ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Parte I
O sofrimento, o cárcere e o retorno (1)

Karina Nogueira Vasconcelos, 2013

Depois de entrevistar cerca de 30 mulheres na Colônia Penal Feminina do Recife - o Bom Pastor -, algo as identificava: o sofrimento. O sofrimento pelo encarceramento, pedra central de todo o diálogo, logo perdia vez para os profundos sofrimentos pelo desamparo, rejeição e inúmeras violências. As histórias daquelas mulheres marcadas por sofrimentos não superados e que possivelmente as conduziram para outras experiências de sofrimento, tais quais o cárcere, é o tópico central desse estudo.

1. “O Bom Pastor: as histórias e os afetos”

Por que pesquisar a Colônia Penal Feminina do Recife - o Bom Pastor e como fazê-lo? Por que mostrar o sofrimento do cárcere? Por que conhecer quem são aquelas mulheres, quais são as suas histórias, o que as levaram para lá, o que as levaram mais uma vez para lá, por que elas continuam retornando para lá? O que significa estar presa? Quais eram o seus planos e quais são agora os seus planos? Qual o sentido da liberdade? Qual a interpretação sobre o aprisionamento? Como essa experiência vai refletir nas relações sociais? Como a sociedade está implicada nesse contexto? Como a sociedade pode se inserir nesse contexto? O que é a pena para quem a sofre e o que é a pena para quem está fora?

Dizem os psicanalistas que a atração por pesquisar certos temas tem a ver com questões de foro íntimo, assim como “travar”, em certos momentos, pode significar um entrave emocional diante do que se pretende conhecer. Refletindo sobre a vida que se leva, ser livre é a condição de todos e o privilégio de alguns e o cárcere é o grande paradigma simbólico da liberdade e da ausência dela. Chega-se à prisão por excesso do uso da liberdade, do livre arbítrio (2) ou por ausência do uso da liberdade, por ser impulsionado por um fluxo avassalador chamado realidade, influência do meio, processo de socialização (3)? Uma causa exclui a outra? Pode ser pelas duas causas? Estipular duas causas é reduzir demais a complexidade? Não foi fácil nem o ponto de partida.

Quando falamos de liberdade, logo somos remetidos às revoluções burguesas do século XVIII, à tão discutida, criticada e esperada Modernidade, assim como às suas promessas e, desse ponto, chegamos à grande invenção - a pena privativa de liberdade, o cárcere. Disse Foucault (1976) que os iluministas inventaram a liberdade, mas também a disciplina. Certamente, os anseios pela liberdade não são exclusivos dos modernos.

Existe toda uma história de classes hierárquicas, dominação e escravidão que remonta ao berço da civilização ocidental na Antiguidade nos escritos de Aristóteles, que evidencia essa longa história. A questão aqui não é tratar a liberdade a partir da sua ontologia, mas como um elemento histórico e suas resignificações.

A liberdade na Modernidade, no contexto de ascensão burguesa, permitiu a aquisição de alguns significados, mas vamos nos ater a um, em especial - a liberdade mensurada no tempo e manipulada para promoção de sujeitos disciplinados, adaptados, produtivos, segundo as necessidades econômicas de um contexto. É assim que nascem os primeiros cárceres na América do norte e na Europa: silêncio, trabalho fabril, repetição, racionamento alimentar e sexual, disciplina e docilização (4). O fato da história do cárcere estar atrelada a um processo de produção de escravos para as necessidades de um capitalismo em desenvolvimento não é suficiente para explicar cada cárcere. Por mais que a análise da origem dos primeiros cárceres, nessa leitura utilitarística, pareça hegemônica; ela não explica cada um, em deslocamento pelo tempo.

Há várias formas de perceber a existência do cárcere ainda hoje. Por um bom tempo, a partir do desenvolvimento econômico na Europa, durante os anos 60, achou-se, em razão dos baixos índices de encarceramento, que o cárcere iria se acabar e outras penas alternativas teriam simbologia suficiente para prevenir e reprimir o crime. Acontece que, ao invés de morrer, o cárcere ressurge ainda mais vigoroso de sua convalescência a partir dos anos 90, com altíssimos índices de encarceramento em todo o mundo. Explicações para esse fenômeno? Várias. Vamos nos ater a de Loïc Wacquant (2001) com a falência do Estado Social e o surgimento do Estado Penal: mais uma forma de punir os pobres e movimentar altas somas de dinheiro na exportação de um modelo hegemônico de privatização de presídios.

Se no século XVIII podemos ler o cárcere como uma instituição de adestramento ao trabalho fabril, qual a utilidade do cárcere hoje? Será que há uma utilidade? Como explicá-lo nesse contexto de um Estado Penal?

No Bom Pastor, de 636 mulheres, aproximadamente 150 trabalham: algumas nas fábricas, outras com artesanatos e algumas na administração da unidade concessionadas pelo Estado. Do restante, boa parte permanece dopada, à base de droga ou remédio controlado. Parece-me que o paradigma do trabalho já não é mais explicativo. Trata-se somente de neutralização? A pena, diante da realidade, volta a ter uma legitimidade exclusivamente retributiva? Um agente penitenciário, durante entrevista, nos informou que o cárcere deveria ser uma punição e não possuir o formato atual no qual nem pune e nem ressocializa. Ele afirmou que não acredita que mesmo o cárcere funcionando apenas como punição seja capaz de ressocializar, pois o detento volta para o mesmo meio, para a mesma vizinhança. Logo, pensa ele que a única forma de resolver tal problema é a educação de base, através de um grande investimento no sistema educacional, que permita ao professor melhores salários e condições de trabalho dignas. Assim, este profissional poderá dedicar-se, de fato, ao processo educacional dos cidadãos desfavorecidos.

Mas, a final de contas, o que é mesmo a pena? Será que se responde sem que se perceba as perspectivas? Teoricamente, serve à retribuição do mal, à prevenção social - o bode expiatório (5) - e à ressocialização, hoje, reinserção social. Difunde-se a ideologia de que submetido às privações, porque a privação menos sentida é a da liberdade, o sujeito reflete e constata que é melhor viver dentro da legalidade que fora dela. Acrescenta-se a ideia de que o cárcere que oferta estudo e formação profissional está promovendo a reinserção social, está ressocializando o indivíduo e, com isso, o educa para uma vida dentro dos padrões legais. Mas será que de fato isso acontece? Será que as mulheres ali presas refletem sobre as condutas que a levaram para lá, a ponto de valorá-las moralmente, sentir arrependimento e não querer mais repetir ou, meramente, se cansam da repetição de retorno ao cárcere, se cansam dessa vida e do sofrimento que a prisão impõe à ela e à sua família? Será que o sistema penal está conseguindo promover o sentimento de culpa por meio do cárcere? A pesquisa parte em busca de compreender a promoção do sofrimento e o sentido desse castigo para quem o sofre e para a sociedade que se sente protegida por essa lógica do castigo carcerário. Buscamos entender o Bom Pastor nesse contexto e também fora dele, ou seja, como ele se relaciona com a origem histórica da instituição carcerária, como ele responde às demandas desse processo hegemônico de encarceramento em massa, aos esteriótipos de aprisionamento de pessoas deficitárias, à promoção de afetos tristes, redutores de potência, ao processo de assujeitamento de pessoas a um modelo pré-definido, à lógica carcerária de premialidade e castigo, como forma de gerenciar uma massa e não de promoção de um processo educativo. Para isso, tentamos diagnosticar os afetos... compreender o cárcere... evidenciar sua responsabilidade na repetição de retorno a ele... até perceber que afetos são de difícil diagnóstico. O cárcere são vários cárceres e cada repetição de retorno - “queda”, reincidência - é singular.

Além de tudo isto, procurava-se mais. Queria-se oferecer propostas, em razão do diagnóstico, contribuir, dar movimento político à análise científica, sugerir práticas que pudessem reduzir os danos do encarceramento, pois, estes eram as certezas de partida.

Para atender às expectativas na consecução do fim da penalidade ilegal, por meio de paulatinas medidas redutoras de danos, através do resultado desse trabalho comprometido com a realidade, devassada com permissão, das mulheres do Bom Pastor, procurou-se escrever os resultados da pesquisa no formato de um diário; cujos registros trazem toda a discussão teórico-metodológica num processo de afetação recíproca com a pesquisa de campo, com as histórias das mulheres, com o dia a dia da pesquisa e com as dificuldades e as satisfações do grupo.

Tentar conhecer, empiricamente, o cárcere implicava uma série de precauções: conhecer teoricamente essa forma de punição, saber o que se quer perceber, traçar uma metodologia, mas, ao mesmo tempo, estar sensível para perceber o que não estava na programação, deixar-se afetar pelo campo.

Em junho de 2010 tudo começou: reuniões de integração da equipe, as oficinas de trabalho para discussão teórica e metodológica, as visitas exploratórias, as entrevistas, a análise do material, o resultado da análise, a produção do texto.

1.1 As Oficinas

As Oficinas denotaram um grande significado: o grupo foi se formando para o trabalho a partir da discussão do referencial teórico e metodológico. Nas oficinas discutimos textos de autores brasileiros e estrangeiros paradigmáticos para este estudo. Discutimos nas oficinas alguns temas como: cárcere e institucionalidade, afetividade e subjetividade e ressocialização e socialização.

Em razão das perspectivas que definiram o objeto de estudo, optou-se por uma pesquisa de inspiração etnográfica e o objetivo foi, então, definido: “Identificar os efeitos do cárcere sobre a afetividade e a dificuldade de reinserção social”.

A questão principal era compreender os efeitos do encarceramento sobre a afetividade, além de identificar como o cárcere produzia afetos negativos e como eles dificultariam a reinserção social, promovendo, ao contrário, o retorno ao próprio cárcere. A redução de potência seria tamanha que o desestímulo a uma vida diferente traria de volta aquelas mulheres. Mas o que, especificamente, que práticas adotadas reduzem a potência? Todas reagiriam da mesma forma? Seria possível conhecer essas práticas, relacioná-las à redução de potência e conseguir diagnosticar essa redução como responsável pelo retorno à cadeia? E dentro das reais possibilidades, será que seria possível identificar uma consciência utilitária naquela forma de agir? Em caso afirmativo, nossa pesquisa poderia servir como uma denúncia, mesmo que nos trouxesse a dúvida de ser, de fato, capaz de alterar aquela realidade consciente de redução de potência. Em caso negativo, será que o despertar dessa consciência impulsionaria novas práticas ou reafirmaria as mesmas? Retornamos ao início: a que serve o cárcere finalmente? É possível punir e educar ao mesmo tempo?

Era preciso debater sobre a afetividade, para compreender o que se queria perceber e, para isso, iniciamos com outras indagações: Podem os afetos produzidos na experiência carcerária aumentar as potências do sujeito, ao ponto de promover uma reinserção deste na sociedade, evitando que ele cometa novos crimes? Permitem esses afetos a redução da potência do sujeito, promovendo o retorno ao cárcere ao invés de reinseri-lo? É possível fazer esse tipo de relação entre os afetos, ou mesmo, generalizar essa resposta? Pode um sujeito ser submetido a uma experiência que promove afetos negativos, logo redutores de potência, mas retornarem melhor ao convívio social?

1.2 As visitas exploratórias: um primeiro contato

Nessas visitas, a equipe de pesquisa foi apresentada à estrutura física, organizacional e humana do Bom Pastor, assim como de outras unidades prisionais femininas e masculinas. Conversamos com alguns apenados e apenadas, diretores de algumas unidades prisionais, agentes penitenciários, membros da Pastoral Carcerária e membros do Conselho Penitenciário. As visitas exploratórias foram além da unidade objeto da pesquisa. Visitamos o sistema punitivo do Estado, passando por algumas cadeias públicas, pela Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima, pela Penitenciária Professor Barreto Campelo e pela Penitenciária Agrícola de Itamaracá. A fim de compreendermos os complexos ambientes prisionais, coletamos informações de diversas entidades ou representações do sistema, tanto do corpo interno (Secretários de Estado e Secretários Executivos, dirigentes, agentes, apenados concessionados do sistema e não concessionados) como do corpo externo (Pastoral Carcerária, Conselho Penitenciário, Juízes da Vara de Execução Penal). Nessas visitas e primeiras conversas, conhecemos um pouco mais dos próximos passos da reforma penitenciária que ocorrerá em Pernambuco em 2012: a criação do CIR (Centro Integrado de Ressocialização - reunindo os Regimes Fechado e Semiaberto) e a criação de uma APAC (6) (Associação de Proteção e Assitência aos Condenados) em Caruaru.

Nas unidades prisionais, registramos dados do funcionamento: salas de aula, trabalho, serviço médico, psicológico e odontológico, hora das refeições e dia de visitação da família. Realizamos várias conversações, a sós, com os apenados e com seus familiares. Essas visitas foram documentadas em diários de campo escritos pelos pesquisadores e assistentes de pesquisa, além de fotografias, objetivando registrar, das mais diversas formas, os afetos.

As visitas exploratórias foram fundamentais para pensarmos nossos referenciais teóricos, discutidos e analisados nas oficinas. As reuniões, pós-visitação, funcionaram para a equipe como uma espécie de catarse e, com ela, vários desdobramentos aconteceram, vários outros questionamentos surgiram, sobretudo, quanto ao objeto e objetivo da pesquisa. O nosso problema passou a ser a noção de reincidência com a qual deveríamos trabalhar para definir o universo de pessoas a ser pesquisado. Depois de várias reflexões, chegou-se a uma noção conceitual que envolve um critério jurídico e um critério sociológico, respectivamente, reincidência e “queda”.

A partir daí, embora abertos ao campo e a seus delineamentos, havíamos já estabelecido nosso público-alvo: as mulheres do Bom Pastor que tivessem cometido novos crimes após a experiência carcerária, e, por conta deles, retornaram à prisão, ou seja, as mulheres que retornaram ao cárcere, as mulheres selecionadas pelo critério do retorno.

Mas como construir esse conceito e defini-lo? Como determinar, a partir dele, esse universo de mulheres, ou seja, nominar quem seriam essas pessoas?

1.3 Entre a queda e a reincidência: o critério do retorno

Chegar ao conceito mencionado não foi tão simples assim. Construir uma noção coerente com o marco teórico que não criasse simplesmente mais uma categoria, que respeitasse a singularidade, dando espaço para a denotação dos fluxos e, ao mesmo tempo, estabelecesse um critério objetivo, foi um momento difícil para o grupo. Acreditamos que a noção construída nos possibilita um bom recorte dessa realidade plural.

O retorno se trata de um conceito, que reúne um elemento jurídico - a reincidência - e um elemento sociológico: a queda. A reincidência é estabelecida quando um sujeito comete novo crime após sentença transitada em julgado, ou seja, decisão definitiva da qual não cabe mais recurso. A queda, por sua vez, termo empregado no meio carcerário, indica a quantidades de vezes que se voltou ao cárcere, independente de sentença condenatória, geralmente relacionada à prisão sem condenação.

Como se percebe, não se trata da mesma coisa. O sujeito pode ser considerado reincidente mesmo que nunca tenha sido preso, basta que ele, após a sentença transitada em julgado, cometa outro crime dentro do cárcere ou fora dele. Para o novo delito, essa pessoa será considerada reincidente, mesmo que não tenha passado por uma unidade prisional. Sendo assim, não há como relacionar diretamente cárcere e reincidência.

Já a queda está vinculada, diretamente, com o cárcere, mas não necessariamente com a condenação do Estado, visto que uma pessoa pode ser presa e, posteriormente, absolvida por ausência de provas ou por prescrição, etc. e depois pode ser presa novamente com condenação por outro crime. Enfim, a queda é um conceito muito fluido para refletirmos sobre o encarceramento e a reinserção social e, como podemos perceber, nenhum desses conceitos abrange total esclarecimento a respeito dos crimes que foram cometidos por cada sujeito e com que frequência.

Assim, juntamos queda e reincidência e chegamos ao retorno que se dá toda vez que o sujeito, depois de condenado por sentença transitada em julgado e ter sido preso em razão da condenação, sai do cárcere, comete novo delito e volta ao cárcere em razão do novo delito e após sentença condenatória transitada em julgado. Dizemos, então, que o sujeito retornou ao cárcere. A reinserção almejada nos moldes estatais não aconteceu.

Logo, queda e reincidência não são sinônimos e nem critérios que possam indicar, isoladamente, a relação entre cárcere e reinserção social. Por isso, resolvemos unir os dois critérios, chegando à noção de retorno. É importante esclarecer que retorno não significa mera repetição, cada retorno é um retorno diferente, singular.

Com o critério criado, como selecionar o universo?

1.3.1 Quem entrevistar?

Construir o critério de seleção foi o primeiro passo. A partir deste ponto, tivemos que identificar as mulheres e, para isso, contamos com o apoio da SERES (Secretaria de Ressocialização do Estado de Pernambuco) que nos favoreceu o acesso ao SIC (Sistema de Informações Carcerárias), de onde extraímos os dados para identificar as mulheres a serem pesquisadas.

A partir do critério exposto, chegamos ao universo de 44 mulheres que atualmente estavam no regime fechado ou semiaberto. Essa primeira triagem não era totalmente segura em virtude da quantidade de dados incompletos. Logo, com base nos dados extraídos dos assentamentos carcerários, não podemos afirmar que somente essas mulheres retornaram ao cárcere, ou seja, esse quantitativo não representa a totalidade, visto que nos dados do SIC encontramos algumas imprecisões quanto a datas de condenação, trânsito em julgado e prisão, o que dificultou essa demarcação com segurança, tornando as estatísticas probabilidades.

Além do mais, como há crimes que não foram identificados pelas instâncias de Justiça e outros que sofreram absolvição por ausência de provas, não se poderia afirmar, ainda que os dados do SIC estivessem completos e sem falhas, que o retorno dessas mulheres representaria, com segurança, toda a realidade.

Embora constem 44 mulheres na listagem do critério do retorno, ainda que com imprecisões, algumas haviam sido transferidas para outras unidades, outras estavam foragidas e outras não quiseram ser entrevistadas. Do restante que ainda estava no Bom Pastor e aceitou participar, entrevistamos 13 mulheres. Além dessas, entrevistamos também 16 não pertencentes à lista, mas que espontaneamente quiseram ser entrevistadas, alegando enquadrarem-se no critério do retorno. No total foram entrevistadas, portanto, 29 mulheres, além de 2 agentes penitenciários e 1 assistente social.

Ao analisarmos esse quantitativo de pessoas que cometeram novos crimes após o cárcere, não evidenciamos, absolutamente, que o cárcere induz reincidência, mas que o cárcere se relaciona sim com a experiência de retorno.

1.3.2 Como entrevistar?

No Bom Pastor, tudo começou com grupos focais. Convidamos as mulheres, alvo da pesquisa, para uma primeira conversa onde nos apresentamos, mostramos como seria desenvolvida a pesquisa e as convidamos para participar desta. Após alguns grupos focais, iniciamos as entrevistas pessoais com todo o universo daquelas mulheres que se encontravam ainda na unidade prisional. Elas foram entrevistadas, individualmente, sempre por dois integrantes da pesquisa, num espaço com privacidade, geralmente, a Biblioteca do Bom Pastor.

Durante esta primeira etapa do trabalho, entrevistamos, também, alguns técnicos do sistema e agentes penitenciários. As declarações foram gravadas e, em seguida, transcritas. Trechos desses relatos permeiam todos os pontos desse diário. Após as entrevistas, passamos à escolha da história de vida. Um momento difícil. Escolhemos algumas histórias... pensamos qual história seria mais paradigmática, tendo em vista os relatos, mas nenhuma história é capaz de resumir ou mesmo demonstrar as histórias das demais. Dentre as histórias que mais nos afetaram, estava a de Teta, a chaveira que alcançou a liberdade. Pelo fato de ela estar usufruindo sua liberdade, voltando para casa, para a família e para as dificuldades da vida, escolhemos o seu relato. Passamos, então, a ouvir as histórias de dentro e de fora do Bom Pastor de quem está fora dele, ao invés de, como foi durante toda a pesquisa, ouvir as narrações de quem estava dentro da Colônia Penal. Da história de vida de Teta, produzimos um documentário que acompanha a pesquisa.

A pesquisa no Bom Pastor foi uma experiência que contribuiu bastante para o processo de amadurecimento existencial da equipe de pesquisa. Quando iniciamos a pesquisa, ainda nas Oficinas, fomos construindo uma identidade nos pressupostos e hipóteses, como também na metodologia de abordagem.

O que nos identificava como equipe era o traço de respeito àquela realidade sofrida e o espírito de acolhimento na produção dos dados e das entrevistas. Não afrontamos nosso “objeto de estudo” com a ânsia de descobrir a verdade da cadeia: seu funcionamento, suas relações de poder, quem são aquelas mulheres e quem são os agentes penitenciários.

Orientamos nossa abordagem para, no relacionamento estabelecido, coletar as verdades nos discursos, sem procurar confrontá-los, ou investigar o que foi dito. É o que consideramos captação de afetos, como cada uma percebe a sua realidade, o que significa a experiência carcerária para ela.

Optamos, então, pelas Entrevistas Narrativas, sem um questionário estruturado, embora tivéssemos construído um Roteiro de Entrevistas com alguns elementos considerados pelo grupo importantes para a identificação do aumento ou redução de potência, de afetividade. Por inspiração da pesquisa etnográfica, iniciamos cada entrevista com a mesma proposta: “fale sobre você”. Daí em diante, cada entrevista foi singular. A repetição da proposta e a variação das narrativas estão alinhadas, também, com uma certa prática cartográfica que, segundo Kastrup e Barros (2009, p. 79), “[...] requer um dispositivo de funcionamento mais ou menos regular, em que se articulam a repetição e a variação”.

Aqui nos deixamos levar pelo discurso de cada uma daquelas mulheres. Pela narrativa de suas experiências, marcadas pelas suas subjetividades, sem direcionamento do entrevistador, embora com algumas intervenções. Nessa perspectiva, afirmam Bauer e Gaskell (2008, p. 95):

Para se conseguir uma versão menos imposta e por isso mais 'válida' da perspectiva do informante, a influência do entrevistador deve ser mínima e um ambiente deve ser preparado para se conseguir esta minimização da influência do entrevistador. As regras de execução da EN [Entrevista Narrativa] restringem o entrevistador. A EN vai mais além que qualquer outro método ao evitar uma pré-estruturação da entrevista. É o empreendimento mais notável para superar o tipo de entrevista baseado em pergunta-resposta. Ela emprega um tipo específico de comunicação cotidiana, o contar e escutar história, para conseguir este objetivo.

