimento aos dependentes químicos em sintonia com a Política de redução de danos.

Talvez seja essa uma das etapas mais difíceis de serem implementadas, visto o intenso comércio da droga nas unidades prisionais em geral, inclusive no Bom Pastor.

Com essas oito propostas no percurso de uma Reinserção Social Singular para o Bom Pastor, este trabalho se singulariza não como mais uma crítica ao sistema prisional, ilustrada pela subjetividade das mulheres que compõem essa unidade prisional, mas como uma ação afirmativa. Trata-se de um trabalho consciente e sensível a uma realidade que se encontra na dobra (15) e que, por isso, procura apontar caminhos para modificação de algumas práticas no ambiente prisional, no intuito de reduzir a violência, e com isso diminuir os danos do aprisionamento.

Nesse longo caminho trilhado, pode-se perceber que o início do fim do caminho da mediação é a libertação do sofrimento e desta resulta o desenvolvimento de um processo autoimune, cujo foco é a redução dos danos do encarceramento, possibilitando a interrupção da repetição singular de retorno ao cárcere, por meio de uma Reinserção Social Singular.

Notas

1. Alguns capítulos desta Parte II foram desenvolvidos a partir da vivência na pesquisa "Os efeitos do cárcere sobre a afetividade e a dificuldade de Reinserção Social: estudos de casos na Colônia Penal Feminina do Recife e na Penitenciária Professor Barreto Campelo em Pernambuco", financiada pelo Governo do Estado de Pernambuco, realizada pelo Instituto Brasileiro Pró-Cidadania e por mim coordenada.

2. Prefácio de Humberto R. Maturana (págs. 17-19) ao livro "O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro", de Riane Eisler.

3. "Para descrever uma alternativa palpável ao sistema baseado no escalonamento de uma metade da humanidade sobrepondo-se a outra, proponho o neologismo gilania. Gi deriva da raiz grega gyne, ou 'mulher'; an deriva de andros, ou 'homem'. A letra 'l' entre as duas sílabas tem duplo significado: representa a ligação entre as duas metades da humanidade - ou seja, não se trata de um escalonamento, como na androcracia - e em grego deriva do verbo lyein ou lyo, que por sua vez também tem duplo significado: resolver ou solucionar (come se vê da palavra análise) e dissolver ou libertar (como na palavra catálise). Nesse sentido a letra 'l' representa a solução de nossos problemas através da libertação das duas metades da raça humana em relação aos papéis degradantes e distorsivos, que foram rigidamente impostos pelas hierarquias de dominação inerentes aos sistemas androcráticos." (EISLER, 2007, p. 165).

4. "No lugar de patriarcado, para descrever com maior exatidão um sistema social regido pela força, ou ameaça de uso de força pelos homens, proponho o neologismo androcracia. Já utilizada por alguns, essa palavra deriva das raízes gregas andros, ou 'homem', e kratos, ou 'governo'." (EISLER, 2007, p. 165).

5. Aqui Muller (2007, p. 148) faz menção a René Girard, segundo o qual: "[...] a origem do conflito entre dois adversários encontra-se na rivalidade mimética que os opõe, objetivando a apropriação de um mesmo objeto." Em seguida, expõe Muller que a não-violência objetiva justamente romper esse mimetismo, ou seja, a imitação da violência do outro. Sobre a teoria mimética, vide: GIRARD, René. Um longo Argumento do Princípio ao Fim. Tradução de Bluma Waddington Vilar. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

6. Vide: ANDRADE, Lédio Rosa de. Violência: Psicanálise, Direito e Cultura. Millennium.

7. Vide: PAVARINI, Massimo. La città e il suo rovescio. In: FONDAZIONE GIOVANNI MICHELUCCI. La nuova città: Quaderni della Fondazione Giovanni Michelucci. Firenze: Stampa M.C.S., 1983.

8. Como diz Gandhi (1986, p.71-72 apud MULLER, 2007, p. 217): "Uma opinião pública consciente e inteligente é a arma mais poderosa do resistente não-violento).

9. Vide: NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. São Cristóvão: Recorde, 2005.

10. Sobre esse aspecto "[...] influi, particularmente, o fato de que a hierarquia e a organização informal da comunidade é dominada por uma restrita minoria de criminosos com forte orientação anti-social, que, pelo poder e, portanto, pelo prestígio de que goza, assume a função de modelo para os outros, sendo, ao mesmo tempo, uma autoridade com quem o staff da instituição é constrangido a mediar o próprio poder normativo de fato. A maneira pela qual são reguladas as relações de poder e de distribuição de recursos (também daqueles relativos às necessidades sexuais) na comunidade carcerária, favorece a formação de hábitos mentais inspirados no cinismo, no culto e no respeito à violência ilegal". (BARATTA, 2002, p. 185).

11. Esta ocorre "[...] em parte, também no âmbito da comunidade dos detidos, dado que a assunção de um certo grau de ordem, da qual os chefes dos detidos se fazem garantes frente ao staff (em troca de privilégios), faz parte dos fins reconhecidos nesta comunidade. Esta educação ocorre, ademais, através da aceitação das normas formais da instituição, e das informais postas em ação pelo staff. Em geral, pode-se dizer que a adaptação a estas normas tende a interiorizar modelos exteriores de comportamento, que servem ao ordenado desenvolvimento da vida da instituição [...] A relação com os representantes dos órgãos institucionais, que, desse modo, se torna característica da atitude do preso, é marcada, ao mesmo tempo, pela hostilidade, pela desconfiança e por uma submissão sem consentimento". (BARATTA, 2002, p. 185-186).

12. Dado informado pela instrutora Laure Galvez no curso de formação na mediação, em Paris.

13. É importante diferenciar culpa de culpa tóxica. Segundo Almeida (2012), o sentimento de culpa é salutar quando ele representa um arrependimento, abrindo margem a uma ação reparadora; já a culpa tóxica se caracteriza pela paralisação da pessoa na culpa, sem condução ao caminho da reparação.

14. Neste sentido, a Lei nº 12.403/11 vem trazer uma importante contribuição, diminuindo o contingente de presos que ainda não foram sentenciados, os presos provisórios, e desafogando presídios e cadeias públicas, uma vez que agora a própria autoridade policial poderá (desde que observados os casos previstos na lei) arbitrar fiança não só nos casos punidos com detenção, mas também nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a quatro anos. Nada mais justo já que uma pessoa condenada a menos de quatro anos dificilmente ficará presa, pois lhe serão aplicadas outras medidas restritivas de direitos ou pena a ser cumprida em regime aberto.

15. Vide: DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibiniz e o Barroco. Campinas: Papirus, 1991.