A inspiração da etnografia definiu nossa opção pelo Roteiro de Entrevistas e pela rejeição a um questionário estruturado. Esse Roteiro foi transformado, ao final da produção de dados, em um questionário de 30 perguntas, intitulado, Roteiro de Entrevistas Decodificado. Estes foram preenchidos, a posteriori, como uma espécie de decodificação dos discursos nos pontos considerados, previamente, fundamentais na captação dos efeitos do encarceramento sobre a afetividade e, a partir daí, na dificuldade ou não de reinserção social.

Consoante com essa prática, Bauer e Gaskell recomendam uma redução das Entrevistas Narrativas (EN) a algumas categorias, como forma de quantificar certos dados, de codificar os textos se necessário. Vejamos:

Primeiramente, são criadas categorias para cada EN, posteriormente ordenadas em um sistema coerente de categorização geral para todas as ENs do projeto. Um sistema final de categorização somente pode ser decidido depois de revisões reiteradas. O produto final constitui uma interpretação das entrevistas, juntando estruturas de relevância dos informantes com as do entrevistador. A fusão dos horizontes dos pesquisadores e dos informantes é algo que tem a ver com a hermenêutica. (BAUER, GASKELL, 2008, p. 107).

As respostas decodificadas em dados quantitativos e qualitativos serão discutidos a partir da análise das narrativas. Para nós, o roteiro, ao invés do questionário, permite flexibilidade, revisão técnica e, sobretudo, descoberta daquilo que não nos preparamos para perceber. Admite, também, uma interação maior entre o entrevistador e o entrevistado e permite uma afetação maior pela libertação dos sentidos.

Houve também uma aproximação do método da cartografia, que nos orientou na postura atenta, flexível e aberta a perceber o que não estávamos focados a enxergar. Portanto, atentamos para a escolha de visitas exploratórias, de visitas a outras unidades prisionais, para a interação com todos aqueles que, diretamente ou indiretamente, faziam parte do cárcere.

Está no trabalho do cartógrafo, portanto, essa prática de rastrear o campo, pois, só assim, pode-se, então, encontrar o que não se conhecia. Segundo Kastrup (2009, p. 40):

O rastreio é um gesto de varredura do campo. Pode-se dizer que a atenção que rastreia visa uma espécie de meta ou alvo móvel. Nesse sentido, praticar a cartografia envolve uma habilidade para lidar com metas em variação contínua. [...] A atenção do cartógrafo é, em princípio, aberta e sem foco, e a concentração se explica por uma sintonia fina com o problema e no problema.

Propor às mulheres do Bom Pastor “fale sobre você” significou dar o poder de, pela fala, reconstruir sua história com as marcas do que elas queriam relatar, inclusive, omitindo a parte do cárcere. O que, na verdade, não esperávamos que acontecesse e que, de fato, não aconteceu. Certamente, depois de nos apresentar e explicar porque estávamos ali, dificilmente o discurso delas não giraria em torno do cárcere. Muitas não partiram dele, mas chegaram a ele.

Para nós, era importante toda sua história, seus valores, sua cultura, sua forma singular de ver a vida e com ela se relacionar. Quem eram aquelas pessoas, de onde vieram, por que estavam ali, seus desejos, seus sonhos, seus planos e, inclusive, a ausências deles. A história daquelas mulheres não iniciava no cárcere e lá também não terminava. Com o intuito de captar o retorno ao cárcere, compreender suas histórias se tornava essencial. “Conhecer o caminho de constituição de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto, constituir esse próprio caminho, constituir-se no caminho. Esse é o caminho da pesquisa-intervenção.” (PASSOS; BARROS, 2009, p. 31).

Durante a experiência de campo, tivemos que ativar, como diz Kastrup (2009, p. 48), uma “atenção à espreita - flutuante, concentrada e aberta”, pois, ativar essa atenção implicava desativar ou, ao menos, inibir a atenção seletiva, geralmente prevalecente no nosso funcionamento cognitivo, como afirma a autora.

Em razão dessa escolha, procuramos fazer diários de campo, registrando impressões e sensações, marcadas de subjetividade. Nos diários registrávamos, também, dados das reuniões que fazíamos antes de dispersar o grupo após a experiência de campo, onde colocávamos percepções e sentimentos dos contatos estabelecidos. Com isso, aumentávamos nossa percepção pela percepção alheia. O registro desses relatos são também uma referência da Cartografia. Segundo Barros e Kastrup (2009, p. 70-71):

Para a pesquisa cartográfica são feitos relatos regulares, após as visitas e as atividades, que reúnem tanto informações objetivas quanto impressões que emergem no encontro com o campo. Os relatos contêm informações precisas - o dia da atividade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsável, comportando também uma descrição mais ou menos detalhada - e contêm também impressões e informações menos nítidas, que vêm a ser precisadas e explicitadas posteriormente. Esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças e dos afetos. Podem conter associações que ocorrem ao pesquisador durante a observação ou no momento em que o relato está sendo elaborado. É interessante ressaltar que o momento da preparação do relato funciona muitas vezes como um momento de explicitação de experiências que foram vividas pelo cartógrafo, mas que permaneciam até então num nível implícito, inconsciente e pré-refletido (Vermersch, 2000). Por esse motivo, a escrita do relato não deve ser um mero registro de informações que se julga importantes. Longe de ser um momento burocrático, sua elaboração requer até mesmo um certo recolhimento, cujo objetivo é possibilitar um retorno à experiência do campo, para que se possa então falar de dentro da experiência e não de fora, ou seja, sobre a experiência. Há uma processualidade na própria escrita. Um processo aparentemente individual ganha uma dimensão claramente coletiva quando o texto traz à cena falas e diálogos que emergem nas sessões ou visitas ao campo. Quando há uma equipe que trabalha junto, após ser elaborado por um membro, o relato é apresentado ao grupo em reuniões, ganhando a contribuição dos demais participantes.

Na mesma linha de inspiração, resolvemos publicar os resultados da pesquisa no formato de um diário de campo, seja para divulgar a experiência do grupo, seja para propiciar ao leitor suas próprias impressões, através de um texto descritivo, seja para estimular uma maior interação entre o leitor e o campo. Trata-se de uma espécie de guia da memória, buscando recapitular o passo a passo, como um registro histórico do processo da pesquisa.

Para Barros e Kastrup (2009, p. 71):

O diário de campo é um elemento importante para a elaboração dos textos que apresentarão os resultados da pesquisa. A polifonia do texto (Bahktin, 1990; 2003) é sempre um objetivo e também um desafio, comparecendo de diferentes modos. A multiplicidade de vozes, onde participantes e autores de textos teóricos entram em agenciamento coletivo de enunciação (Deleuze e Guatarri, 1977), é uma delas.

Segundo Caiafa (2007 apud BARROS; KASTRUP, 2009), a pesquisa etnográfica também se inclina para a produção de um relato daquilo que se observou na pesquisa, ou seja, daquilo que o etnógrafo “viu e viveu”, daquilo que ele ouviu no campo, daquilo que lhe foi contado, assim como, daquilo que os outros o relatam da sua própria experiência. Alerta a autora que a interpretação não pode ser mais relevante que a “novidade trazida pelos eventos do campo”.

1.4 O curso com Massimo Pavarini

No período de 14 a 25 de fevereiro de 2011, em Recife, Massimo Pavarini, Professor de Direito Penitenciário e Direito Penal da Università di Bologna, ministrou, para a equipe da pesquisa, o curso: “Como liberar-se da necessidade do cárcere: um curso de pesquisa-ação sobre a penalidade em Pernambuco”.

As aulas durante o curso, assim como a consultoria prestada pelo Professor Pavarini, foram essenciais para a produção desse material. Refletimos bastante sobre o cárcere, sua origem, sua função e suas transformações. Analisamos: modelos explicativos para os altos índices de encarceramento em todo o mundo, o público-alvo da instituição carcerária e os efeitos do cárcere sobre o sujeito. Discutimos, ainda, sobre os projetos de inclusão carcerária de presos na Itália e sobre as faces e fases de um projeto social, com enfoque científico e político, para a redução de danos resultantes do encarceramento.

1.5. As entrevistas

Antes do início das entrevistas individuais, fizemos algumas reuniões em grupo, com o intuito de apresentar, às detentas, a nossa equipe, a pesquisa, sua metodologia e seu objetivo. Nessas reuniões algumas mulheres quiseram participar, alegando ter mais de uma queda e outras, que constavam na lista daquelas enquadradas no critério do retorno, passaram por uma oscilação entre desistência e vontade de participar. Nas reuniões em grupo, foram debatidos alguns temas e realizadas atividades interativas, através de desenhos (7).

As entrevistas individuais foram realizadas ora na Biblioteca, ora no Parlatório, ora no Refeitório e foram produzidas por dois integrantes da equipe de pesquisa com cada mulher. Optamos por dois entrevistadores para o caso do estímulo à continuidade do relato dentro do roteiro (8) elaborado previamente com a função de guia. Para realizar essas entrevistas, passamos a frequentar o Bom Pastor uma vez por semana e conviver com as mulheres, com os agentes, com os técnicos e com seus espaços. Mas como são os espaços no Bom Pastor e quem são suas mulheres? Partiremos de uma descrição do Bom Pastor, uma espécie de retrato, contando um pouco da sua história, para daí então aprofundarmos a análise das entrevistas.

2. Bem-vindos ao Bom Pastor: sua geografia e singularidades

A escolha pelo Bom Pastor deve-se à sua origem histórica e referência no encarceramento feminino em Recife. A Colônia Penal Feminina do Recife (CPFR) - O Bom Pastor - tem sua história vinculada a um Convento de freiras da Congregação Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor que, como diz Charisma (2009) - diretora da Escola Penitenciária de Pernambuco - que por 9 anos trabalhou na Colônia Penal Feminina, tinha a missão de “ensinar um ofício às mulheres desfavorecidas da comunidade”. No entanto, após acordo com o então Governador Agamenon Magalhães, as freiras ficaram responsáveis pela reeducação das detentas e, em troca, o Governador lhes cedeu 10 hectares de terreno, onde o Estado edificou a CPFR. A unidade prisional, construída ao lado do Convento, é dele separada por uma capela. De um lado as freiras, do outro as presas.

Em 05 de novembro de 1945 foi inaugurado o prédio situado à Rua do Bom Pastor no Engenho do Meio. Na ocasião, foram transferidas para as novas instalações 120 internas e 20 presidiárias, com o acompanhamento de 20 religiosas. [...] Aproximadamente no início dos anos 90, após 45 anos de trabalhos de fé e educação no bairro do Engenho do Meio, as irmãs da Congregação do Bom Pastor começaram a sentir dificuldades de continuar realizando a missão de reeducar as 90 presidiárias que cumpriam pena na unidade prisional em face de realizarem um trabalho de Pastoral Carcerária e não de “carcereiras”. A missão das mesmas, como esclareceram enfaticamente era de cunho religioso e até mesmo assistencial e não de natureza punitiva. A Colônia Penal Feminina funcionava como um colégio interno sendo seguidas as regras do Apostolado. Porém, o Estado passou a interferir na gestão da Congregação. Por exemplo, a concessão de encontro conjugal às presidiárias não era aceito pelas religiosas, uma vez que aquelas se prostituíam e tinham amantes, contrariando completamente a missão das irmãs que realizavam o seu trabalho ditado pelos preceitos da Igreja Católica. (SANTOS, 2009).

O Bom Pastor fica situado no bairro do Engenho do Meio, zona oeste da cidade do Recife, de fácil acesso, razão pela qual as presas não querem sair para a nova unidade prisional construída em Abreu e Lima, município a 15 Km do Recife.

Na CPFR, encontram-se mulheres presas em processo de triagem, como também aquelas condenadas, que cumprem pena seja no regime fechado que no semiaberto. Era ela a única unidade prisional da região metropolitana. Mesmo depois da construção da Colônia Penal Feminina de Abreu e Lima (CPFAL), essa mesma realidade ainda se encontra no Bom Pastor, quando, na verdade, deveria estar apenas mulheres não sentenciadas.

Atualmente, a CPFR está com 636 mulheres, embora tenha capacidade para somente 204, logo há um déficit de 432 vagas. A Penitenciária Feminina de Abreu e Lima, que começou a funcionar em setembro de 2009, está com 383 mulheres, embora tenha somente 90 vagas, já apresentando um déficit de 293 postos.

Nessa realidade de déficits, há, na CPFR, 35 celas, sendo uma destinada às gestantes, uma destinada à triagem e três no berçário. A maioria das celas tem, em média, 12 m². Há também duas celas maiores com uma população entre 30 e 32 mulheres, num espaço de 18 m² e celas menores de até 6 m². Segundo a Lei de Execuções Penais, as celas devem ser individuais, podendo ser coletiva desde que garanta condições de vida digna (9).

Existe o espaço destinado às presas que cometeram falta disciplinar - o “castigo” - por elas chamado de “Japão”. A falta disciplinar vai desde um desacato até uma agressão física ou tráfico de drogas e estão disciplinadas na Portaria Estadual 001/2000, seguindo a LEP. Esse espaço fica isolado dos demais, sem comunicação, acredito que por essa razão a denominação de Japão (onde é longe, do outro lado, inacessível), há nele quatro celas e um pequeno pátio para o “banho de sol”.

A geografia do Bom Pastor é um tanto quanto labiríntica. Ao entrar e passar pela recepção há um corredor que: indo para a esquerda há, de um lado, as salas da revista (uma masculina e outra feminina) e, do outro, um espaço amplo destinado ao trabalho fabril; indo para a direita, há as salas da Administração e o refeitório dos agentes penitenciários, continuando mais um pouco e virando à esquerda há quatro salas para assistência médica, odontológica, enfermaria e o parlatório para o encontro com os advogados.

Voltando ao corredor e girando à direita, encontramos mais algumas salas destinadas à administração e, logo em seguida o berçário. Lá temos três celas, cada uma com camas, berços e banheiro, além de um pequeno pátio. Antes de chegar ao berçário, defronte às salas da administração, onde está a sala de atendimento psicossocial, há uma passagem isolada, sempre fechada com cadeado, que dá passagem para as costas das salas de aula e do refeitório.

Voltando mais uma vez ao corredor principal e seguindo em frente, temos o grande pátio que dá comunicação aos pavilhões, à cela de triagem, à sala de aula, à biblioteca, ao refeitório, ao salão de beleza, à cantina, à padaria. Esses são os espaços à mostra no pátio, que conta com uma quadra coberta, alguns bancos de pedra, duas mesas de pedra e um carrossel com dois dos quatro bancos quebrados. Nesse pátio, corre um esgoto a céu aberto.

Do lado esquerdo do pátio, entre a padaria e as paredes das celas, há uma porta que conduz para algumas salas, dentre elas duas destinadas ao encontro conjugal e, em seguida, um corredor com mais algumas salas (segundo foi informado pelos agentes, hoje servem somente como depósito) e logo depois o “castigo”. Do lado direito do pátio, entre o refeitório e o salão de beleza há uma porta singela, que indica a entrada para mais uma sala, eis que adentrando essa sala se agigantam outros espaços destinados ao trabalho nas fábricas ou manuais, como bisquis ou bijuteria.

Atualmente há 5 fábricas no Bom Pastor, são elas:

  1. Quality (Beneficiamento têxtil);
  2. Indapol (Embalagens para festas);
  3. Perfilplast (Componentes para portas sanfonadas);
  4. Casa do Fardamento (Fardamentos e uniformes);
  5. Rochelle Enxovais (Lençóis, fronhas, toalhas, cortinas e almofadas).

2.1 O perfil das mulheres do Bom Pastor

O perfil das mulheres do Bom Pastor foi traçado a partir de um estudo do Banco de Dados do SIC (Sistema de Informações Carcerárias), cuja limpeza resultou nas tabelas e categorias abaixo mencionadas.

É importante ressaltar que, embora estejamos traçando um perfil genérico com um vastíssimo banco de dados, contendo todos os anos de registros sem cortes, trata-se de um perfil frio, objetivo, que ganhará subjetividade com as entrevistas narrativas e com a análise dos dados extraídos das histórias das entrevistadas.

2.1.1 Uma perspectiva quantitativa

Com o intuito de compreender a repercussão quantitativa daquilo que vínhamos percebendo nas entrevistas individuais, solicitamos à SERES (Secretaria Executiva de Ressocialização) o seu banco de dados relativo a todas as mulheres que já haviam passado pelo Bom Pastor, com as seguintes variáveis: etnia, escolaridade, renda familiar, quantidade de filhos, profissão, tipo penal, quantidade de processos e bairro.

Segundo esses dados, passaram pelo Bom Pastor 4.968 mulheres diferentes. É importante ressaltar, porém, que o SIC (Sistema de Informações Carcerárias) foi criado há aproximadamente 10 anos e, no Bom Pastor, ele funciona desde 2002. O que isso significa? Significa que, embora o intervalo de tempo de registro de entrada dessas mulheres seja de 1980 a 2011, isso não nos diz que só a partir de 1980 houve entrada de mulheres lá. Isso significa que as mulheres que entraram no Bom Pastor após 2002, mas que tiveram passagens por lá anteriores a esse ano, tiveram seus dados atualizados no SIC, desde a primeira entrada. Bom, qualquer mulher que tenha registro de entrada anterior a 2002 é porque teve uma nova entrada posterior a 2002.

Desse universo com registro informatizado, promovemos as seguintes análises.

2.1.1.1 Variável etnia

No que tange à etnia, encontramos as seguintes categorias nos registros do SIC: Amarela, Branca, Indígena, Negra, Parda e Outras. A frequência dessas categorias está na Tabela 1.

Como se observa, 65,2% das mulheres diferentes que entraram no Bom Pastor, no intervalo de 1980 a 2011, foram enquadradas na categoria parda, 17% na categoria negra, 16,1% na categoria branca, 1,1% na categoria outras, 0,4% na categoria indígena e 0,1% na categoria amarela. Daqui, percebe-se que mais da metade dessa população é parda e que há, praticamente, uma equivalência entre negras e brancas.

Tabela 1 - Variável Etnia
Etnia Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
Parda 3242 65,2
Negra 844 17,0
Branca 800 16,1
Outras 57 1,1
Indígena 20 0,4
Amarela 5 0,1
Total 4968 100

Fonte: SERES - PE

2.1.1.2 Variável escolaridade

No que tange à escolaridade, encontramos as seguintes categorias nos registros do SIC: Analfabeto, Alfabetizado, Ensino Fundamental Incompleto, Ensino Fundamental Completo, Ensino Médio Incompleto, Ensino Médio Completo, Ensino Superior Incompleto, Ensino Superior Completo, Ensino Acima de Superior Completo e Não Informado. A frequência dessas categorias está na Tabela 2.

Tabela 2 - Variável Escolaridade
Grau de escolaridade Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
Analfabeto 405 8,1
Alfabetizado 233 4,7
Ensino fundamental incompleto 2666 53,7
Ensino fundamental completo 259 5,2
Ensino médio incompleto 562 11,3
Ensino médio completo 514 10,3
Ensino superior incompleto 110 2,2
Ensino superior completo 122 2,5
Ensino acima de superior completo 8 0,2
Não informado 89 1,8
Total 4968 100

Fonte: SERES - PE

Como se observa: 53,7% das mulheres, a maioria, possui o Ensino Fundamental Incompleto; 11,3%, o Ensino Médio Incompleto e 10,4%, o Ensino Médio Completo. Ao analisarmos os extremos, percebe-se que o quantitativo de mulheres analfabetas (8,1%) corresponde a quase o dobro do somatório de mulheres com Ensino Superior Incompleto (2,2%), Ensino Superior Completo (2,5%) e Ensino Acima do Superior Completo (0,2%).

2.1.1.3 Variável renda familiar

No que tange à renda familiar, encontramos as seguintes categorias nos registros do SIC: Até um salário, Até dois salários, Até três salários, Até quatro salários, Até cinco salários e Não Informado. A frequência dessas categorias está na Tabela 3.

Tabela 3 - Variável Renda Familiar
Renda familiar Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
Até um salário 2104 42,3
Até dois salários 871 17,6
Até três salários 672 13,5
Até quatro salários 359 7,3
Até cinco salários 24 0,5
Não informado 936 18,8
Total 4968 100

Fonte: SERES - PE

Como se observa: 42,3% das mulheres, a maioria, tem uma renda de até um salário mínimo e 17,6%, uma renda de até dois salários mínimos. O curioso desses dados é que uma quantidade expressiva de mulheres (20,8%), ou seja, quase 1/4 do universo trabalhado possui uma renda de até três ou quatro salários, quando, pelas entrevistas, podemos perceber que grande parte não tinha um trabalho formal e suas rendas vinham do tráfico.

2.1.1.4 Variável quantidade de filhos

No que tange à quantidade de filhos, encontramos as seguintes categorias nos registros do SIC: Zero, uma variação de 1 a 23 e Não Informado. É importante ressaltar que, em razão das diferentes simbologias nos registros dos dados, a categoria 0 (ZERO) pode significar a ausência de filhos ou que não foi informado e a categoria NÃO INFORMADO significa que realmente não foi informado. A frequência dessas categorias está na Tabela 4.

Tabela 4 - Variável Quantidade de Filhos
Quantidade de filhos Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
0 1035 20,8
1 1013 20,4
2 1196 24,1
3 815 16,4
4 404 8,1
5 231 4,6
6 99 2
7 62 1,3
8 44 0,9
9 14 0,3
10 14 0,3
11 5 0,1
12 7 0,1
14 1 0,02
15 2 0,04
20 1 0,02
23 1 0,02
Não informado 24 0,5
Total 4968 100

Fonte: SERES - PE

Como se observa, as mulheres com 1 até 3 filhos figura como a maioria: 60,9%, sendo ainda representativa a quantidade de mulheres com 4 até 6 filhos, ou seja, quase 15%. Se pensarmos essa variável relacionada à variável estado econômico, podemos compreender melhor o real significado da condição socioeconômica dessas mulheres.

2.1.1.5 Variável profissão

No que tange à profissão, encontramos as seguintes categorias nos registros do SIC: Sem profissão, uma variação de 101 profissões diferentes, Outros e Não Informado. É importante ressaltar que, na categoria Outros; foram inseridas as seguintes profissões/ocupações, identificadas nos registros: pobre, razoável, trabalhadora, acompanhante, agente de marketing, artista plástica, ascensorista, atriz, auditora fiscal, auxiliar de estoque, bar-man, bilheteira, bóia fria, cambista, capoteira, caseira, cobradora de ônibus, consultora de beleza, cortadora de cana, desenhista, divulgadora, encarregada, engenheira, escriturária, executiva de marketing, ex-vereadora, farmacêutica, fazendeira, fermentadora, fiscal de loja, fisioterapeuta, florista, frentista, jardineira, jornalista, lavador de auto, limpador de vidros, marchante, operária, organizadora de eventos, padeiro, pintora, policial civil, repositora, representante de vendas, rurícola, sapateira, soldador, supervisor administrativo, tatuador, taxista e tirador de pêlos.

É importante destacar que as variações nas profissões ora escritas no feminino, ora no masculino estão conformes a redação delas nos dados do SIC. Essa variação abre margem à interpretação: foram catalogadas assim por erro, descuido ou porque as mulheres assim as informaram? A frequência das categorias está na Tabela 5.

Tabela 5 - Variável Profissão
Profissão Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
Doméstica 1076 21,66
Do lar 945 19,02
Sem profissão 286 5,76
Comerciante 203 4,09
Estudante 190 3,82
Vendedor 180 3,62
Autônoma 149 3,00
Comerciante ambulante 116 2,33
Agricultora 108 2,17
Manicure 102 2,05
Faxineira 93 1,87
Cabeleireira 86 1,73
Serviços gerais 83 1,67
Garçonete 60 1,21
Costureira 59 1,19
Cozinheira 56 1,13
Outros 53 1,07
Professora 42 0,85
Lavadeira 39 0,79
Profissional do sexo 38 0,76
Recepcionista 34 0,68
Aposentado 30 0,60
Funcionária pública 26 0,52
Balconista 24 0,48
Artesão 23 0,46
Babá 23 0,46
Secretária 21 0,42
Auxiliar de cozinha 20 0,40
Caixa 19 0,38
Catador de lixo 16 0,32
Reciclador 16 0,32
Técnico em enfermagem 16 0,32
Auxiliar administrativo 15 0,30
Pescadora 15 0,30
Promotor de vendas 15 0,30
Empresária 14 0,28
Auxiliar de enfermagem 13 0,26
Camareira 11 0,22
Digitadora 11 0,22
Operador 11 0,22
Auxiliar de escritório 10 0,20
Carroceiro 9 0,18
Corretor 9 0,18
Feirante 9 0,18
Operador de telemarketing 9 0,18
Advogado 8 0,16
Contadora 8 0,16
Representante comercial 8 0,16
Administrador 7 0,14
Comerciária 7 0,14
Enfermeira 7 0,14
Trabalhador rural 7 0,14
Ajudante geral 6 0,12
Atendente 6 0,12
Auxiliar de costura 6 0,12
Doceira 6 0,12
Adestrador 5 0,10
Flanelinha 5 0,10
Promotora de eventos 5 0,10
Agente de saúde 4 0,08
Despachante 4 0,08
Fotógrafo 4 0,08
Office boy 4 0,08
Psicóloga 4 0,08
Vendedora de confecções 4 0,08
Agente de atendimento 3 0,06
Agropecuarista 3 0,06
Ajudante de gráfica 3 0,06
Ajudante de pedreiro 3 0,06
Confeiteiro 3 0,06
Copeiro 3 0,06
Decorador 3 0,06
Eletricista 3 0,06
Gerente administrativo 3 0,06
Pedreiro 3 0,06
Técnico em informática 3 0,06
Técnico em laboratório 3 0,06
Vigilante 3 0,06
Zelador 3 0,06
Açougueiro 2 0,04
Assistente técnico 2 0,04
Auxiliar de marcenaria 2 0,04
Bancária 2 0,04
Dançarina 2 0,04
Embalador 2 0,04
Estagiário 2 0,04
Gari 2 0,04
Gerente 2 0,04
Industriária 2 0,04
Marisqueiro 2 0,04
Motorista 2 0,04
Músico 2 0,04
Negociante 2 0,04
Operador de máquinas 2 0,04
Parteira 2 0,04
Pasteleiro 2 0,04
Publicitário 2 0,04
Tabalhador rural 2 0,04
Técnico em contabilidade 2 0,04
Tosador 2 0,04
Operador de refrigeração 2 0,04
Não informado 384 7,73
Total 4968 100

Fonte: SERES - PE

Gráfico 1 - As dez profissões mais frequentes

Fonte: SERES - PE

Como se observa no Gráfico 1, dentre as 10 categorias mais expressivas, encontram-se: sem profissão, doméstica, do lar, comerciante, estudante, vendedora, autônoma, comerciante ambulante, agricultora e manicure. A maioria da população em análise é de domésticas (21,66% do total), seguida por mulheres do lar (19% do total). Se somarmos o percentual de domésticas com o percentual de mulheres do lar, teremos um total de 40,66% do universo de mulheres sem, ao menos, qualquer curso profissionalizante, visto que, para ser doméstica, não é exigido um curso profissionalizante. Isso certamente está relacionado à variável escolaridade.

2.1.1.6 Variável tipo penal em categorias

No que tange ao tipo penal, encontramos grande variação nos registros do SIC e resolvemos agrupar os tipos penais mais frequentes pelo título estabelecido pelo Código Penal e pela Lei de Drogas, chegando aos resultados expostos na Tabela 6.

Tabela 6 - Variável Tipo Penal em Categorias
Categorias de tipo penal Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
Tráfico ilícito de entorpecentes 1585 31,90
Crime contra o patrimônio 840 16,91
Crime contra a vida 304 6,12
Outros 236 4,75
Crime contra a integridade física 43 0,87
Não informado 1960 39,45
Total 4968 100,00

Fonte: SERES - PE

Como se observa na Tabela 6, grande parte das mulheres está na categoria não informado. Para facilitar a visualização, retiramos a categoria não informado e obtivemos os dados expostos no Gráfico 2.

Gráfico 2 - Percentual em relação aos tipos de pena

Fonte: SERES - PE

Como podemos perceber, as categorias mais expressivas são: tráfico ilícito de entorpecentes (53%), crimes contra o patrimônio (28%) e crimes contra a vida (10%). Destacamos que o tipo penal mais incidente nos crimes contra o patrimônio é o de furto e nos crimes contra a vida é o de homicídio.

2.1.1.7 Variável quantidade de processos

No que tange à quantidade de processos por mulher, encontramos, nos registros do SIC, uma variação de 1 a 26, conforme consta na Tabela 7.

Tabela 7 - Variável Quantidade de processos
Quantidade de processos Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
1 processo 4226 85,06
2 processos 440 8,85
3 processos 169 3,40
4 processos 72 1,45
5 processos 29 0,59
6 processos 10 0,20
7 processos 8 0,16
8 processos 8 0,16
9 processos 2 0,04
10 processos 1 0,02
12 processos 2 0,04
26 processos 1 0,02
Total 4968 100

Fonte: SERES - PE

Como podemos perceber, as categorias mais expressivas são: 1 processo (85,06%), 2 processos (8,85%) e 3 processos (3,40%), ressalvando que a maioria das mulheres que já passou pelo Bom Pastor responde apenas por um processo.

2.1.1.8 Variável bairro

No que tange ao bairro, encontramos, no SIC, registros de mulheres de outros municípios, estados e países, no entanto, trabalhamos com o universo de mulheres pertencentes ao município de Recife. Dentre os bairros do município de Recife registrados, os 12 mais frequentes estão indicados na Tabela 8.

Esse total de 1.134 mulheres pertencentes aos 12 bairros mais frequentes, no município de Recife, equivale à 22,8% do total de mulheres do banco de dados com o qual trabalhamos (4.968) e a 66,2% das mulheres do município de Recife.

Tabela 8 - Variável Bairro
Bairros Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
Centro 211 4,25
Ibura 133 2,68
Santo amaro 125 2,52
Água fria 113 2,27
Boa viagem 108 2,17
Campo grande 88 1,77
Casa amarela 65 1,31
Coelhos 65 1,31
Peixinhos 61 1,23
Pina 59 1,19
Prazeres 57 1,15
São josé 49 0,99
Total 1134 22,8

Fonte: SERES - PE

Para uma melhor visualização, agrupamos os 12 bairros mais frequentes nas 6 RPAs (Região Político Administrativa), conforme Tabela 9.

Tabela 9 - Região Político Administrativa - Recife
Região político administrativa Quantidade de mulheres Percentual de mulheres
RPA 6 416 24,31
RPA 2 343 20,05
RPA 1 335 19,58
RPA 5 210 12,27
RPA 4 207 12,10
RPA 3 200 11,69
Total 1711 100,00

Fonte: SERES - PE

Mapa 1 - Percentual de mulheres presas por RPA - Recife

Fonte: SERES - PE/ Prefeitura da Cidade do Recife

Como podemos perceber no Mapa 1, as RPAs mais expressivas são: RPA 6 (Sul) com 24,31%, RPA 2 (Norte) com 20,05% e RPA 1 (Centro) com 19,58%.

2.1.2 Uma perspectiva analítica: algumas estatísticas

Na busca de explorar, ainda mais, as informações obtidas, resolvemos relacionar algumas variáveis, acima, e chegamos aos índices de aprisionamento por RPA e, a partir de um teste de homogeneidade, chegamos às relações: tipo penal por RPA, tipo penal por etnia e quantidade de prisões por etnia.

2.1.2.1 Índices de aprisionamento

Com base no número de mulheres pertencentes a cada RPA, no ano de 2010, segundo os dados do IBGE e o número de mulheres presas nessas mesmas RPAs no ano de 2010 conforme os dados do SIC, obtivemos os índices de aprisionamento de mulheres por RPA. Logo, o índice de aprisionamento por RPA = número de mulheres presas em cada RPA/total de mulheres da mesma RPA.

Tabela 10 - Índices de Aprisionamento por RPA
Localidade Total mulheres Total de mulheres presas Taxa de prisões
RPA - 1 46280 157 0,34%
RPA - 2 120019 187 0,15%
RPA - 3 164914 116 0,07%
RPA - 4 147984 105 0,07%
RPA - 5 143829 94 0,06%
RPA - 6 206694 176 0,08%
Total 829720 835 -

Fonte: SERES-PE/ IBGE 2010

Gráfico 3 - Taxa de prisões por RPA

Fonte: SERES-PE/ IBGE 2010

2.1.2.2 Resultados a partir de Testes de Homogeneidade

O teste de homogeneidade consiste em determinar se várias amostras ou populações são semelhantes ou possuem características parecidas, no entanto, o mesmo não afirma qual a classe que se destaca entre as demais. Ele, apenas, aceita ou rejeita a hipótese testada.

A partir de alguns testes de homogeneidade, cujo objetivo foi comprovar hipóteses, relacionando a RPA, onde moram as mulheres do Bom Pastor, sua etnia e o tipo penal que as conduziu para o cárcere, obtivemos os seguintes resultados:

a) Tipo penal por RPA

A partir do teste das hipóteses: a frequência dos tipos penais é proporcional em cada RPA (H0) e a frequência dos tipos penais não é proporcional em cada RPA (H1), considerando apenas o município de Recife, através de um teste de homogeneidade com nível de significância de 5% (nível de incerteza), de onde foi obtido o p-valor = 0.01, pode-se concluir que a frequência dos tipos penais não é proporcional em cada RPA. Analisemos a Tabela 11.

Tabela 11- Tipo Penal
RPA Crime contra a integridade física Crime contra a vida Crime contra o patrimônio Outros Tráfico ilícito de entorpecentes Total
RPA - 1 2 12 54 132 135 335
RPA - 2 7 13 77 136 110 343
RPA - 3 1 13 47 87 52 200
RPA - 4 2 13 31 109 52 207
RPA - 5 1 12 36 106 55 210
RPA - 6 5 12 70 191 138 416
Total 18 75 315 761 542 1711

Fonte: SERES-PE

b) Tipo penal por etnia

A partir do teste das hipóteses: os tipos penais estão distribuídos proporcionalmente por cutis (H0) e os tipos penais não estão distribuídos proporcionalmente por cutis (H1), considerando apenas o município de Recife, através de um teste de homogeneidade com nível de significância de 5%, de onde foi obtido o p-valor = 0.00, pode-se concluir que os tipos penais não estão distribuídos proporcionalmente por cutis, ou seja, a incidência de prisão por tipo penal é diferente em relação às etnias, não é proporcional. Vejamos a Tabela 12.

Tabela 12- Tipo Penal por Etnia
Etnia Crime contra a integridade física Crime contra a vida Crime contra o patrimônio Outros Tráfico ilícito de entorpecentes Total
Amarela 1 0 0 0 2 3
Branca 3 12 46 118 39 218
Indígena 0 2 1 3 3 9
Negra 3 15 70 124 149 361
Outras 0 0 4 12 3 19
Parda 11 46 194 504 346 1101
Total 18 75 315 761 542 1711

Fonte: SERES-PE/ IBGE 2010

c) Quantidade de prisões por etnia

A partir do teste das hipóteses: a quantidade de prisões é proporcional à etnia (H0) e a quantidade de prisões não é proporcional à etnia (H1), considerando apenas o número total de mulheres em 2010, conforme dados do IBGE, no município de Recife, através de um teste de homogeneidade com nível de significância de 5%, de onde foi obtido o p-valor < 2.2 e -16, pode-se concluir que a quantidade de prisões por etnia não é realizada de forma homogênea, ou seja, algumas etnias são mais alvo de prisão do que outras. Vejamos a Tabela 13.

Tabela 13- Quantidade de Prisões por Etnia
Etnia Não presa Presa Total
Branca 352005 800 352805
Preta 64454 844 65298
Amarela 8801 5 8806
Parda 400545 3242 403787
Indígena 2073 20 2093
Total 827878 4911 832789

Fonte: SERES-PE/ IBGE 2010

2.1.2.3 Relação entre as variáveis: tempo, número de mulheres presas por RPA e média salarial

Como podemos perceber no Gráfico 4, nos primeiros anos, as RPAs apresentavam um pequeno número de mulheres presas e com baixa média salarial, não alcançando 2 salários mínimos, exceto pela RPA 4.

No decorrer dos anos, o comportamento das RPAs ficou cada vez mais parecido: poucas mulheres presas e um aumento na média salarial. A partir de 2008, houve um aumento no número de prisões e uma diminuição na média salarial. Os anos de 2010 e 2011 apresentam os maiores números de presas com menor renda média.

Gráfico 4 - Relação entre as variáveis: tempo, número de mulheres presas por RPA e media salarial

Analisando conjuntamente esses gráficos e tabelas, podemos perceber um aumento nos índices de aprisionamento de pobres. Os principais alvos do sistema de controle social feminino em Recife são mulheres pardas, com baixa escolaridade, com baixa renda, com pouca ou nenhuma profissionalização, moradoras de bairros mais pobres.

Elas entram no Bom Pastor, em geral, por tráfico e crimes contra o patrimônio. Pelo estudo das RPAs, podemos perceber a frequência dos índices de aprisionamento que, naturalmente, conduz à intensidade do controle social do Estado.

Em todo o Ocidente se punem os pobres, inclusive em Recife. Por mais que essa constatação estivesse entre nossas hipóteses, a vasta análise produzida detalha, com riqueza, a prisão da miséria. Assim como os elementos descritivos da experiência de campo com as entrevistas narrativas ilustram a miséria da prisão, parafraseando Wacquant.

2.2 As mulheres entrevistadas: suas histórias e seus afetos

Ao serem lidas as entrevistas gravadas, pensamos em relatar aquilo que ouvimos, com o objetivo de sintetizar todas aquelas histórias, sem tornar aqueles relatos, sofrimentos e, algumas vezes, denúncias identificáveis. Após algumas narrações daquelas histórias, percebemos o quanto retirar a voz daquelas mulheres, sua forma de sentir e de expressar suas vidas reduzia todo o potencial afetivo de suas histórias, de seus desejos e dores. Por isso, resolvemos expor trechos de algumas entrevistas e possibilitar, ao leitor, esse contato com as mulheres entrevistadas.

As declarações das mulheres do Bom Pastor são marcadas por uma infância de desassitências emocionais, afetivas e financeiras, além de frequentes passagens pela FUNASE. A vida nas ruas e envolvimento com drogas, seja como viciadas, como traficantes ou, com mais frequência, com viciação e tráfico, também é relatada. São pessoas marcadas por déficits, pessoas alvo do sistema prisional2.

2.2.1 O relato de algumas histórias

Relato 1) A primeira entrevistada nos disse que teve uma infância feliz, nada de material lhe faltava, mas sua queda se deu em razão de revolta que sentia do seu marido, pois a espancava muito, e seu padrasto que a estuprou aos nove anos, depois de ter sido estuprada aos 6 anos pelo vizinho, e um pouco também de sua mãe, pelo abandono e omissão quando contou o que tinha acontecido e nenhuma providência tomou. Segundo ela, sua mãe não denunciou o vizinho por medo, pois ele seria um marginal e, quanto ao padrasto, depois de uma briga, se entenderam, o que a revoltou.

Relato 2) Outra entrevistada nos contou que atribui as quedas ao marido, preso por homicídio, que a levou ao tráfico, quando já tinha praticado um assalto. Disse que é difícil ver sua filha mais nova precisando de mantimentos e não ter como suprir. Durante a entrevista, revelou que seus pais são agricultores e têm dificuldades de vir visitá-la e sua filha mora com a avó. Questionada sobre a capacidade ressocializadora do cárcere, respondeu que acredita na ressocialização, afirmando ser um processo de experiência. No entanto, disse que depois da prisão é mais difícil conseguir trabalho fora. Afirmou, ainda, que não sairá revoltada da cadeia, pois a revolta aumenta as chances da pessoa voltar à prisão.

Relato 3) Uma outra nos contou que caiu a primeira vez porque roubou para comprar drogas... vivia pela rua se drogando; já a segunda vez foi para comprar leite para a filha... mais adiante diz que foi para comprar leite e para se drogar também. Em seguida, afirma que há sete meses não usa drogas. Quando perguntamos qual era seu sonho, ela disse que sonhava, e ainda sonha, em ser advogada para tirar muita gente da cadeia, portanto, quando sair da cadeia quer continuar a estudar, trabalhar e cuidar das filhas e não voltar para as drogas. Ela nos confidenciou que nunca trabalhou e que o vício da droga é uma das razões para o retorno ao cárcere. Depois, passou a nos falar sobre a vida na cadeia, disse que o pior de lá é à noite, quando se deseja passear, ir num brega, tomar uma cerveja e não se pode. Afimou que a cadeia é um lugar infernal e se torna ainda pior devido à tranca (24 h por 48). Relata os diversos problemas de convivência que a tranca provoca entre as encarceradas, explicando que reside numa cela com mais vinte mulheres. Quando esteve fora da cadeia, apesar de ter família, vivia sob o vício da droga. Que seu marido nunca a visita na prisão, apenas sua mãe e filhas. Por fim, sugere mais trabalho para que as mulheres possam sair mais das celas e acredita que essa mudança melhoraria a cadeia.

Relato 4) Outra entrevistada nos contou que traficava desde os 10 anos, mas nunca caiu com tráfico. Ela tem 22 anos e três filhos, dois deles moram com a irmã e um com o pai. Disse também que o mais difícil dessa segunda queda é a tranca. Contou também que sonhava em ser advogada e que ao sair da cadeia quer trabalhar.

Relato 5) Esta detenta reclama do tratamento: “somos tratadas como bicho”. Ela está gestante e, inicialmente, pensou em abortar, mas depois desistiu, por medo de morrer no procedimento e, agora, só deseja ter sua filha em casa e poder criá-la. Disse que era filha única de mãe, e que, quando esta faleceu, ela passou a viver com a tia de quem ela gosta muito. Quanto ao pai, embora o conheça, não o reconhece como tal, pois ele nunca a registrou nem lhe deu atenção. Contou-nos, também, que sua mãe a sustentara de tudo o que ela precisava, embora fosse mãe solteira. Atualmente, ela está numa cela de gestantes, com mais 20 mulheres e dorme no chão, pois apenas as mulheres com 9 meses têm o direito de dormir na cama, dividida para duas. As demais, dormem em colchões. Ela nos contou que, por conta de um apagão, houve disparos com balas de borracha, atingindo as gestantes totalmente inocentes daquele apagão. Não sente raiva da sociedade, mas tem raiva dos agentes penitenciários. Ao avaliar sua situação, constata que não mudou nada, que continua a mesma dentro ou fora da cadeia, mas acredita que para algumas pessoas a cadeia pode sim ressocializar.

Relato 6) Esta detenta disse que desde cedo foi rejeitada pela família e vivia pela casa das amigas. Sua mãe vivia bebendo, depois da separação: às sete da manhã ela se dirigia ao bar, às 10 a filha a chamava, pois a mãe era sempre abusada pelos outros. Ela disse que caiu três vezes, sempre com furtos de diversas naturezas. Afirmou que quando chagavam os finais de semana não tinha dinheiro no bolso, portanto furtava para beber cerveja com as amigas, para consumir crack e para alimentar os filhos. Disse que já catou lixo e comida podre na Ceasa. Mencionou que nas duas últimas quedas a experiência da cadeia não a alterou em nada. Ela continuou a mesma, no entanto, afirma que agora será diferente, pois ao sair do cárcere, não quer mais saber de andar enturmada, voltar para as mesmas amizades. Pretende cuidar da filha com 11 anos a fim de compensar o tempo que passou distante. Durante seu relato, afimou: “não fumo mais crack graças a Deus há um ano e dois meses”. Ela construiu uma percepção a respeito do uso do crack e entendeu o quanto isso fez mal à sua vida e à sua família e não quer mais consumir a droga. Ela contou, também, que a vida no Bom Pastor é muito ruim, sobretudo, por conta da tranca e diz: “são 24 por 48”. Disse, ainda, que algumas mulheres saem da cadeia regeneradas, mas na grande maioria não é isso que acontece, pois mesmo quando saem “saudáveis”, que começam a usar a droga, retornam ao cárcere como verdadeiros “cangaços”.

Relato 7) Este relato foi de mais uma viciada em crack, que saiu de casa e começou a roubar desde muito cedo porque ela e seus irmãos apanhavam muito, não obstante, ama o pai. Disse que o irmão e a irmã foram mortos pela polícia, mas acredita que Deus tem um plano para ela e, apesar de tudo, o que está passando no Bom Pastor servirá como experiência. Ela afirma que não gostava da filha e tinha uma relação agressiva com ela por causa do uso das drogas, mas, hoje, sente amor pela filha. Relatou que as duas quedas foram por furto, mas já traficou bastante e hoje não mais. Já trabalhou como doméstica e, ao comentar a respeito da vida na cadeia, disse que, na cela onde mora, as mulheres são lésbicas, mas ela é “do Senhor”. Não fala nada porque não tem dinheiro e nem visita, então, passa fome porque a comida no Bom Pastor é pouca. Ela tem 3 filhas do homem com quem convive, mas não foi visitá-la, nem da primeira, nem da segunda queda, mesmo depois de tudo que teria feito por ele. Sua sogra já foi ao Bom Pastor por duas vezes levando mantimentos. Diz que embora seu companheiro trabalhasse, não traficava, quando bebia a agredia e, inclusive, suas filhas. Ela tem consciência do mal que o crack fez em sua vida, quando dormia na rua, no meio do lixoque comia; afirma que se for para voltar a usar a droga, é melhor não sair da prisão. Roubou por diversas vezes para comprar a droga, além de se prostituir. Disse, por fim, que quando em sua infância, queria ser professora, mas, atualmente, só pensa em cuidar de suas três filhas.

Relato 8) Uma detenta contou que caiu com papelotes de maconha e, durante toda a entrevista, suplicou para que ajudássemos sua filha que é consumidora de crack e está ameaçada por traficantes. Nos confidenciou que, na cadeia, é preciso fazer amizades para se sentir liberta, mas também é preciso ser cuidadosa com as pessoas, pois há gente do bem e do mal. Ela é chaveira e relatou, chorando, o quão é duro exercer essa função. É analfabeta e sabe da ilusão que o crack provoca na vida das pessoas. Nos contou que, aos 12 anos, o irmão tentou estuprá-la e, diante deste fato, ela saiu de casa e passou a viver da prostituição. Teve cinco filhos que conviveram com esta realidade e, atualmente, recebe visitas apenas de uma filha, que a conforta e zela pela sua vida.

Relato 9) Outra detenta revelou que só lembra da sua adolescência a partir dos 14 anos, quando começou a usar drogas e se prostituir, pois sua infância remete-a a ideias de sofrimento. Estudou até a 3ª série e contou que não recebe visitas no Bom Pastor; que na primeira e na segunda queda seus irmãos ainda a visitavam, mas hoje sua família não mas a apóia. Sua mãe está morta e seu pai a despreza. Disse que as três quedas foram devido a roubos para o consumo de drogas, as quais afirma não mais usar. Explica que começou com a maconha, depois com a cola e, por fim, estava no crack. Sofre muito na cadeia, pois dorme de lado e sequer pode se virar. Tem noites que chora demais, que a comida é ruim e que passa muito tempo trancada, e, por isso, já pensou em se matar. Disse que foi desprezada pelo filho mais novo (embora depois tenha dito que só tem uma filha). Seu marido utiliza droga e bebe. Disse que desde as quedas anteriores, até agora, a cadeia mudou muito, pois agora é só tranca, elas ficam só “trancadas feito bicho”. Declarou que não roubava porque precisava, pois morava com a mãe, doméstica e que também já trabalhou, mas por pagarem pouco, resolveu sair. Disse que sua irmã também usa droga e que já chegou a estar presa com ela.

Relato 10) Uma outra entrevistada contou: “Eu queria sair daqui mais pra... por conta da minha saúde né?! Porque aqui é muito difícil também a gente sair pro médico só vai pruma médica da rua, um médico um hospital quando tá num... numa... risco grave mesmo aí eu achava melhor eu tá em casa. Tenho 3 filho com minha sogra. Meu esposo tá preso porque ele foi preso primeiro que eu. Quando eu vim presa, eu vim presa porque eu tava com uma carroça de recicragem né?! Eu vi que meu filho num tinha nada pa cumer, ai eu fui puxar eu fui catar lixo, recicragem na rua pra dá de cumer a meus filhos, aí foi que eu resolvi passar a noite catando recicragem na rua, aí quando foi 7 hora da noite eu tava voltando de afogados com a carroça, foi quando um tenente formado da aeronáutica, reformado da aeronáutica me parou e atirou em mim sem motivo nenhum ele deu um tiro aqui e e um tiro na minha perna aí eu comecei a chorar né?! Foi o que moço, que o Sr. me parou, me pegou aqui, ele disse não que você vai pra Colônia Penal. Não eu já fui pra Colônia Penal porque eu vou voltar de novo? Porque seu marido furtou aqui no prédio uma bomba d'agua e uma briciqueta e você disseram a gente que você tava no meio dele. Eu mesmo não, eu trabalho, puxo carroça. Ó aí minha carroça. Aí ele disse: mentira você anda com a carroça na tapeia, pra tapiar mas você anda com a carroça roubar. Mas não.. Eu não vou andar com a carroça pra roubar o que é dos oto, pra trabaiar, sustentar meus filho. Oxe! faz é tempo que eu tô aqui: 1 ano e 7 mês. Eu vim ver minha mãe em janeiro do ano passado, em 2010. Eu vi minha mãe. De lá pra cá não vi minha mãe mais. Num num vem meus filho me visitar, num vem minha mãe, vem de mês em mês quando ela quer meu irmão também não vem, só tem uma irmã só. Oxe! aqui eu como da... da comida daqui, mai eu já enjoei, passei uns dia sem comer um mês sem comer daqui só como quando as menina me dá um restinho que a visita delas traz. Aí me dá um biscoito, um sabonete preu tomar banho, uma pasta. As menina me dá e aqui nem roupa eu tenho, minha mãe nem roupa trouxe mim. Eu tenho assim umas pareia que a menina que me arrumou umas quatro pareia. Eu visto uma, aí lavo, visto outra, lavo, mai é ruim a gente ficar pedindo coisa aqui na cadeia aos outro, porque os oto tem umas que nega e umas que dá sabe?! Mai eu num... o meu sonho mesmo é ir mimbora pra casa cuidar dos meu filho, 1 ano e sete mês, quando eu sair de casa meu filho tava cum 15 dia de nascido faz 1 ano e 7 meses que eu não vejo meu filho.” Por fim, reclamou muito da tranca e disse que perdeu 4 irmãos, inclusive, que assistiu a morte de um deles. Embora sua mãe a visite esporadicamente, a ama muito e, mesmo dessa forma, é feliz por tê-la por perto.

Relato 11) Outra entrevistada nos contou que tem 26 anos, não tem filhos, estudou até a 5ª série, caiu com tráfico e que a mãe vem visitá-la. Ela nos disse que estuda e que trabalha na cadeia e que isso ajuda a não viver muito a cadeia. Questionada quanto a relação com os agentes, ela disse: “Eles tão no seu trabalho, né?!” Essa foi a entrevista mais curta. No início, quando foi perguntado se podia gravar, ela disse que dependia de como seria a entrevista, do que ela iria dizer.

Relato 12) Outra detenta que disse ter 5 quedas e que ainda pequena ficou órfã de pai e mãe e foi criada por outras pessoas que a obrigaram a trabalhar “limpando mato”. A partir daí começou a roubar, até hoje, segundo ela, para se manter. Disse que caiu com o art. 155 (furto) e que, quando saiu da cadeia, não teve para onde ir, por isso, continuou na “vida errada”, para ajudar os seis filhos e os 16 netos. Afirmou, também, que a cadeia não trata as detentas como seres humanos, mas como “bichos”. Acredita que mudou um pouco da primeira para a segunda queda, mas atribui essa mudança à idade, não ao sistema. Completará 50 anos e isso a ajudou a enxergar os erros que cometia. Reclamou bastante da política de tranca: “somente tranca, que não conversa com as presas, que passa por elas e nem cumprimenta, é como se fosse um monte de cachorro”, que contribui em nada para as presas. Disse que na cadeia tem muita “maloqueira” e que deveria haver divisão entre estas “maloqueiras” e as mães de família. Ela se preocupa desde que entrou na cadeia, há 8 meses, em arrumar algum tipo de trabalho, explicando que necessita para ajudar a manter seus netos. Denunciou que lá faltam médicos e dentistas e que muitas pessoas morrem por desassistência. Alerta que não há repercussão porque os casos são abafados e que ela só vê, de vez em quando, o IML (Instituto Médico Legal) chegando por lá e levando mais um “defunto”. Disse que quando saiu da cadeia não conseguiu emprego, pois a realidade para ex-presidiárias é difícil, foi quando teve que furtar para se sustentar e manter a família, já que dois dos seis filhos estão desempregados. Reclamou, também, da revista vexatória, informando que não há respeito sequer às pessoas mais idosas. Seus filhos reclamam da revista, afirmando que não são “frangos para estarem se abaixando”. Disse que todos os filhos não a abandonaram, estando presentes em todos os domingos (dia de visita), prometendo-lhes que não mais retornaria à cadeia e que sente muita falta dos netos. Afirma que reingressará à sociedade como uma pessoa íntegra e, mesmo analfabeta, procurará um trabalho honesto, como vender pipoca e água mineral numa parada de ônibus. Contou, ainda, que seus filhos não sabiam que ela furtava, somente tomaram conhecimento quando ela foi presa da primeira vez, pois nas duas primeiras vezes que foi para o cárcere mentiu para eles, disse que brigou com um homem e uma mulher, mas após questionamentos a respeito destas “confusões”, admitiu que foi presa devido aos furtos. Nesta última queda , ela furtou um livro de Direito que custava R$ 135,00. Falando ainda sobre sua vida, contou que ficou órfã ainda criança, quando foi morar com os vizinhos que a colocaram num internato. Ela disse: “eu fui presa injustamente”, aí foi que “virei minha cabeça”. Aos sete anos, foi morar com uma tia e aos 10 anos teve sua primeira relação sexual com um soldado do exército, com quem morou durante 30 anos e teve seus filhos. Hoje ele trabalha como motorista em Petrolina e não a ajuda mais. Contou, ainda, que abandonou seu companheiro porque ele a espancava, provocou, inclusive, um abortamento durante uma dessas surras. Aos 30 anos iniciou os roubos. Recebeu incentivo para os estudos, mas o contexto no qual vivia dificultou sua vida escolar. Via pessoas roubando e passou a atuar em conjunto com elas, até resolver roubar sozinha. Relatou tudo que costumavam roubar: sustagem, uísque, queijo do reino... em suas palavras: “só coisa boa!”. Comentou que, antes de ser presa, nunca procurou emprego; afirmou que não têm muitas habilidades, mas sabe cozinhar, arrumar e fazer compras, em suas palavras: “levar coisas para dentro de casa”. Porém não tem experiências curriculares. Disse: “Não, quando eu segurava a bolsa eu perguntava a menina 'é bom fazer isso?', aí ela 'é, é, a gente tem dinheiro, a gente veste o que quer, come o que quer!'. Aí eu digo 'e é?' Aí pronto! Aí eu fui fazer, gostei, me acostumei, não vou dizer que eu não gostei. Teve uma hora que eu comia, comia... mas agora tô presa... comia o que eu queria, do bom e do melhor, usava roupa de marca, dinheiro pra eu sair pra beber, pra eu curtir, eu tava ótimo minha vida, mas, quando a casa cai, vem o sofrimento, agora não quero mais. Não quero não por causa da minha doença também e por causa dos meus filhos. Quem vem pedindo isso mesmo é os meus filhos. Que eu sou uma mãe que tô presa, mas eu sou uma mãe que eu mato e morro pelos meus filhos. Meu caçula tem 23 anos e o meu mais velho tem 33 anos, mas pra mim eles não cresceram, pra mim eles continuam pequenos ainda. Que tudo na minha vida é os meus filhos, que eu mato e morro... ai de quem bulir com meus filhos, eu já disse a eles 'olhe, por roubo vocês nunca mais botam o pé aqui na cadeia, não!' Vocês podem vim na cadeia ainda se um bulir com vocês... que um bulir com vocês, dá uma tapa em vocês, eu endoido, que eles são tudo na minha vida. Aí, pronto! Minha infância foi tudo errado, tudo sofrido, teve nada de bom, foi tudo ruim na infância, até a minha velhice também, tudo de ruim, muita mágoa dentro de mim... mágoa, rancor...” Em outro momento, ela disse: “Porque meus filhos são educado, a educação foi Deus que deu a ele, foi de berço... Que meus filhos nem puxou a mim, nem puxou a ele... porque ele é safado e eu sou safada porque tô presa... porque pra sociedade eu não tenho moral”. Por conta dessa afirmação, o entrevistador perguntou: “A senhora se considera safada?” Ela respondeu: “Eu não. Eu me considero uma mãe de família, uma senhora, mas pra sociedade, eles não olha a gente presa, ex-presidiária assim não. Só olha a gente como marginal... É! Só olha a gente como marginal. Que a sociedade não vai olhar a gente como uma boa pessoa não”. Disse ainda que a cadeia não regenera ninguém, mas sim revolta a pessoa ainda mais. Ela disse que muitas mulheres dizem: “quando sair daqui vou fazer pior e não vou voltar mais”. Disse, ainda, que na cadeia há muita droga e conclui: “Meu sonho vai continuar minha vida, vou mudar minha vida, vou vender água mineral e pipoca e embarcar minha vida, porque eu não quero voltar pra cadeia mais não que isso aqui não é cadeia não, isso aqui é onde o diabo esqueceu as bota. Que aqui ninguém trata a gente como humana não. Nenhum, nenhum, nenhum desses aí, nenhum... se você ver, eles aqui dão, só escuto os barulhos aqui, eles dão tiro de borracha nas mulé, passa quem bateu tiro de borracha, esculhamba... desculpa as palavras, mas eles chamam as mulher aqui de rapariga, de puta. E eles tão aqui trabalhando pra ensinar, pra tratar a gente bem pra sair melhor, mas não! Eles trata muito mal. Eles trata mal demais as presa. As maloqueira não, tá bom, que é maloqueira mermo, né?! mas e as mãe de família? Eu vejo que, uma mulher véia, eu não, que eu já sei as regra daqui. Pronto, eu saí da cela agora porque foram chamar meu nome. Pronto, eu já sei, pegou o café, eu vou mimbora pra cela, toca pra sair, eu saio, eu pego a bóia eu volto. Que eu não vou dar o meu direito de eles, de ser esculhambada por eles, eu não vou dar meu direito. Aqui eu não dou meu direito, eu entro logo, me recolho logo, dizem 'oh, fia! Tu entra logo?', aí eu digo 'eu entro logo, entro que, depois de uma mulher véia eu não vou tá sendo xingada por eles não, esculhambada não. Que eu sei como eles são. Que só trata a gente como bicho. Então o bicho comeu, recuar pra dentro, pra gaiola. Porque agora, como a menina diz, vem os direitos humano, né?!, que os direitos humano vem aqui e até agora não fez nada, fez nada pra gente, não vejo nada melhorar aqui. Só faz é piorar. Eu não vejo melhorar nada. Até agora não melhorou nada. Oito mese que eu tô aqui já e não vi melhorar nada. Tô vendo é piorando, entendeu?! Tomando as coisas da gente, que a comida já não presta, a minha família que traz, a minha família, a família dos outro que dão lanche, biscoito, e eles acharam de fazer greve pra não pegar. É eles que recebem, né?!, pra depois mandar entregar nas cela, aí inventaram isso. Tão dizendo que a gente não vai ter nem visita nos domingo por causa da greve deles, e a gente tem alguma coisa a ver com as greve dele? A greve é deles! A greve é deles, a greve não é da gente não! A gente tamo presas da Justiça, e a Justiça, sei lá, os grandão, mandam cumê aí, é pra gente, aqui tem uma cantina, mas o cumê que é vendido na cantina é o cumê que vem da bóia da gente. O próprio pão que o Governo manda pra gente, se quiser comer assado, é setenta centavos que a gente paga. Que quiser um ovo, é sessenta centavos. É tudo pago. Aí dentro quando faz almoço na cantina, é tudo da cozinha daqui, que o Governo manda pra gente. A cantina num é deles! A cantina é deles, que a cantina num é do Governo, a cantina num é do Governo não, a cantina é deles. Dos asco, os asco ganham dinheiro dos dois lado, ganha do Governo, né?!, de tomar conta das presa, né?!, e ganha pela cantina vendendo cume daqui da gente, que o cume que o Governo manda é pra gente e eles tira, da comida pra botar na cantina pra vender. Assim é bom, eles deviam tá na cadeia, que a gente sofrendo, que a gente tá aqui sofrendo com o que eles tão fazendo com a gente, diminuindo a comida da gente pra botar na cantina pra vender. Isso é um absurdo, o pão vem e pra gente não comer aquele pão murcho, né?!, que é muito pão aí machuca, quando vem muito, né?!, aí se quiser comer assado é setenta centavos com o pão da gente que o Governo manda. Isso existe? A gente pagar porque a gente quer da gente mermo que o Governo manda?”

2.2.2 As histórias e os afetos

Vejamos, agora, nas suas falas e com os seus sentimentos, essas mulheres do Bom Pastor. Nesse momento, reproduziremos alguns trechos das entrevistas, nas falas dos entrevistadores e das entrevistadas. Trechos que consideramos essenciais para compreender aquelas realidades. Para tanto, usaremos “E1” e “E2” para nos referirmos às falas dos entrevistadores 1 e 2 e “Entrevistada” para nos referirmos à fala das mulheres do Bom Pastor. Para cada entrevista aqui trazida usaremos o nome de História.

História 1

Em seu relato, reclamou muito da tranca, contando que perdeu quatro irmãos, presenciando a morte de um deles. Afirmou que tem grande afeto por sua mãe, mesmo sem receber sua visita frequentemente. Confidenciou que já morou na rua e explicou o porquê.

Entrevistada: “Eu queria sair daqui mais pra...por conta da minha saúde, ?! Porque aqui é muito difícil também a gente sair pro médico só vai pruma médica da rua, um médico um hospital quando tá num... numa... risco grave mesmo. Aí eu achava melhor eu tá em casa, tenho três filho cum minha sogra. Meu esposo tá preso, porque ele foi preso primeiro que eu. Quando eu vim presa, eu vim presa porque eu tava cuma carroça de recicragem, ?! Eu vi que meu filho num tinha nada pá cumer, aí eu fui puxar, eu fui catar lixo, recicragem na rua, pra dá de cumer a meus filhos. Aí foi que eu resolvi passar a noite catando recicragem na rua, ai quando foi sete hora da noite eu tava voltando de Afogados com a carroça, foi quando um tenente formado da Aeronáutica, reformado da Aeronáutica, me parou e atirou em mim sem motivo nenhum. Ele deu um tiro aqui e e um tiro na minha perna aí eu comecei a chorar, ?! Foi o que moço... que o Sr. me parou, me pegou aqui ele disse, não que você vai pra Colônia Penal, não eu já fui pra Colônia Penal porque eu vou voltar de novo? Porque seu marido furtou aqui no prédio uma bomba d'água e uma briciqueta e você...disseram a gente que você tava no meio dele. Eu mesmo não! Eu trabalho, puxo carroça. Ó aí minha carroça. Aí ele disse, mentira você anda com a carroça na tapeia, pra tapiar, mas você anda com a carroça pa roubar. Mas não...eu não, vou andar com a carroça pra roubar o que é dos oto, pra trabaiar sustentar meus filho. Oxe, Faz é tempo que eu tô aqui, um ano e sete mês. Eu vim ver minha mãe em janeiro do ano passado, em 2010. Eu vi minha mãe de lá pra cá, não vi minha mãe mais...num vem meus filho me visitar, num vem minha mãe, vem de mês em mês quando ela quer, meu irmão também não vem, só tem uma irmã só. Oxe, aqui eu como da...da comida daqui, mai eu já enjoei, passei uns dia sem comer, um mês sem comer, daqui só como quando as menina me um restinho que a visita delas traz, aí me dá um biscoito, um sabonete preu tomar banho, uma pasta, as menina me dá e aqui nem roupa eu tenho, minha mãe nem roupa trouxe mim, eu tenho assim umas pareia que a menina que me arrumou umas quatro pareia, eu visto uma, aí lavo, visto outra, lavo, mai é ruim a gente ficar pedindo coisa aqui na cadeia aos outro, porque os oto tem umas que nega e umas que dá, sabe?! Mai, eu num...o meu sonho mesmo é imimbora pra casa, cuidar dos meu filho, um ano e sete mês quando eu saí de casa meu filho tava cum quinze dia de nascido, faz um ano e sete mese que eu não vejo meu filho.”

História 2

Foi relatada uma infância difícil, confidenciado que seu pai já foi preso e que ela “caiu” com associação para o tráfico internacional e, ainda, que a “cadeia é só tranca” e evitou falar muito sobre o que acontece na prisão. Relatou que o marido a visita esporadicamente. Contou, também, que quando saiu da primeira prisão, trabalhou por 8 meses na casa de uma senhora que não teve preconceito pelo fato dela ser uma ex-presidiária, diferentemente de sua filha, que não a aceitava, pelo passado, tatuagens e piercing. Inobstante, afirmou ter contato com seus filhos.

E2: Me diga uma coisa, como você se percebeu depois que você “caiu” aqui a primeira vez e foi pra rua? Como é que você se percebeu lá fora?

Entrevistada: Quando você cai aqui dentro, jaulado, ?! Que nem um passarinho... pra lá e pra cá é um quadrado só aqui.

Entrevistada: Você vê a mesma cara, você sai, é o mesmo canto. Agora quando tu sai no mundão, não! É um ar diferente, entendeu?! É um ar diferente, conviver na sociedade é que já é difícil. Pra conviver na sociedade é que é difícil.

E2: Por que é difícil?

Entrevistada: Porque você vai arrumar... um médico ali fora é meio difícil, pra arrumar um serviço é meio difícil, estudar é difícil, eu já fui procurar também, estudo pra mim, entendeu?! Ah, porque tu não tem o papel, tirei o meu daqui pra levar, não adiantou não, mas fazer o quê? Fazer o quê, ?!

E2: Aí quando tu tava lá fora o que te fez retornar?

Entrevistada: Não me fiz retornar não, dessa vez eu vim sem nada. Eu vim com meu crime. Eu tava no lugar errado, no momento errado e fui pegar ele, dessa vez eu vim sem nada.

E1: Ele que tava?

Entrevistada: Ele que tava. Aí como eu era ex-presidiária, quando puxaram a ficha... me ferrou.

Entrevistada: Acabou que não tive tempo de falar nada...

E1: Assim, o que mudou pra você na primeira e na segunda queda?

Entrevistada: A [fulana] na primeira queda foi uma pessoa, assim, calma e paciente. Na segunda queda num tô levando mais nem um xingo na cara, eu tô levando... Você fica revoltada!

E1: E o seu atual marido, você conheceu ele quando saiu?

Entrevistada: Quando eu saí. Quando eu saí daqui.

E2: E ele vem te visitar?

Entrevistada: Vem.

E1: E ele trabalha?

Entrevistada: Trabalha normal. Ele ganha de fazer alguma coisa, menino, eu num fiz nada e tô levando a culpa!

E1: E ele é daqui?

Entrevistada: É daqui.

E1: Aí ele vem todo domingo?

Entrevistada: Não, de vez em quando ele vem, nem todo domingo, vez em quando não...

E1: Só ele que vem?

Entrevistada: Só ele.

E2: O que é que é bom e o que é que é ruim aqui?

Entrevistada: Aqui é bom porque tem escola, ?! Tem tele aula aí, tem televisão nas cela, ?! Nós fica um pouco distraído. Tem os dominó, nós fica jogando... aí fala do processo, uma da outra, como foi, quando alguém vai pra audiência. Vou embora! Chega lá... de alvará nós fica feliz.

E2: E o que é que é ruim?

Entrevistada: É o que eu já falei, é mais eles.

E2: Por quê?

Entrevistada: Porque eles maltrata a gente é muito... fica xingando. E quando você vai pro Japão, você vai apanhando. Aí quer que nós fica feliz num canto desses? Não tem como, né?! Aí revolta as presa todinha.

E1: E o que é que faz ir pra o Japão?

Entrevistada: Quando quebra a câmera... porque são... é 8 (oito) câmera, entendeu?! Tem no corredor da Boa Viagem e tem na favela que sempre tem câmera pra olhar. Tem a cantina que não é nada bom... não vende quase nada! A bóia, as mulher lá, quando xinga a gente e xinga mesmo! E pra eles, pra pegar a bóia ainda tem que olhar pra parede, andando olhando pra parede, não pode nem olhar pra cara deles. Você fica com raiva, ?! Vai estressando a pessoa... vai mudando a gente mesmo, isso aqui.

E1: Então, nessa segunda vez, tá menos calma?

Entrevistada: Agora eu tô mais calminha, ?! Só se alguém me tirar do sério! Eu tô muito calma, na primeira queda minha, oxe... já virei muito essa cadeia de ponta cabeça. Eu já botei fogo, já entrei em rebelião, eu tenho uma marca aqui na perna de bala de borracha.

E1: Você tentou fugir?

Entrevistada: Não.

E1: Nunca tentasse fugir?

Entrevistada: Não, pra que fugir? Não fui eu que errei? Só queria pagar o meu erro. Pra que eu vou fugir? Se eu fugir é pior, vou pagar o dobro. O juiz não dá chance pra nós depois. Se eu não fazer direitinho, por onde eu achar que tá direito pra mim, também não vou fazer o errado, né?! Eu tenho que pensar duas vezes antes de fazer uma coisa errada agora.

E1: O quê que você espera quando sair daqui?

Entrevistada: Mudar muito, ?!

E1: Em que?

Entrevistada: Em termo de tudo na minha vida, quero voltar a estudar, ser alguém na vida novamente. Ser reconhecida na sociedade, ter respeito...

E2: Hum...

Entrevistada: Não, é porque a gente tá com uma tatuagem que não tem respeito, não tem respeito.

E2: Oh, qual é teu sonho, agora? Hoje, qual é o teu sonho?

Entrevistada: Ir embora. De muitas é ir embora, ?!

E2: O que você acha que você mudou quando você caiu a primeira vez que teve aqui e depois saiu, quando você saiu você acha que algo interno em você mudou?

Entrevistada: Rapaz, eu vou dizer pra tu novamente. Sabe por que mudou? Porque eu fiquei mais calma, que nem na rua eu era calma.

E2: É?

Entrevistada: Eu era possessiva demais. Eu era muito possessiva, muito ruim. Falar duas coisas pra mim não, que eu já ia pra cima, tava nem aí; agora não, agora eu paro, penso, refrito o que eu vou dizer, o que eu não vou dizer. O que eu vou querer falar, o que eu não vou querer falar, entendeu?! Porque quem trabalha lá dentro, também tem que saber trabalhar com eles, entendeu? Se falar pra mim: ó, é assim, tocou, é hora de entrar! Eu entro, entendeu? Na hora do baculejo, vai ter baculejo! Eu saio...

E1: E lá fora, assim, quando você saiu depois daqui, como foi você lá fora? O que aconteceu? Você não conseguiu emprego?

Entrevistada: Não, trabalhei na casa de família, fiquei 8 (oito) meses trabalhando na casa de família.

E1: Mas você ficou um ano e oito meses na rua, ?!

Entrevistada: Oito meses fiquei na casa de família, depois saí.

E2: Pedisse pra sair?

Entrevistada: Não, porque já era uma senhora de 89 anos, já não dava mais, entendeu?! Ela já ia ser internada, então pra mim, não dava mais. Aí, vai continuar não, que ela vai ficar no hospital e lá ela vai ter tratamento. Vai ter uma mulher já cuidando dela, não vai precisar mais de mim, entendeu? Quando ela quiser me ver eu ia lá ver ela. Mas eu gosto muito dela, até hoje, não sei se ela tá viva ainda, entendeu?! Não sei se ela tá viva. Se ela tiver viva um dia vou lá ver ela, com certeza vou ver ela porque ela me ajudou muito quando eu saí daqui, ela me deu serviço, ela não quis saber se eu tinha tatuagem ou não, seu deixei de ter porque a outra filha dela não gostava não. E ela não, ela foi uma pessoa que me ajudou do jeito que eu era. Eu falei pra ela que eu fui presa, mas tem gente que fala assim: fui presa!

E1: Ela sabia.

Entrevistada: É porque eu contei a ela, agora a outra num aceitou não, nem o piercing na minha língua eu não mostrava eu tinha que tirar tudinho. É muito preconceito.

E1: Você tem contato com teus pais?

Entrevistada: Tenho.

E1: E seus filhos tão com quem?

Entrevistada: Com a minha mãe, também tenho contato com eles.

E1: Ah... Você tem quantos irmãos?

Entrevistada: Somos seis, era pra ter sete. Eu e a outra. Aí a outra faleceu quando eu tava grávida da minha filha, ?! Da minha segunda filha, ai faleceu minha irmã.

E2: E teus filhos, vem te visitar também?

Entrevistada: Não, não gosto que nenhum venha, não gosto. Ele sabe que eu tô presa porque fui eu que falei, mas nenhum quer vim me visitar aqui não.

E2: Eles dizem o quê?

Entrevistada: Eles num diz nada só faz: mãe, a senhora vai sair logo daí, ?! A senhora não faz mais nada errado...

E1: O quê que você deseja pra eles?

Entrevistada: Tudo de bom na vida deles, ?! Que eles continuem os estudos deles, que não faça a mesma coisa que eu fiz de errado, preste atenção nas coisa quando minha mãe falar eles escuta bem. Eu falo muito com eles, muitas coisa que eles pergunta eu respondo.

E1: Tudo? Conta tudo?

Entrevistada: Tudo. Até que eu já tive envolvimento com uma mulé eu já contei pra ele.

E1: Aqui dentro?

Entrevistada: Aqui dentro. Não escondo nada da minha família não.

E1: O que fez você mudar?

Entrevistada: De homi pra mulé?

E1: É.

Entrevistada: Porque minha primeira queda foi por causa de um homem aqui dentro. A minha raiva todinha foi por causa de um homem, entendeu?! E ele ainda tá preso.

E1: E a segunda vez que tu caiu?

Entrevistada: Tô com ninguém, graças a Deus! Só tô com homem agora. (risos)

E1: E .. e.. passasse quanto tempo com ela aqui?

Entrevistada: Fiquei só uns cinco meses só. Porque... não dava mais certo...

E1: Foi mais por raiva de homem?

Entrevistada: Não, se eu falar assim pra tu que foi muito por raiva, não! Foi carência também. Aqui, nesse canto, a gente tem carência, também. Pra fazer um encontro aqui demora um ano. É mais fácil uma mulher vim da rua fazer um encontro aqui dentro que na hora eles assina. Agora pro homem não. É mais complicado, tem que ter endereço, quer saber se já viveram junto mesmo, entendeu?! É um processo mais longo do que uma mulher.

E1: E o que representa pra cadeia ter uma mulher na cadeia? Você, por exemplo, quando tinha seu relacionamento, o que representava pra vocês aqui dentro?

Entrevistada: O que representa pra nós aqui dentro?

E1: É, é.

Entrevistada: Que é sapatão, que é entendida... tem umas que diz assim, quando entra aí ó, eu não faço amor com nenhuma mulé, quando vai ver, não dá nem 3 dias. Eu falo: ué... tu num faz sabão com uma mulé, tu num faz nem amor com uma mulé, tá com a mulé já... Eu falo! Quando eu vejo, oxe...

E1: Me diga uma coisa, tu acha que o teu sentimento em relação a sociedade mudou da primeira pra segunda queda?

Entrevistada: Não sei, quando eu sair agora é que eu vou ver, ?! Porque... não vou falar pra tu uma coisa que eu não vou saber agora, mas quando eu por meu pé pra fora, eu posso te responder, um dia vou encontrar vocês lá fora e dizer: óia, mudou muito...! Entendeu? Mas agora não posso responder isso aí, como vai ser daqui pra fora, porque aqui dentro já tá um veneno. Então não posso dizer: ah, vai tá uma maravilha lá fora, não pode dizer... mais alguma coisa?

Entrevistada: A gente quando é presa a primeira é a mesma coisa da segunda, não adianta não, não muda não, é muito preconceito, não adianta. Você pode tá aqui com uma boa fé de querer saber muita coisa da gente presa, tá bom. Primeira vez, segunda vez... Agora pergunte pra essas pessoas quando foi pra rua: porque voltou? Deram serviço? Não! Fecharam a porta na cara da pessoa! Nem deram uma chance pra pessoa respirar: eu vou fazer direitinho, vou por onde der pra mim ir! Tem muita gente que rejeita, fecha a porta logo! Nem quer saber! Aí tu quer que a gente ver a vida de um jeito, não tem nem como. Se a sociedade aí fora deixasse abrir as portas, ?! Muitas aqui não vinha praqui mais não.

E1: Você acha, então, que a questão do trabalho é uma coisa que praticamente o que define o retorno?

Entrevistada: É, é.

E1: É isso?

Entrevistada: É, é, agora tem umas que faz por safadeza mesmo, não vou mentir pra agradar.

E1: Mesmo com trabalho, volta?

Entrevistada: É, é.

História 3

E1: Como é que é da primeira vez que tu caísse aqui? Por quê?

Entrevistada: Por causa de droga.

E1: Mas assim, tu começou a traficar por quê?

Entrevistada: A família, quano meu marido foi se bora, deixou o menino pequenininho. Tava com o menino. Ele ia fazer quato ano ainda. , eu sozinha dento de casa procurava comida. Todo mundo virava as costa. O pai dele tava por aí, até hoje mermo quem dava comida dento de casa sou eu. Aí tô quereno ir me bora, ?!

E1: Fala um pouco da tua vida.

Entrevistada: A minha vida, de um dia pra cá, desde quano eu nasci?

E1: É?

Entrevistada: É melhor num ter nascido. Porque meu pai quano foi ficano quente deixou minha mãe paralítica.

Entrevistada: Uma facada que ele deu assim, dento da gordura, que ela ficou e com derrame. Aí, tem um braço que não funciona. Eu, meus irmão, minhas 3 irmã e eu agora que os outro morreu tudinho.

E1: Quantos anos aconteceu isso?

Entrevistada: Agente tava com 7 ano de idade.

E1: Aí tu fizesse o quê? Tu estudava? Tu fazia o quê?

Entrevistada: É. Estudava. Eu apanhava papelão, eu saía pedino esmola pelo meio da rua pra poder ajudar meus irmão. Minha mãe passou quase 3 ano numa clínica, que meu irmão mais velho pagou pra poder ela ficar internada.

E1: Aí quando você começou a traficar?

Entrevistada: Tava com pai dos meus filho. Ele começou a querer tirar ideia, aí eu conheci um rapaz vivia de vida errada. Aí comecei junto com ele.

E1: Com quantos anos tu começasse?

Entrevistada: Tava cum 12 pá 13 ano, né?! Mas depois eu me afastei do mundo, das coisa errada fui, morar com outo rapaz. Quano me separei do pai dos meus menino já fui fazer tudo de novo.

E1: A cadeia tem diferença?

Entrevistada: Tem, e esse seu, seu... quereno me buscar pra me prostituir. Sei eu como é o nome dele. O plantonista que num mais aqui já foi se bora que agente fez de tudo até tirar ele daqui, oxe. Quano sair daqui vou fazer pior.

E1: Por que, esse é o pensamento de quem tá aqui?

Entrevistada: Vou fazer pior.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque a pessoa chega aqui dento, num tem oportunidade por causa de que num tem oportunidade, num tem nada na vida pra que? Num tem o que perder não, mas tem mais o que? Tô dento da cadeia já.

E1: E se sair de novo?

Entrevistada: Volta tudo de novo.

E1: Num tem problema não? Tu num fica com medo, não, de voltar pra cá? Tu tem medo hoje?

Entrevistada: Eu tive medo da primeira vez que eu num sabia o que era. Aí, quano cheguei aqui, da primeira vez, muita gente fica com medo, mas depois você se acostuma com aquilo ali.

E1: E o que é o Bom Pastor?

Entrevistada: O que é? O terror da vida da pessoa e ainda mais o Bom Pastor não é os elementos que ficam aqui dento dele. A pessoa num tiver paciência, meu Deus! Nada dá pessoa.

E1: Mas vê só, é um terror e vocês quando saem pensam em voltar?

Entrevistada: Em voltar mai por causa de que? Chega na rua procura emprego. Procura um canto, procura tudo, nada encontra e qual a chance, aliás, uma só não, né?! Duas matar pá num morrer e traficar pá sobreviver que no meu caso, né?! Hoje matar, matar pra poder robar o que a pessoa tem eu não. Eu matava pá num morrer porque a vida no tráfico.

E1: O que impõe medo?

Entrevistada: Até agora, até agora eu num achei ainda.

E1: Tu tem mais medo de ser morta pelo traficante ou de ser pega pela policia?

Entrevistada: De nenhum dos 2 pra falar a verdade. Nem tenho medo da polícia nem tenho medo de ladrão. Porque eu já tenho marca de tiro, já levei tiro, já dei tiro, num tinha medo de morrer, né?!

E1: Já matasse algum?

Entrevistada: Pá num morrer já. Não, agora, dento da cadei, a graças a Deus. Somente por tráfico lá fora.

E1: Como é que foi?

Entrevistada: Foi besteira quano agente tava trabalhano.

E1: Eles foram mexer no trabalho?

Entrevistada: É... queria tomar as coisa de mim. Trabalhava junto com fulana, aí fui obrigada, aí fui eu e outro rapaz que tava comigo pá num mexer nos menino que tavam vendeno as coisa com agente.

E1: E se teu filho chegasse hoje e dissesse: eu vou traficar. O que você diria a ele?

Entrevistada: O que eu digo sempre, que disse a senhora era pá ter ido se bora oxe. Eu vou montar uma banca mim lá fora e vou traficar. Aí, eu disse a ele o que eu vou dizer a vocês agora: a partir do momento que você tomar essa atitude, esqueça que eu sou sua mãe. Eu criei eles. Nunca viram nada de errado meu. A casa deles tão aqui, aqui em Olinda, ali num é Olinda é Santo Amaro. No dia que eles chegaram em Santo Amaro arrumava minhas coisa .Eles num via nada, podia ter 10 home lá dento bebeno, conversano, agente brincano, quano vinha, lá vem eles, eles saíam pela porta de trás, iam se bora. Quando eles entravam dento de casa, já tava normal. Tava aqui com os menino bebeno, eles foram se bora. Agente tava tomano uma. Ah tá certo, pronto mais eles nunca viu.

Entrevistada: Vendia porque num tava fazeno nada, só perturbar mermo é... gostar de coisa que me aventura, né?! Porque lá tem a poliça, tem que sair na carrera, aí só de viver de aventura, aí eu tinha que ir era acostumada a viajar.

E1: Tu trazia?

E2: Tu foi pega aqui mesmo?

Entrevistada: Não, não por incrível que pareça viajei varias vezes nunca fui pega com muitcha coisa. Fui pega com 50 pedra de crack que eu inventei de preparar pra vender no dia do show de Ivete Sangalo no dia 19 de março.

E1: E o povo comprava pro show, é?

Entrevistada: Comprava.

E1: Quando chega aquela época de show aí o povo...

Entrevistada: É, ali ele compra, ali eu tava com um negoço, com uma caixa de chocolate, é eles se esconde dento do mangue. Filhinho de papai parava o carro com aquela lata de Red Bull aí comprava 2, 3 peda ficava fumano, lá dento do mangue, dento do carro dele, ficava tudo estirado.

E1: Tu vendia, tu pensava o quê? Assim...

E2: Qual a sensação?

Entrevistada: De ganhar dinheiro.

Entrevistada: Depois que meu menino começou a fumar aí eu comecei a tumar raiva. Ele agora deixou.

E1: Tu num imaginava não? Imagine se fosse teu filho? Quando tu vendia tu num pensava nele não?

Entrevistada: Não. Agora depois que eu vim pá cocaína pros carinha que tem lá na PAE só eu tinha 4 boca lá em Santo Amaro.

E1: Qual é o faturamento no dia?

Entrevistada: Do dia? Do dia, do dia tirava 2000, 3000 conto no dia.

E1: De uma boca?

Entrevistada: Não, das quato.

E1: Das quatro.

E2: 3000 reais por dia.

Entrevistada: É por dia 3000, 4000.

E1: Só pra você ou pra boca toda?

Entrevistada: Metade minha pra quem trabalhava também.

E1: Os avões.

E1: Dava 500 reais de salário.

Entrevistada: Pra mim ? pra mim dava mais.

E1: Pra você dava quanto?

Entrevistada: Eu pegava quase 800, era só cachaça num fazia nada socada dento de casa.

E1: E deixa eu te perguntar outra coisa

Entrevistada: Aí meu filho começou a fumar, aí eu comecei a ter raiva do tráfico. Num vendo nunca mais é por isso que eu tô dento da cadeia traficava aqui dento.

E1: Aí por isso tu parou de traficar aqui dentro?

E2: E aqui dentro faturava quanto?

Entrevistada: Quando as menina tavam com dinheiro agente tirava por semana 2000, 3000.

E2: Pera aí, livre?

Entrevistada: Livre.

Entrevistada: Não, tinha que pagar 1200 era a droga e pá quem butava pá gente.

E1: De lucro você tinha quanto?

Entrevistada: De lucro eu tinha 1000, 1200.

E1: Por semana.

Entrevistada: Só pra mim, aí dava 400 reais pra minha filha fazer as compra. Aí dava 50 reais pá cada um pá poder fazer o que ela tava precisano e o resto ia pu banco que eu num precisava de dinheiro aqui dento. Dinheiro tinha aí tu tava que eu pegava dava pra elas.

E1: E agora tá sem... mas você parou, aí aqui parou também ou tem outras pessoas?

Entrevistada: Aqui tem, eu é que num quero.

E1: Você é que tá optando por não fazer, quer dizer que num acabou a droga ai dentro não?

Entrevistada: Não. Eu é que não quero é decisão minha, não só por causa do meu filho, né?! Porque tô mais pá ir embora do que ficar na cadeia.

E1: Compensa?

Entrevistada: Pela uma parte sim, por outra não.

E1: Compensa vim pra cá?

Entrevistada: Pela uma parte sim, por outra não.

E1: Qual parte sim, qual parte não?

Entrevistada: A parte de que se a pessoa no caso o objetivo for eu vou fazer aí, vou ganhar dinheiro aqui e ela num souber o dinheiro só, num tem concorrente, ninguém tem como vim me matar, ?! Segundo lugar se só for faça, num pode fazer nada porque não conhece o sistema no caso eu passei 8 mese lá na outa cadeia cheguei aqui eu soube o sistema dela, mas ei que me afastou do sistema dela o sistema dela tá o que agora um bucado de policia corrupto, um bucado de maloquero aqui dento, muita policia corrupta.

E1: O que é maloqueira?

Entrevistada: Maloquero, que tá de maloqueragem, quer tá discutindo boca com um de um prato, quer espancar outro por causa de qualquer coisa, quer bater boca com a poliça, gente do lado de fora aí a poliça vem e pega, vem outro acha graça fica por aí a fora o tempo todo essas brincadeirinha.

E1: Mas compensou a quantidade de anos que você passou na cadeia? Compensou ter vindo?

Entrevistada: Com toda certeza do mundo se olhar pros quatro canto e sair daqui agora olhar pros quatro canto num ver meus filho com nada, com certeza voltaria.

E1: Qual a primeira coisa que você vai fazer quando sair daqui?

Entrevistada: Primeira coisa parar um pouquinho pá poder organizar meus documento.

E1: Certo. A segunda?

Entrevistada: A segunda correr atrás do pró-jovem que tem daqui da Colônia porque eles dão trabalho pá detenta se for no caso eu tenho esse objetivo eu num conseguir nada aí vou correr atrás de que, de um maior pra me dar mercadoria pra vim trabalhar pra voltar até dia de voltar pra cadeia de novo.

História 4

Entrevistada: Ah, meu pai abandonou os filhos novinho, aí daí eu fui pra rua, aí pronto! Meu padrasto não presta também.

E1: Quando teu pai te abandonou tu foi pra rua...com quantos anos?

Entrevistada: Fui pra rua porque eu não gosto de dele, não! Meu padrasto já tentou me torar, já. Eu ia matar ele, eu só ia me vingar mesmo se eu matar ele, aí pra não fazer uma besteira com ele aí eu fui pra rua mesmo.

E2: Por que as três quedas? E porque tu roubava?

Entrevistada: Pra curtir minha lombra, pra beber, comprar roupa, calçados, me ajeitava.

E1: Tu usava o que além de crack?

Entrevistada: Crack, maconha, cola...tudo.

E1: Tu saísse de casa com quatorze?

E2: E porque tu não gosta do teu padrasto?

Entrevistada: Porque não gosto, quando ele bebia, aí a gente brigava muito. Ele era afim de me cumer também. Aí minha mãe saía pra trabalhar não sabia, aí a primeira vez que minha mãe soube ele foi preso, soltou e tá lá em casa, vivendo. Mas ela sabe que ele fica me cantando ainda, aí eu fui pra rua.

E1: Mas, como foi a primeira vez?

Entrevistada: A primeira vez? Minha linda, eu não sei, não! Foi um pau arretado dos dois. Aí eu tive que pegar meus irmão, meu irmão novinho, menor do que eu e correr, ir pro posto policial chamar a viatura. Depois que eu cheguei em casa o pau ainda tava rolando. Ela se acordou com ele me alizando. Aí ela viu.

E1: E me diz uma coisa, o que há de pior aqui na cadeia?

Entrevistada: Tranca, né?! Tranca. Tranca, mesmo. Às vezes a pessoa tá morrendo lá e eles não vão buscar. A pessoa já ta passada, pra pessoa vim pra cá pra enfermaria.

E1: Como é o domingo aqui no Bom Pastor pra quem não tem visita?

Entrevistada: Pra quem não tem? Normal. Sai pra fora se quiser, se não quiser fica lá dentro trancada... converso com um, converso com outro. Um me dá um real, outro me dá dois... e assim vai. Na cadeia eu não tiro onda não. Na rua eu tiro, mas aqui não.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque não. Já tô presa, já. Tirar onda aqui por quê?! Aqui tá tudo presa também.

E1: E tu não vai mais tirar onda?

Entrevistada: Hã? Quando eu chegar lá fora eu tiro onda, meu véi. Pegar uma pessoa que me deve. Pegar de quem me deve, ou paga pelo amor ou pela dor. O que eu puder fazer eu faço. Me livro dela todinha, corto ela em pó. E quando os homi caí pra cima, eu digo que ela me cortou também, pronto.

E1: Como é que tu percebe a relação dos agentes com as detentas?

Entrevistada: Olhe, quer respeito, né?! Se não respeitar eles, claro que eles vão pegar e levar pra disciplina. Tem disciplina se tiver comunicação. É o trabalho deles, né?! Tem que respeitar os trabalhos deles. Tocou, tem que entrar... não pode ficar aqui fora. Se pegar aqui fora...

E1: O que é que eles consideram desrespeito ao trabalho deles?

Entrevistada: Desacato, quando a pessoa vai esculhambar, né?! Manda entrar, não entra. Fica tudo tirando onda aí no banco, não entra. Aí pronto, já sabe, né?!

E1: Já fosse pro castigo?

Entrevistada: Já, muitas vezes.

E1: Por quê?

Entrevistada: Pedra, uma pedra no ouvido que eu fui esconder.

E1: Botasse uma pedra no ouvido?

Entrevistada: Foi, pra esconder. Entrou pra dentro...(risadas). Eu tive que parar no hospital da rua.

E1: Tu tinha algum sonho quando tu era criança?

Entrevistada: Sonho?

E1: É. Tu tinha vontade de ser alguma coisa?

Entrevistada: É tanto do sonho que eu já tive, que eu...

E2: Qual era teu sonho?

Entrevistada: Ai, meu Deus! (risadas) E eu vou me lembrar, é?

E1: E hoje, tu tem algum sonho?

Entrevistada: Não. Tenho nenhum sonho não.

E1: Tem nenhum sonho não?

Entrevistada: Não. Só faço dormir e acordar.

E1: Desejo?

Entrevistada: Desejo?

E1: Vontade?

Entrevistada: Vontade é de ir membora pra rua.

E1: O que é que tu mais sente falta da rua?

Entrevistada: Da rua? Minhas doideras mermo.

E1: O que são essas doideiras?

Entrevistada: Muita cachaça, tomar uma dose bem massa. Sair por aí andando. Ver meus amores também.

E1: E teus amores vem te visitar?

Entrevistada: Vem nada, menino... é amores, passa-tempo. É homem que nem copo descartável... é, é, eu uso e jogo fora.

E1: Tu caiu três vezes, certo. O que a liberdade significa ao sair da primeira e da segunda?

Entrevistada: Liberdade é ficar na rua, ?! Ficar à vontade, ?! Ir pra uma praia, ficar de biquíni.

E1: Qual foi a primeira coisa que tu fizesse quando saiu daqui?

Entrevistada: Fui pra favela comprar pra lombrar bem muito.

E1: Na primeira?

Entrevistada: Lá pros “Coelhos”, então. Foi. Fumei todas que eu tinha direito... fiquei daquele jeito... depois de uma semana que eu fui pra minha casa.

E1: Quando tu sair daqui o que tu pretende fazer?

Entrevistada: Ficar no esquenta, ficar no esquenta... vou aprontar muito, porque o bicho ta pegando lá fora.

E1: Qual é a primeira coisa que tu quer fazer quando sair daqui?

Entrevistada: Quando eu sair, eu vou lá na minha casa, ver minha mãe, dá um abraço e depois eu vou pra rua. É...

E1: Por que o bicho ta pegando lá fora?

Entrevistada: O mata-mata arretado...

E1: É? Como é que tu sabe?

Entrevistada: Oxen... e não tem TV, não é... pra assistir? É, a gente vê folha também, jornal...

E1: Matando onde?

Entrevistada: Mantando... mataram já uma agora há pouco: a que matou as duas irmã, uma delas era presidiária aqui também. Soltou, chegou lá e morreu.

E1: Qual é a tua área?

Entrevistada: Dois Carneiros. Mai eu moro em todo canto. Em todo canto eu moro.

E1: Mas onde é que tu agia, mesmo?

Entrevistada: Tinha não, cada dia num era um certo...João de Barros, Coque, os Coelhos, cidade, Boa Vista, Treze de Maio, em todo canto eu ando. Vou pra Encruzilhada, Boa Viagem, pro Pina, em todo canto. De pés, até de madrugada. Na madruga... empapuçados, matando perto de mim.

E1: Aconteceu isso onde?

Entrevistada: Oxen, por aí, nas favelas. Já fui estupada, já fui estupada, já tentaram me matar, já.

E1: Por que tentaram te matar?

Entrevistada: Atiraram em mim em cima de uma moto, tudo na rua... eu fui acordar em coma na cama da restauração... tenho mais de trezentas entradas naquela restauração. Todo mundo ali já me conhece, chego lá: denovo essa menina! Afogada, na maré... na praia também. Caí de uma ponte pra baixo... tudo isso. Já fui acordar no hospital.

E1: Por que tentaram te matar?

Entrevistada: Estrupo, né?! Estrupo, faca no pescoço, pedrada, carro...

E1: Mas sem motivo?

Entrevistada: Sem motivo. Tem muita maldade também nesse mundo... eu também apronto, também.

E1: Me diz uma coisa, teus sentimentos, teus afetos, mudaram da primeira queda pra terceira?

Entrevistada: Mudaram...como assim?

E1: Mudou? Teve alguma mudança na queda na tua forma de ver o outro?

Entrevistada: (Risadas) Eu cheguei aqui e eu aprontei denovo.

E1: Foi? Tu acredita que tando aqui isso aqui ressocializa a pessoa?

Entrevistada: É, a pessoa aqui aprende alguma coisa, né?! Ninguém tem amigo aqui não... aqui tem algumas pessoa de bom coração. A pessoa tá aqui dentro, não vem ninguém lá de fora não trazer um pão, um biscoito pra pessoa que tá aqui dentro... só aparece coisa ruim. E lá fora: bora tomar uma coisa... bora tomar uma cerveja... bora beber! Lá fora, quero não essas amizades não. Caí só, robei só e vou sair só, com fé em Deus! Faço minhas paradas só, não ando de patota não. Vivia no meio da patota quando eu cheirava cola, mas eu só andava só.

História 5

E1: O que é que tu lembra quando tu era pequena, além de jogar bola?

Entrevistada: Somente isso, jogar bola mexia aí com esse negócio de droga também já.

E1: Com quantos anos?

Entrevistada: 12, 13 anos por aí.

E1: Tu começou a usar.

Entrevistada: Fumar maconha, ? Já bebia escondido também, cheirava loló essas coisa assim.

E1: E tu acha que tu começasse por quê?

Entrevistada: Puxa.. comecei o que? a usar droga?

E1: Sim.

Entrevistada: Por causa do... sei lá...

E1: Qual era teu sonho quando tu era criança. Quando crescesse tu queria ser...

Entrevistada: Ah, sei lá... nunca tive sonho não.

E1: Nunca tivesse sonho?

Entrevistada: Sei lá, eu não ligava pra nada, pensar em nada naquela época.

E1: Se tu pudesse descrever o que tu sente pela tua filha?

Entrevistada: Poxa sei não. Que eu gosto muito dela, sinto saudade dela. Sinto falta, ? Mai... fazer o que? Não tem quem me ajudar. Eu me soltei daqui, vim aqui pegar o endereço de uma empresa que tem aqui porque ela aceita ex presidiário, peguei o endereço fui lá procurei a Irmã Rose fiz um... como é o nome? Curriculum...

E1: Fez um cadastro...

Entrevistada: Sim, ela me deu número do telefone de lá, ela disse que eu ligasse porque ela ia ver se arrumava uma vaga pra mim. Fiquei um mês ligando pra lá e ela nunca me atendia. Depois, fui em outros cantos atrás de trabalho e não consegui nada.

E1: Da tua primeira queda, quanto tempo levou até você voltar pra cá?

Entrevistada: 7 meses preu voltar de novo pra cá.

E1: Mas nesses 7 meses tu dissesse a mim que era só assalto, num foi?

Entrevistada: Foi.

E1: Tu realmente fez o assalto? Teve culpa?

Entrevistada: Tive...

E1: Pronto, aí...exatamente desses 7 meses, quanto tempo tu passou sem cometer um novo assalto... ou um delito?

Entrevistada: Primeira vez, depois que eu me soltei. Eu tava sem fazer nada, eu tava procurando trabalho.

E1: Durante sete meses tu procurando trabalho... aí tu...

Entrevistada: Aí nada como eu tava dizendo. Eu tenho uma filha pequena e só quem trabalha em casa é minha irmã. Minha irmã já tem 3 filhos pequeno, minha filha. Tem uma pensão que num dá nem 200 reais pro pai dela, porque ela tem mais duas irmã. Muito mal dava pra ela. Aí não consegui nada. Apareceu esse aí preu ir fazer. Na realidade, tinha aparecido uma coisinha antes. Eu fiz, deu certo, depois essa daí, nessa segunda vez aí foi quando... na mesma semana né.

Entrevistada: Puxa, agora a gente... resolver coisa assim... eles batem dependendo da pessoa, é... às veze a gente quer vim aqui resolver alguma coisa, assim eles não deixam a gente passar ali pra resolver nada. Muita gente aqui tem prioridade, mais que outras pra algumas coisas, outras num tem. Eu tenho visita só da minha irmã e da minha filha e às vezes , tem meses que eu num tenho a visita. Às veze eu vou pedir uma visita extra ela num me dá. Outras têm visita extra, tem visita que entra fica até ali, ali, entendeu? Passam horas e horas, aí a gente às veze vai pedir eles num dão.

E1: Qual é o critério pra se ter essas visitas extras... esses benefícios?

Entrevistada: qual critério? E eu sei... nem sei.

E1: Peraí, é... como é o critério pra ser chaveira? Elas que escolhem? São vocês mesmas que escolhem, entre vocês ou é a administração?

Entrevistada: Elas que chamam, ?! Eu trabalhava no preservativo ali, aí quando o dia que eu fui embora elas me chamaram perguntando se eu queria ser chaveira. Eu disse que queria, queria mais por conta das remissão. Remissão é melhor do que as outra firma, como eu tô com esses processo todinho.

E1: A remissão? Ah, sim! A remissão! Ah tá.

Entrevistada: Quis mais por causa disso, ?! Aí eu aceitei mai...

E1: Mas é melhor do que a firma é?

Entrevistada: Trabalhar como chaveiro? A remissão é, ?! porque 1 ano as firma normal acho que é 3 meses e na... trabalhando pela concessão é 4 ano, aumenta mais ajuda, ?!

E1: Como é ter a chave que tranca? O que é que mudou pra você?

Entrevistada: Estresse, porque arrumar estresse. Fica querendo sair eu não posso tirar começa a falar a chamar de num sei quê...

E1: tu num gosta?

Entrevistada: Não. Ninguém gosta, ?!

E1: Tu nunca teve contato com teu pai?

Entrevistada: Só quando eu tinha 15 anos que eu vi ele a primeira vez.

E1: Depois desses 15 anos?

Entrevistada: Falei com ele uma vez no telefone pra pedir pra ele pra mim ir pra lá, pra mim conhecer meus irmão e vê se lá conseguia alguma coisa, mas ele disse que não porque... como é... que não porque os tratamento dos filho dele era diferente do meu. Ele não sabia como eh que minha mãe tinha me tratado me educado, ?! Pra ele abrir a boca e dizer isso e eu nunca... também depois disso eu não quis mais falar com ele. Até hoje.

E1: Por que tu acha que ele disse isso?

Entrevistada: Não sei, ?! Eu acho que é por que... sei lá eu achava que sei lá o tratamento o jeito que minha mãe me criou, ?! Minha mãe me criou bem, ?! Eu que fui errada mesmo de fazer essas coisas.

E1: É melhor tá assim do que trancada o dia todo?

Entrevistada: É melhor, ?! Porque a cela é pequena com um monte gente dentro tem briga dentro da cela, discussão essas coisa assim... prefiro ta assim, ?! Por isso que eu vou sempre atrás de trabalho aqui, ?! Porque a gente trabalhando fica mais no trabalho do que ficar sempre na cela sem tempo de confusão essas coisa.

E1: o que tu acha que é o mais difícil daqui? É isso de não ter trabalho ou...

Entrevistada: É porque assim a gente são... o que abre de 7 hora da manhã 8 hora tranca a gente. Fica trancada até meio dia.

E1: Então o pior são as celas?

Entrevistada: É, é! Porque as cela tudo pequena é muita mulher, ?!

E1: O que é que tu acha que poderia ser diferente pra você sair daqui e não voltar mais pra cá?

Entrevistada: Oxe ter mais oportunidade na rua de trabalho e assim pra ex presidiário também é uma coisa mais difícil ?! Quase ninguém quer dar, ?! Sabendo que você é ex presidiário num quer dar trabalho a ninguém.

E1: Mas aqui, o que é que pode mudar aqui dentro do Bom Pastor pra que você pudesse...

Entrevistada: Aqui o que a gente podia mudar aqui pra gente ter mais trabalho.

História 6

E1: Fala um pouco da sua vida desde pequena até quando você chegou aqui.

Entrevistada: De pequena é sofrimento, né?! Sempre sofrimento. Aí eu fui adotada, adotada não, minha mãe engravidou de mim, aí meu pai não quis que ela engravidasse.

E1: Hum.

Entrevistada: Aí ela tentou tirar e não conseguiu, aí ele foi embora porque não deu pra tirar, aí ela tomou muito remédio, muito remédio aí não conseguiu me abortar, aí quando eu nasci ela deu eu, ficou perguntando quem queria, quem queria, aí foi difícil, ainda fui, voltei pra casa com ela, ficava lá, no relento... aí apareceu uma mulher que quis me adotar, aí ela, essa mulher disse que pra eu saber que ela é minha mesmo eu vou chegando aqui como se for madrinha dela e mãe, aí ela disse, não, pode levar, pode levar! Pode levar, é sua! Aí ela me adotou e foi minha madrinha. Aí depois de, oxe, era uma vida ótima que eu tinha, eu tenho foto com ela e tudo... aí quando foi com dez anos de idade que minha mãe apareceu. Minha mãe chegou lá dizendo, eu quero minha filha, eu quero minha filha. Pedindo eu a ela. Eu fiz a primeira comunhão. Eu tinha de tudo, tinha meu quarto, tinha de tudo. Aí ela não aguentou minha mãe pedindo eu a ela, aí entregou. Mas só que quando eu cheguei com a minha mãe, minha mãe não podia nem me criar, nem criar meus irmão. Porque minha mãe bebia muito.

Entrevistada: Aí, como se diz... é, é... eu fui pra casa da minha mãe, aí ficou a maior agonia lá, aí ficava em casa, não tinha o que comer em casa, não tinha o que dá, aí eu peguei e fui pro, lá pro Terminal de Boa Viagem, que ali tinha um Bom Preço, aí eu ia pegar verdura lá, pra levar pá dentro de casa pra nós comer, né. Com dez anos de idade.

E1: E sua madrinha?

Entrevistada: Minha madrinha? Ela deu e pronto! Não quis saber de mais nada. Que minha mãe tava todo dia bêba na porta dela, lá, aprerriando...aí eu fiquei pegando resto de comida que, do supermercado. E botava, quando o carro de lixo passava, o que dava pra pegar, nós pegava. Aí de trás do supermercado, aí as meninas que ficava lá, cheirando cola, aí eu peguei fui cheirar cola, aí as meninas, as menina: [fulana], vamo no Bom Preço tomar um danone!. Eu: é, bora! Com dez ano, . Bora, tomar um danone. Aí toda vez nós ia tomar danone. Aí depois começou a gente trazendo as coisas do Bom Preço, bola, confeito, danone, trazendo escondido. Aí depois comecei a cheirar cola, eu já não queria mais ir pra casa, eu dormia por ali mermo, pronto... aí depois, de lá eu comecei a fumar maconha, comecei a vim pra cidade, pegava um ônibus lá e vinha pra cidade, pro centro da cidade, aí até hoje a minha vida é um inferno. Um inferno mermo... Se ela não tivesse ido na casa da minha madrinha, minha vida teria sido muito melhor hoje... eu fiz a primeira comunhão e tudo... aí já, aí comecei indo pra Febem, eu tenho muita entrada na Febem, depois fui pra Roubos e Furtos, agora isso eu praticando furto, ... pra comer, pra ter alguma coisa... robando cordão dos outro, pulseira, relógio, na tora mesmo, puxando... adolescente eu era. Aí depois eu fui pra Roubos e Furtos porque eu tava roubando carro, robando carro, abrindo os carro e roubando os toca-fita. Aí com dezoito ano eu vim parar aqui na cadeia. Aí saí. Aí com, com... em 2010 agora eu vim de novo. Saí em 2010, agora em 2011 eu vim de novo.

E1: Por que é que se dá essas quedas, tu acha que é, assim, a falta de emprego, o que tu acha?

Entrevistada: Falta de emprego, de atenção que a pessoa não tem, quem dorme na rua, veve na rua não tem atenção, não. Falta de emprego. Não tem atenção. A atenção que tem é numa comunidade que chega pra dá um cumê, um pouco de cumê, um pão, vai simbora, deixa a pessoa lá mermo, a pessoa fica naquela... é atenção que a pessoa não tem.

E1: E tua mãe, quando tu começasse a morar na rua, ela foi te procurar?

Entrevistada: Foi. Mas eu não fui não, voltar pra ser pior que na rua... pra comer, pra tudo...

E1: É mais fácil comer na rua que em casa?

Entrevistada: Era, minin...

E1: Sua mãe trabalhava?

Entrevistada: Não, minha mãe ficava bêbeda direto. Todo dia.

E1: E teus irmãos?

Entrevistada: Meus irmão? Dois minha vó criava, minha irmã e meu irmão minha vó criava, o outro uma tia minha de Jordão criava, o outro era a madrinha dele que criava, sabia como ela era mas não dava, não dava os meninos não, dava não, num deu eu até hoje. Só minha madrinha que deu. Aí eu fiquei nessa até hoje. Tô aqui, só Jesus sabe, meu Deus.

E1: Quando tu sair daqui?

Entrevistada: Quando eu sair daqui eu já vou, eu já vou pra audiência agora, sabe! No dia 31.

E1: Hum.

Entrevistada: Eu disse, num foi? Vou pedir ao juiz uma proteção, um canto pra eu ficar, porque eu não quero mais ficar nas droga, essa vida eu já enjoei, não dá mais pra mim. Só tenho lembrança ruim no meu corpo. Eu vou pedir ao juiz uma, um internamento, quando eu sair de lá... porque eu acho que se eu for pra rua agora eu ainda posso 'descair', sabe! Porque é muita gente, é muito colega meu que vai chamar, e quando eu sair eu não quero nem ir pra perto deles. Nem pra perto deles. Pra alí pro Derby, onde eu ficava, quero nem ir... eu quero ir pra outro canto. Aí pedir pro juiz pra ir pra um internamento que de lá, quando eu sair, eu saiu com um trabalho. Um canto pra eu ir trabalhar. Um canto que ninguém me discrimine porque eu fui menina de rua, eu fui menina de rua, que eu tenho tatuagem, que eu tenho corte...sabe! um canto assim, que dê pra mim trabalhar.

E1: Como era morar na rua?

Entrevistada: Hum?

E1: Como era morar na rua?

Entrevistada: Ouxe, é muito difícil. Muito difícil mesmo. Tudo na minha vida foi difícil, até agora.

E1: Quantas quedas você tem mesmo aqui?

Entrevistada: Aqui? Três.

E1: Três quedas. De uma queda pra outra o que foi que aconteceu na tua vida?

Entrevistada: Oxen, eu saia daqui e ia fazer a mesma coisa. Saia daqui e ia logo beber. Me juntava com gente igual a mim... e ia fumar, aí quando bate a noite e não tem nada aí vai robar. Quando acaba dá vontade de robar, arrumar dinheiro pra comprar mais.

E1: E sua mãe quando você veio pra cá?

Entrevistada: Quando eu vim pra cá? Na primeira vez ela vinha.

E1: Ela vinha te visitar?

Entrevistada: Veio. Umas vezes ela veio, sabe por que também? Porque esse coroa morreu, porque eu tinha um coroa, que ele trabalhava no hospital que eu era mais bonitinha na primeira queda. Foi com 18 anos, eu tinha relação com ele, aí quando eu caí aqui eu mandei uma menina daqui avisar a ele. Aí toda semana ele tava aqui, com dinheiro pra mim, com umas compra, com tudo. , eu pegava dele aqui e dava pra mainha levar pra casa. Aí ela vinha, agora que eu tô 'a nada' ela não vem não. Não deixa de beber um dia pra vim, não. E se deixar não vem.

Entrevistada: Aí, tô aqui agora, de novo, faz sete, faz oito mês hoje. Humilhação... sem ter uma calcinha, sem ter as coisa. Não quero isso mais não, pra mim não, menin! Tem hora que eu penso assim: poxa, melhor é morrer!

E1: Tu se sente humilhada?

Entrevistada: (Choro) Claro, sem ter nada... sem... aqui quem não tem visita é caça-rato. Caça-rato, ?! Pega o resto do que os outro têm... e não tem muito valor, não vem ninguém aí, ninguém, ninguém, ninguém me ver... pelo menos pra os pessoal parar de dizer “tu não tem visita, tu não tem ninguém não! Tu quer ser o que, tu quer ser o que?” Viesse pelo menos alguém me visitar aí, aí ia parar, ia mudar. Num ia melhorar, né?! Ficar bom aqui, né?! Mas ia mudar alguma coisa.

E1: Se viesse a visita sem trazer nada ia melhorar?

Entrevistada: Eu acho que ia. Porque, também, eu ia conversar. Que aqui não dá pra conversar com ninguém. Aí eu ia conversar...

E1: Por que aqui não dá pra conversar?

Entrevistada: Oxen, tudo ignorante, tudo presa feito eu, tudo ignorante, cheio de pobrema, cheio de estresse, o que a pessoa falar sai dizendo pros outro... tá loco?!

E1: Tu não tem nenhuma amiga aqui não?

Entrevistada: Ninguém aqui num tem amigo não, menin! Ninguém aqui num tem amigo não. Só os pombo mermo, quando eu pego um que eu fico conversando com eles, que não conta a ninguém. Só os pombo.

E1: Os pombos?

Entrevistada: Mas ninguém tem amigo não. Ou senão os gato. Eu vou pra audiência e não sei como é que eu vou fazer com roupa.

E1: Agora me diga uma coisa, essa coisa de você ficar sozinha aqui fora na maior parte do tempo é que faz você ficar mais com os bichos?

Entrevistada: É. Eu prefiro ficar assim “na social ” , que não deixam eu ficar lá dentro não. Porque eu tenho muita revolta, muita revolta eu já tenho. E quem deixa eu ficar aqui deixa eu ficar ajudando na limpeza. Sabe? Eu ajudo uma pessoa, ajudo outra. Aí as pessoa também pede por mim, sabe. Que eu fico aqui fora, porque se eu ficar lá dentro eu fico chorando direto. Choro muito. Fico com uma dor no coração.

E1: A maioria fica lá dentro?

Entrevistada: É, é, porque é obrigatório tá lá dentro. Que eu ajudo umas coroa, pra dá as merenda do colégio. Aí, essa mulher pede pros guardas deixar eu aqui fora. Que eu ajudo a pegar, entregar as merenda do colégio. Eu vou com a bandeja, entrego as merenda tudinho. Aí, eu pego quando tá o pátio sujo eu varro, ajudo as menina a varrer, as que trabalha já na casa.

E1: Hum.

Entrevistada: Ajudo elas a varrer. Aí eu tenho essa chance aqui, quando chega água eu encho os balde do banheiro, sabe. Tenho privilégio. Mas eu não gosto não de ficar lá dentro não, Deus me livre, é muito ruim.

E1: Como é dentro no domingo?

Entrevistada: Ouxe, é bom que os outro tão com as sua visita, né?! Tem muita gente que não tem visita também, né?! Num é só eu não.

E1: Mas pra você como é?

Entrevistada: É... eles vão, as visita entrando, eita! Uma dor no coração, viu! As visita vão entrando... aí eu fico, eu não sei porque, mas meu olho só fica aqui pro portão. Pensando que vem alguém. Eu acho que hoje deve vim, né?!... Eu botei o nome aí na frente, se vier aí entra... eu botei o nome da minha mãe, do meu irmão, da minha tia. Mas num vem não, ninguém... aí vai passando a hora. Aí, dez hora, não vem ninguém. Onze ora não vem ninguém... meio dia, não vem ninguém, aí toca pra parar de entrar. Pra eles almoçar. Aí eu digo: eita, será que vem alguém agora de tarde? Será que vem alguém agora de tarde?. Aí, fico só na expectativa. Sentada num canto sozinha. Chega uma perto de mim conversa, chega outra conversa.

Entrevistada: Sabe, até o que eu ajudei a criar ele, não vem, 'rapai'.

Entrevistada: Dele, Lucinho e de Cláudia. E da minha tia e da minha mãe. Aí disseram que não vem porque quando eu tô aqui eu não quero ir pra casa, quando ela ta lá, ela não quer ir pra casa!

E1: Mas isso é verdade?

Entrevistada: É, é.

E1: Por que tu não queres ir?

Entrevistada: Porque eu não me acostumo em casa... Quando eu chego em casa, também, o primeiro dia é bom, quando é no segundo, no terceiro dia começam a me xingar. Começam a passar na minha cara as coisa, que eu sou de rua... que num sei o que, aí eu vou amostrar a eles que eu vou ter o meu canto. Vou, vou dar a volta por cima, vou ter meu canto. Eles que vão, eles que vão na minha casa, e eu vou querer eles lá né?! Claro! Eu sou sozinha. Num tive nem sorte de ter um filho, rapai, nem filho nem nada... oxe! Num sei que danado é isso! Nem sorte de ter um filho eu num tive, menin...

E1: Me diz uma coisa, como é que ta seu afeto em relação à sociedade da primeira queda pra segunda e da segunda pra essa de agora?

Entrevistada: Desprezada. Desprezada mais ainda. Desprezada mais ainda.

E1: Mas tá com raiva da sociedade?

Entrevistada: Não. A sociedade não tem culpa não. Que tem culpa é eu. Que eu que fiz isso. Eu só queria assim, que o Governo botasse assim, um canto pra essas pessoas, que tá nessa merma que eu, tivesse uma chance pra arrumar um trabalho, um trabalho, e nesse trabalho num ser discriminalizado, discrimina...discrimi, como é?

E1: Discriminado.

Entrevistada: Discriminado. Porque um trabalho pra quando eu for pro trabalho a pessoa chegar lá e dizer: ah, ó, quem trabalha comigo, dono de alguma coisa, ah você mora na rua? Você já morou na rua? Então, olha fica de olho nela que ela já foi de rua!. Assim, sabe como é? Que a pessoa nota, né?! Aí eu não quero, porque muitos cantos que eu cheguei já aconteceu isso.

E1: Tu acha que é mais difícil encontrar trabalho porque tu é de rua ou porque tu é ex-presidiária?

Entrevistada: Porque eu... os dois.

E1: Mas o que é que pesa mais?

Entrevistada: O que pesa mais? É a menina de rua e as tatuagens. Que ex-presidiária a pessoa... na identidade tem, é? Na carteira?

E1: E quando tu era pequena, tu lembra que tinha algum sonho... o que tu queria ser?

Entrevistada: Ah, eu dizia que queria ser cobradora.

E1: Só cobradora?

Entrevistada: (Risos)

E1: Cobradora de ônibus?

Entrevistada: Era. Gostava muito de andar de ônibus. Eu ainda penso, né, faz mal não.

E2: Então, hoje em dia esse ainda é o teu sonho?

Entrevistada: É. Cobradora de ônibus. (Risos)

E1: E tu estuda?

Entrevistada: Minha mãe dizia, minha mãe dizia: cobradora de ônibus, [fulana]?. Eu dizia: é, porque eu vou ficar só dentro do ônibus, direto. É, é, mas é tão difícil... tão difícil mermo. Óh, eu sei ler e não sei escrever. É porque eu não tive escola. Eu só estudei. Estudava na Febem. Os momentos que eu tava na Febem, eu ficava estudando. Ainda bem que eu sei assinar meu nome, sei escrever. Ainda bem, menin, porque muita gente das meninas que ficam comigo na rua não sabem.

E1: O que mudou em tu saber ler?

Entrevistada: Mudou um pouquinho, visse.

E1: O que?

Entrevistada: Eu acho muito bonito livro, jornal, essas coisas. Jornal, caderno, aí eu não pergunto a ninguém, eu mermo leio. Só isso que eu tenho de bom. (Risos)

E1: Como foi pra tu, quando tu saísse daqui ? Qual foi a primeira sensação que tu tivesse quando você saiu daqui?

Entrevistada: Um alívio. Dizer: 'eu estou livre. Tô livre, meu Deus! Agora eu posso fazer o que eu quiser, na hora que eu quiser. Tô livre!. Só que eu fui fazer as mesmas coisas, aí não adiantou não. Se eu sair e ir pro mermo canto de novo, eu vou voltar pra aqui de novo.

E1: E foi muito diferente pra tu a primeira pra segunda, a segunda pra terceira queda, quando tu chegou aqui tu achou diferente?

Entrevistada: Então! Oxe, aqui tá muito ruim. Aqui, agora, que é cadeia, viu?!

E1: Como é?

Entrevistada: De primeiro dava lençol, de primeiro dava pasta, escova, dava um sabão azul ou amarelo pra pessoa tomar banho, um não, assim, dava colchão. Agora, num dá nem um módice dá a pessoa mais. Agora... era PM naquele tempo. Agora é tudo ASPE. Era tudo mulher, naquele tempo. Agora é mais homem. O homem é uma humilhação, uma ignorância, na fila do cumê, na fila do cumê. Uma ignorância pra tudo. E... é muito homem. Antes era mais mulher pra cuidar daqui, eu acho que era melhor... que os homem é tudo ignorante, os que trabalha aqui, é por isso, né?! Aí, quer direito. Fica pensando que é polícia, ?! Aí, quer, sei lá, mandar, maltratar, e empurra, viu, empurra a pessoa. Aí faz: vai pro castigo! Ontem mesmo teve um que pegou assim no 'gogó' da menina assim, ó! Você pensando que eu sou palhaço, é? Vá pra dentro! Aí jogou ela na parede. E os direitos humano num tá vindo aqui mais não. Nunca mais veio os direitos humano aqui. Quando vinha, aí a pessoa diz uma coisa, diz outra aí melhora, ?! Mas nunca mais os direitos humano veio aqui... dessa queda aqui, faz oito mês que eu tô aqui e eu não vi os direitos humanos aqui dentro. Oito mês hoje. Que quando os direitos humanos vêm aí eles fica mais quietos. Porque da outra queda mesmo, quando os direitos humanos vinha melhorava alguma coisa. Aí demora a vim aí piora. Os direitos humano demora a vim aqui aí piora. Aqui vira um bordel. Só pra senhora ver, ontem a ontem o ASPE chutou o pombo, rapaz. Porque o bichinho num tava fazendo nada, rapaz. Só porque ele tava comendo. Aí ele passou, chegou perto, aí carreira e o pombo foi parar na parede e morreu. Eu digo: ó pra aí, ó. Isso é muita crueldade, menino. Eles grita com a pessoa. Chama a pessoa de maloqueira. Vocês pensam que tem direito aqui é, maloqueira. Quem manda aqui sou eu. Vocês mandam na rua, quando vocês tão na rua, na casa de vocês. Aqui quem manda sou eu! Chama de maloqueira, aí senhora de idade... ó, o raio era aberto, num fechava as cela todinha só fechava o portão principal, agora não, pra senhora ver, é uma humilhação, mais de 20 mulher, 16 mulher, uma cela pequenininha ó, deste tamanho. Agora o banheiro é um banheiro só, ah... a água é ligada de manhã, aí liga de meio dia, aí só liga agora de cinco hora. É um mal cheiro, é uma coisa incrível, meu Deus do céu! Incrível mermo. Num abrem o raio mais pra deixar as cela aberta e só o portão principal fechado. Depois que essa diretora nova aqui... quem comanda é ela, quem manda é ela, quem manda e desmanda é ela, menin... pra ver, até os direitos humanos num tá vindo mais. Quando era Ana Moura, Doutora Ana Moura, oxe! Era bom demais, menin...agora, ó, sai de cinco hora, pra tomar café, antes de terminar a fila tocando pra entrar de novo, e tem que entrar logo: 'bora, bora, bora porra, entrando, entrando, entrando... entrando, escutando não é?' É, é, tem que ver, as de idade aqui passa mal, nós, feito eu passa, quanto mais senhora de idade...

E1: E o momento que tu dissesse que passou com tua madrinha, qual foi o melhor?

Entrevistada: Ah...quando ela tava almoçando, que eu, que ela fazia aqueles bolinho de farinha pra mim, com banana, quando eu ia tomar banho ela dizia: 'lave a calcinha, viu!', oxe, muito bom na casa dela, menin... muito bom, menin.

E1: Você sente saudade dela?

Entrevistada: Demais, muita.

E1: Tu nunca procurasse ela não?

Entrevistada: Procurei, só que, só que mudou muito, oxen, mudou... eu... eu... meu jeito mudou. É... um jeito, sei lá, um jeito que eu fiquei na rua, morei na rua, num sou mais quem eu era...

E1: Mudou como?

Entrevistada: Que eu fico desesperada quando eu tô numa casa, numa residência, dá vontade de ir embora... só sei que é estranho. Dá vontade de eu ir embora, encontrar meus colega de rua, oxe... é assim, sei lá. E aqui dentro a pessoa num se concerta não. Não, a pessoa aqui fica pior. Mas eu não vou levar isso na minha mente não, quando eu sair agora.

E1: Hum.

Entrevistada: Eu num vou levar isso na minha mente não.

E1: Por que fica pior?

Entrevistada: Porque é, porque aqui é muito ruim, menin, é muito mal tratado. Aqui a pessoa é mal tratado. Aqui a pessoa é como se fosse cachorrinho de polícia. Cachorro de polícia. Nós presa...

E1: Mas aí tu acha que deixa a pessoa pior?

Entrevistada: Deixa pior. Deixa a pessoa pior... Por quê? Porque quando a pessoa sai daqui, sai com aquela ira, sai com aquela mágoa, o tempo que tá aqui mermo, a Justiça demora, faz cinco mês que eu fui pra audiência... que eu fui pra audiência do outro processo, aí resolveu. Num veio nem resposta ainda. Eu vou pra essa audiência agora é do outro, do outro que quando eu saí daqui eu num fui assinar. Essa audiência agora é do outro que eu não fui assinar. Mas do, do, do que eu não fui assinar. E o adevogado da casa, toda vem que eu fui, nada! Também a Justiça é muito lenta, a Justiça, a Justiça maltrata com a pessoa. Não, porque tá lá dentro, porque não tem adevogado particular, aí deixa lá, deixa mofar lá. Importante é eles que tá ganhando, ?! Cada cabeça que tá aqui eles ganha oitocentos, oitocentos, sei lá, um negócio assim. Oxe, maltratante, revoltante esses policial mandando na gente. Humilhação, até as próprias presas maltrata a gente que trabalha na cozinha... elas merma humilha as pessoa, que elas têm uma razãozinha, que elas têm um direitozinho a mais, que elas trabalha, né?! Aí quer humilhar as que num trabalha, principalmente as que não têm visita.

E1: Humilhar como?

Entrevistada: Humilhar... na hora de dar o cumê, na hora de fazer o cumê, dá a cumida pra pessoa com bicho... o deles é separado, né?!. O da gente é com bicho no feijão. Aqueles bicho do feijão. Aqueles feijão, aqueles feijão furado...

E1: Hum.

Entrevistada: De bicho... Macarrão tudo emboloado... oxe, a galinha só o tempero, a água, não, só o coloral, a água e o sal. Agora, isso chega caminhão e caminhão de comida aí. Comida mermo. Agora, eles só faz pra eles... Que é nas vasilhas separada, e pro policial. Já são outras que cozinha pros policial... É presa também. Passa carne, verdura, tudo bom pra ele... Pra copa, que é onde eles come... carne, verdura, batatinha, gerimum, tudinho... e o cumê da gente é só chuchu e cenoura. E o resto é tudo pros policial e, lógico, pras presa que cuzinha, ?! Tenho certeza. Os direitos que nós temos aqui é cela, cela, cela e cela. Não tem direito à água, não tem direito de ficar aqui fora, circular um pouquinho. Não tem direito a uma assistente social, que é uma onda quando nós quer falar com a assistente social aqui, é um aperreio... Não tem direito a um ginecologista, já num tem ginecologista aqui... Dentista é péssimo. Parece que é duas dentistas pra um bocado de mulher... Não tem como a pessoa ser atendida assim não, menin... oxe, a pessoa fica aqui e sai revoltada, revoltada mermo. Aí, duas vezes que eu saí daqui, eu saí revoltada, mas não vou mais sair assim, não. Eu vou dizer: acabou-se aquilo lá! Nada de revolta. Eu vou fazer minha vida. Senão, eu vou parar de novo aqui. Vou voltar de novo.

E1: Tu pretende fazer o que, quando sair da cadeia?

Entrevistada: Eu quero um barraco pra eu morar... Porque eu com um barraco pra eu morar eu tenho tudo, oxen, porque eu vendo alguma coisa, boto fruta pra vender. Boto algo pra eu vender, ?! E quero um companheiro que não seja errado como eu, ?! Quero ver se eu não me ajeito. Que não seja errado feito eu, ?! Que não use maconha, que não beba cachaça nem nada... Quero um barraco, sabe.

História 7

E1: Conta aí um pouquinho da tua vida, como é que foi?

E2: Tua infância, quantos irmãos tu tem?

E1: O que quiser falar!

Entrevistada: Eu tenho 6 irmão. Infância? Eu num tive infância não! Tive meu primeiro filho com 15 ano. Tive minha segunda filha cum 18. Fui presa cum 18 ano, minha primeira queda por tráfico, traficava... me soltei!

Entrevistada: Apoi até agora ela não detectou nada, não!

Entrevistada: Me soltei em 2009, aí rodei, agora em... não, rodei em 2010 com 155 aí o juiz mandou 6 ano pra mim porque quebrei a condicional. Quer saber o quê mais?

E2: Tu dissesse que não teve infância.

Entrevistada: Eu tive 2 filho. Eu tenho 2 filho.

E1: Mas porque tu acha que tu não tivesse infância?

Entrevistada: Sei lá, porque eu não aproveitei muito não.

E1: Não? Tu não lembra não, quando tu era criança o que é que tu fazia?

Entrevistada: Lembro, eu ficava mais dentro de casa. Aí depois cuns 15 anos eu me ajuntei com os ente errado.

E1: Os 'ente errado' é o que?

Entrevistada: Gente que... assim, ver como é que eu posso explicar. Que vende droga, que roba amizades, que leva a pessoa pra essa vida, até que eu vim parar aqui, né?! Quer saber da minha infância, é?

E1: É, é.

Entrevistada: Eu num me lembro.

E1: Não lembra, não?

E2: Tu estudou até que série?

Entrevistada: Até a 7ª.

E1: E tu não lembra de algum sonho não que tu tinha? Quando tu era criança, o que tu queria ser? O que tu queria fazer?

Entrevistada: Quando eu era criança eu queria ser empresária.

E1: Empresária? De que? Empresária de que?

Entrevistada: Empresária de... tipo... deixa eu explicar, porque eu tô meia baratinada, eu tomei remédio de dormir.

E1: Ah, ta! Tu tá com sono?

Entrevistada: Não, é, tô com sono que eu tô doente.

E1: Tu tas com que?

Entrevistada: Tô gripada, com o ouvido estourado. Eu só vim porque ela disse que era segurança, entrevista, eu sei lá o que... eu queria ter terminado meus...

E1: Como assim segurança?

Entrevistada: Essa entrevista vocês num... num foi aquele grupo que tava...?

E1: Foi, foi...

Entrevistada: Pronto, eu lembro. Eu tava também. Eu queria ter terminado meus estudo, ter feito uma faculdade, mai isso não aconteceu, mai eu também num me arrependo de nada não.

E2: Tu pensava em fazer faculdade de que?

Entrevistada: Rapai, na hora eu ia ver, né?! Mai que eu queria ter terminado e ter feito uma faculdade...

E2: Mas ainda dá tempo!

Entrevistada: Dá não

E1: Dá!

Entrevistada: 22 ano, quando é que eu vou sair daqui?

E2: Tu é uma criança...

Entrevistada: Criança...?

E1: Dá sim!

Entrevistada: Dá?

E2: Dá!

E2: Tu estuda aqui na escola?

Entrevistada: Eu não.

E2: Por quê?

Entrevistada: Eu fui me inscrever, a professora disse que eu sabia ler e escrever, ela num quis me botar não, eu queria trabalhar, mas também eu num consigo emprego, eu vivo dentro da cela.

E2: Tu dissesse que tinha tomado algum remédio, tu normalmente, vocês normalmente tomam aqui esses remédios? Antidepressivo, alguma coisa?

Entrevistada: Deixa mais depressivo ainda.

E2: Quantas vezes na semana?

Entrevistada: Vê, é porque aqui as menina pega o que tem receita, tá entendendo? Aí ela vai e dá a gente. Eu num tenho receita não. É tipo controlado. Eu num tenho receita não, mas as menina vende no corredor, aí eu pego e compro: é 1 real.

Entrevistada: Ele dá sono.

E1: Mas esse remédio que tu toma é qual?

Entrevistada: Delzil.

E1: É antidepressivo? Sabe dizer?

Entrevistada: Rapaz, eu sei que ele dá fome e dá sono.

E1: Dá fome e dá sono?

Entrevistada: É, mas é pra quem tem.

E1: Mas tu compra por quê?

Entrevistada: Pra dormir.

E1: Só pra dormir? E se tiver, é pra quê esse remédio? Tu sabe pra quê é?

Entrevistada: Porque, geralmente a gente compra pra ser drogar, né?! Por que toma com café, fica lombrado.

E1: Ah tá.

Entrevistada: Quer sabe do que mais?

E2: Eu quero saber tudo! Você me disse muito pouco.

E1: Tua mãe...

Entrevistada: Daqui da cadeia ou da rua?

E1: É da rua...

Entrevistada: Minha mãe?

E1: Tua mãe.

E2: Tu recebe visita?

Entrevistada: Recebo, dos meus filho não.

E2: Por quê?

Entrevistada: Eu num gosto não de...

E2: Tem quantos anos eles?

Entrevistada: Um tem 6 e a outra tem 3. E minha família num gosta de trazer eles praqui não.Toda vez eles ficam doente. O menino num quer ir simbora, quer ficar aqui comigo aí eles num vem não.

E1: Quantos anos eles têm?

Entrevistada: Um tem 6. O menino tem 6 e a menina tem 3. Aí, ultimamente, eu depressiva porque eu com saudade deles. Faz 8 meses que aqui, 8 meses que eu num vejo eles.

E1: E quem é que vem te visitar?

Entrevistada: Meu pai, minha mãe, minha , meus irmãos, a família toda!

E2: Eles dizem o que quando vêm?

Entrevistada: Eles? Ele fala, né?! Que eu podia tá em casa, cuidando dos meus filhos, trabalhando. Num precisava fazer isso, mas agora eu vou dar valor à minha liberdade, né?! Porque a cadeia mudada, quando eu tirei a cadeia aqui em 2008 era uma coisa, agora outra diferente. È muita tranca, o dia todinho trancado, só sai de meio dia entra de duas, sai de 5, entra de 7, 6 e meia, por aí, abre de 7 hora, fecha de 8, vai pá tranca, muita tranca a pessoa num aguenta não! E eu moro numa cela com 30 mulé. Eu me vejo doida.

E1: Por que tu num... na primeira vez que tu caísse aqui foi por tráfico, né? Como foi que tu começasse?

Entrevistada: Eu?

E1: A traficar.

Entrevistada: Eu fui morar com um homi que ele vendia pedra, era traficante, aí ele rodou, aí eu fiquei traficando pra ele. Aí, eu também rodei, aí agora ele se soltou e eu presa.

E1: Tu vivia com ele? Ele era teu marido?

Entrevistada: Era. A gente morava junto. Eu tenho uma filha com ele.

E1: Ah, !

Entrevistada: Aí ele traficava... ele...

E1: Desde quantos anos tu morava junto?

Entrevistada: Desde 4 anos.

E1: Hã? Não...

E2: Não! Com quantos anos você foi morar com ele?

Entrevistada: Desde que eu tinha quantos anos?

E1 e E2:: É.

Entrevistada: Eu tinha 17.

E1: E tua mãe?

Entrevistada: Não, eu tinha 15. Eu tinha 15 ano. Minha mãe?

E1: Tua mãe e teu pai. Gostavam...?

Entrevistada: Eu saí de casa escondido.

E1: Escondido?

Entrevistada: Gostava não. Ninguém gostava dele.

E1: Ninguém gostava dele?

E2: Mas tu gostava?

Entrevistada: Eu Gostava. Gostava, agora eu tenho ódio.

E2: Por quê?

Entrevistada: Porque eu tirei a cadeia dele e agora que eu preciso dele ele nunca mandou nada pra mim e ainda quer tomar minha filha.

E2: Ele lá fora?

Entrevistada: Ele soltou.

E1: Aí quando ele soltou? Quando tu tava lá fora também?

Entrevistada: Ele soltou esse ano.

E1: Tu fosse... peraí, tu fosse presa por tráfico, da primeira vez, aí o que aconteceu? Tu continuou com ele?

Entrevistada: Continuei, aí depois a gente se deixou no...

E1: Quando tu ainda tava na cadeia ou quando tu tava lá fora?

Entrevistada: Quando eu tava na cadeia, desde a minha primeira queda. Aí agora a gente se separou. Na cadeia é? O que num presta?

E1: Ó! E...

E2: E essa chupeta aí...?

Entrevistada: É minha.

E2: Mostra aí... tu já usava lá fora ou...?

Entrevistada: Já... na rua... tem gente que não, tem gente que usa aqui mesmo.

E2: Mas desde a primeira queda?

Entrevistada: Desde a primeira queda.

E1: Então tu nunca... tu nunca deixou de chupar chupeta? Desde pequena?

Entrevistada: Na rua tinha marido e tudo.

E1: E aí, e teu marido achava o quê?

Entrevistada: Falava também, fazia palhaçada, mas eu nunca deixei não.

E2: Peraí, deixa eu entender... tu começou com esse teu marido com 15 anos, aí ele caiu, aí tu assumiu.

Entrevistada: Ele foi preso, aí eu fiquei traficando pra ele.

E2: Com quantos anos tu começou a traficar pra ele?

Entrevistada: Eu? Desde que a gente foi morar junto.

E2: Desde que...

Entrevistada: Ficava eu e ele.

E2: Vocês dividiam o trabalho.

Entrevistada: Era (risos). Trabalho não, né? Vê, ele ficava de manhã e eu ficava de noite. Aí os homi... no dia que os homi pegou ele, eu num tava dento de casa, não.

E1: Por que tu saísse de casa?

Entrevistada: Por que minha família me prendia muito. Era aquilo muito rígido. Quanto mais faz isso é pior. Eu estudava no Colégio Adventista que é de crente, sabe qual é?

E1: Adventista do sétimo dia?

Entrevistada: Do sétimo dia. Lá de água fria, no Arruda.

E1: Teus pais, tua mãe...teus pais são...?

Entrevistada: É crente.

E1: São Adventistas?

Entrevistada: Não, da Assembléia, menos meu pai.

E1: E tu?

Entrevistada: Minhas irmã....

E1: E tu acredita? É crente também...

Entrevistada: Em Deus?

E1: É

Entrevistada: Eu já fui crente.

E1: Tu já fosse?

Entrevistada: Agora eu gostava da crença de lá do colégio que eu estudava, do Adventista, sabe qual é, né?!

E1: É... eu sei dessa história, do sábado né?!

Entrevistada: É...

E1: No resto tem mais alguma coisa?

Entrevistada: Num pode fazer nada... tem não! Só isso mesmo.

E1: Aí tu gostava disso?

Entrevistada: Eu gostava... a melhor parte pra mim, da minha vida, foi quanto eu estudava naquele colégio.

E1: Foi? Por quê?

Entrevistada: Porque eu tinha amigas.

E1: Tu tinha quantos anos na época?

Entrevistada: Tinha uns 10, 11 anos.

E1: Aí sim, tu tinha amigas...

Entrevistada: Amizade boa, negócio natural, num tinha nada de... tudo suave, sem droga, sem bagaceira, era outras pessoas, entendendo?

E2: O que fez tu mudar?

Entrevistada: Se envolver com ele.

E2: Aí tu conheceu ele com 15, 14 anos...?

Entrevistada: Essa faixa, eu num me lembro muito não, mas foi essa faixa assim.

E1: Tu ainda tava no colégio?

Entrevistada: Depois eu parei. Aí depois eu me envolvi com esse bandido, marginal, até hoje eu na cadeia. Fui mimbora. Voltei de novo. Fui roubar.

E1: Foi por causa dele que tu tas aqui, tu acha?

Entrevistada: Lógico, porque eu me envolvi com ele, também porque eu quis, né?! Porque se eu num quisesse, eu num tinha feito.

E2: Tua primeira queda foi com quantos anos?

Entrevistada: Minha primeira queda? 18.

E1: Tu se drogava?

Entrevistada: Como assim?

E2: Tu usava crack?

Entrevistada: Só maconha. Mai eu parei.

E2: Tu 'tirou a cadeia' dele?

Entrevistada: Tirei, daquele jeitinho, mai tirei.

E1: Daquele jeitinho como?

Entrevistada: (Risos) Poxa! Vocês quer saber de tudo, né?!

E1: Se num quiser contar, não conte não.

Entrevistada: Eu ia visitar ele, mai eu ia quando eu queria. Ele tava preso era... aí agora é minha vez, né?! De pagar. Tá bom, cês querem saber mais o quê?

E1: Tu tinha algum sonho? Quando tu era criança?

Entrevistada: Agora, meu sonho?

E1: Não, quando tu era criança tu lembra, tu tinha algum sonho?

E2: Além de ser empresária?

Entrevistada: Tinha de casar.

Entrevistada: Agora, meu sonho? Sair daqui.

E2: O que tu sente mais falta de lá de fora? Além dos filhos?

Entrevistada: Minha liberdade.

E2: E o que é a tua liberdade?

Entrevistada: Oxe, num fala não, que me dá vontade de chorar, já.

E2: Hoje, pra você, o que é a liberdade?

Entrevistada: O que é a liberdade? É tá perto da família, dos meus filho, da minha mãe.

E1: Quando tu saiu, da tua primeira queda, tu fosse pra onde?

Entrevistada: Eu? Pra minha casa.

E1: E quando tu sair, agora, tu vai pra onde?

Entrevistada: De novo.

E2: Pronto, o que era liberdade quando tu saiu da primeira queda?

Entrevistada: Quando eu saí?

E1: Qual foi, o que é que tu sentiu quando tu saísse?

Entrevistada: Uma emoção muito grande de ver a rua.

E1: Qual foi a primeira coisa que tu fizesse?

Entrevistada: Hum?

E1: Primeira coisa que tu fizesse?

Entrevistada: Quando eu saí? Comecei a chorar. Eu fiquei baratinada, aquele vento no rosto...

E1: Alguém tava te esperando?

Entrevistada: Via as prantas, via os carros. Tava só meu pai, que nem sabia não. Cheguei de surpresa em casa.

E1: Ficasse meio perdida? Tu achou diferente a cidade?

Entrevistada: Mudou um bocado de gente, mudou um bocado de coisa.

E1: Tu achasse que mudança?

E2: Teus pais são de que bairro?

Entrevistada: Daqui do Recife, Água Fria.

E2: Teus vizinhos sabiam da tua queda? Tuas amigas de colégio, qual a reação delas?

E1: E aí, como é que foi voltar a olhar pra elas?

Entrevistada: Na minha primeira queda?

E1: É.

Entrevistada: Elas me olharam de outro jeito, porque assim, ex-presidiária num tem muito valor não. A sociedade discrimina.

E1: É?

Entrevistada: Você me entende?

E2: A sociedade discrimina, é?

Entrevistada: É ruim de arrumar um emprego.

E2: Qual é o olhar da sociedade?

Entrevistada: Assim, quando a pessoa vai trabalhar, tem o emprego...

E2: Me descreve o olhar, qual a sensação que você tem?

Entrevistada: É insegurança.

Entrevistada: É confiança, não tem confiança naquela pessoa. Pronto, aí eu vou trabalhar na sua casa. Tem, tem um emprego, aí a menina me indica, aí quando eu chego lá um, exemplo, ela puxa a ficha, ela quer saber da vida da pessoa, né?! A pessoa vai... tem umas que mente... tem umas que fala a verdade: fui presa! Aí vem aquela desculpa. A pessoa... isso, né?! Discriminação.

E2: Tu encontrou alguma amiga quando tu saiu do colégio?

Entrevistada: Elas que me procurou.

E1: E aí?

Entrevistada: Elas gostava de mim. Choraram abraçada comigo, perguntando como era, eu disse que elas nunca queira saber. Porque aqui é onde a gente chora e a mãe da gente num vê, nem o pai, nem ninguém, a gente passa fome mesmo tendo visita, sabia? Passando dificuldade... porque uma ajuda, outra, aí sempre num chega até o domingo e quem tem seu vício, como cigarro, fica louca, falta, aí a pessoa fica louca presa dentro da cela sem poder comprar, sem ter dinheiro, eu contei tudo isso a ela, né?! Eu disse que chega uma quer dale, chega outra quer matar, chega outra quer cortar, contei a elas, elas disse: poxa! Fulana, eu digo que elas nunca queira saber como é uma cadeia, e eu passei por tudo isso na primeira queda, inda voltei!

E2: Isso que eu ia te perguntar, tu passou por tudo...

Entrevistada: Eu não passei por muita coisa na minha primeira queda, por isso que eu gostei, agora essa eu tô passando, mas nunca mais eu vou voltar.

E2: Quanto tempo tu passou aqui, na primeira queda?

Entrevistada: 1 ano.

E2: Qual foi a sensação que tu teve quando teve a segunda queda, que disseram: você vai voltar!

Entrevistada: Oxe, desespero. Eu pedi pa morrer. Eu preferia morrer. Aí a pessoa diz assim: a morte não tem volta, né? Mas aqui é pior do que... é já tá morta. Pra mim é assim né? Num sei se vocês nunca escutou da boca de alguém, mas pra mim eu morta. Uma vez eu preferia morta do que aqui dentro.

E1: Tu preferia mesmo?

Entrevistada: Vê, agora refrescada numa cela deitada, tem televisão, tava assistindo, aí que dá saudade de casa. Poder tá em casa, agarrada com meus filho, na minha cama, como pobre, mas tem tudo, né?! Hoje, não tá numa cela, zuada de trator pro lado, dos pavilhão mas de 80 mulher, aquele barulho... tem que ir enfrentar fila, pegar um café. É isso aí.

E2: Tu dissesse que tu já usava chupeta, o que é que tu acha que faz... mas você também disse, ao mesmo tempo, que aqui se usava... Tu acha que algumas adquiriam o hábito da chupeta?

Entrevistada: Pra elas é um passatempo.

E2: Por quê?

Entrevistada: Passatempo e... sei lá, pra tirar onda. A maioria é onda.

E2: Pra você, o que é usar chupeta?

Entrevistada: Pra mim? É o vício. Sei lá... eu num sei explicar, sei que é massa, principalmente, na hora de dormir.

E2: É? Lembra mãe?

Entrevistada: Meus filho, lembra também. E lembra, também, acho que, assim, carinho. Aí... mas pra muitas aqui é palhaçada. A maioria usa. Vocês já viram?

E1: É pra 'tirar onda', é?

Entrevistada: É, é.

E1: Ah!

Entrevistada: Chega na cadeia.

E1: Por quê?

Entrevistada: Essas mulé, num tem o que fazer, pega uma chupeta e bota na boca. Fica chupando. Mai eu não, sei lá, já é vício e acho que deve... a minha família, né?! De eu ser assim... um lado deu muito carinho, um outro foi muito rigoroso...

Entrevistada: Criada com . A mima demais, vocês já escutou isso?

E1: Já.

Entrevistada: Pronto, criada por vó. Quer saber o quê mais?

E1: Pronto, é isso.

E2: Brigaduuu!!!

E1: Brigada!

Entrevistada: Agora vem cá, essa entrevista é pa quê?

E1: É pra essa pesquisa, aquela... a gente falou na...

Entrevistada: Vocês quer saber da vida da gente, né?!

E1: É.

Entrevistada: Cês num quer saber da cadeia, né?!

E1: A gente quer saber porque vocês saem e voltam pra cá, entendeu?

E2: Tu tem mais alguma coisa? O que tu acha que pode contribuir?

Entrevistada: Precisa dá mais emprego pra gente, assim, que já tem cadeia, tem uma caminhada pra tirar, porque aqui é por tudo, por cara, tem gente que sai da espera hoje e já tá trabalhando, faz 8 mese que eu tô aqui e eu num consigo um emprego.

E2: Tem essa diferença é? De quem trabalha e quem não trabalha?

Entrevistada: Tem tratamento pra quem tem estudo, pra quem, assim, tem faculdade. Se chegar num vai pra espera, vai logo pro pavilhão. Se eu chegar eu vou pra espera.

E1: Mas tu não estudasse?

Entrevistada: Eu estudei.

E1: Então?!

Entrevistada: É mais, me entende... Assim...

Entrevistada: Por cara, tudo por cara.

E1: Mas, qual cara precisa ter?

Entrevistada: Qual cara? É isso que eu tô querendo explicar e num tô conseguindo.

E1: Precisa ter a cara de quê?

Entrevistada: Bonito.

Entrevistada: Beleza, é... tudo só quer assim... pra trabalhar aqui na frente eles escolhe mais as pessoas que mora na parte de Boa Viagem. Não sei porque quem mora na favela é jogado. O emprego, igual eu disse a você, 8 mese que eu tô aqui ainda num arrumei um emprego. Chegou um bocado de mulher novata e já tá trabalhando.

E1: E tu pede sempre?

Entrevistada: E eu fico em cima. Aí tem muita menina aqui que... já que num dá emprego aí fica bagunçando na cadeia, maloqueira... tudo... eu vou esperar.

E1: A cadeia muda de um pra o outro?

Entrevistada: Muda. muda muito.

E1: Muda o quê?

Entrevistada: Porque tem a... as presa fazem o que quer por isso que é rigoroso. Os ASPE aqui come até as presa. dizendo que é por cara. As bonita que ele gosta, que ele gostar, ta entendendo? Se interessar, ? É tudo assim e aqui só vale quem tem.

E1: Como assim?

Entrevistada: Se você tem uma visita, você vale. Quem tem o dinheiro...

E1: Quem tem visita então?

Entrevistada: Quem tem o dinheiro... se você não tiver você não vale nada.

E1: Mas é por causa da visita ou é pelo que a visita traz?

Entrevistada: É pelo que a visita traz. Se a minha visita traz muito, eu valho mais; se a sua visita não traz muito, você vale menos.

E1: Se uma visita quiser vir numa segunda-feira?

Entrevistada: Vê, mais num vê não. Só é dia de terça se quiser ver a gente, no meio da semana É numa terça ou numa quinta. Aí elas chama.

Entrevistada: E no domingo.

E1: As terças e quintas são dias extras pra quem não pode vir no final de semana, é?

Entrevistada: Tem, aí elas chama e...

E1: Independente da cara?

Entrevistada: Também! Não, é todas não. Num é todas não. Elas dá a desculpa qualquer coisa... tô dizendo é tudo por... por crasse sei lá.

E1: Quando tu sair tu vai pra casa da tua mãe. Tu pretende fazer o quê?

Entrevistada: Eu pretendo? Arrumar um emprego, trabalhar e cuidar dos meus filho.

E1: Trabalhar com o quê?

Entrevistada: Eu? Eu já tenho um emprego certo pra quando eu sair daqui.

E1: Ah é?

Entrevistada: Trabalhar com a minha tia, que ela vende roupa. Ela é crente. Ela disse que já ta lá a vaga me esperando, não vou ter a oportunidade de fazer nada de errado mais, nem quero.

E1: Aí pode até pensar em começar a virar empresária.

Entrevistada: Pode ser, ?! De assim ter uma loja e depois...

Entrevistada: Sabe porque dessa vez eu num volto mais pra cá? Nessa minha queda até já apanhei aqui dos ASPE. Tem que falar, ?!

E2: Fique à vontade.

Entrevistada: Cês nunca.. já escutaram o famoso rupinol?

E1: O Famoso o quê? Rupinol? O que é isso?

Entrevistada: É uma droga.

E1: Nunca ouvi falar.

Entrevistada: A pessoa fica drogada

E1: E eles deram em você?

Entrevistada: Vocês já... vou ser mais... é... assim mais aberto boa noite cinderela...

E1: Ah, já.

Entrevistada: Pronto aí uma vez... tem 22 ano, aí desacatei um ASPE, que ele já saiu daqui da unidade, vocês já... acho que vocês conhece...

Entrevistada: Ele queria bulir em mim. Botou spray de pimenta no meu olho, só que num pode, ?! Bater nas presa... só que aqui eles faz o que quer. Por isso que eu num quero mais. Não quero nunca mais eu tô aprendendo essa cadeia aqui ela... a pessoa... caí da primeira vez, num querer voltar mais não, é muito sofrimento só a saudade da família... A pessoa tá longe de casa de noite... tudo esquematizado e tu presa o dia todinho numa cela com pessoas que você nunca viu.

E1: O que é pior de ficar na cela?

Entrevistada: A cela? Nada. Ficar presa com gente que você, não sabe sentimento nem a mente dela, nem o que é que ela tá planejando com você.

E1: Tu tem medo dela?

Entrevistada: Se você agradar tá tudo bem e se você num agradar? Sabe se você vai dormir vai levar uma facada, se ela vai fazer alguma maldade com você...

E1: Então que tu mais tem medo aqui é das presas?

Entrevistada: Porque é muita covardia.

E1: Tu tem medo de morrer lá fora? Tu achava que tu podia morrer traficando?

Entrevistada: Eu se eu tenho medo de morrer lá fora? Traficando?

E1: É. Quando tu traficava tu tinha medo de morrer? Tinha medo de vir pra cá?

Entrevistada: Eu tinha medo de morrer aqui.

E1: Tu não tinha medo de morrer mas tinha medo de vir pra cá?

Entrevistada: Eu tenho medo da cadeia.

E1: Na primeira queda?

Entrevistada: Não na primeira queda não, mas na segunda eu dormi porque eu já sabia como era e assim quando a pessoa vai simbora a pessoa já fica conhecida, ?! Quando eu voltei agora eu já conhecia alguém e... mesmo assim a pessoa num dorme não, porque fica aquilo... só de pensar que você voltou pra esse lugar, tá presa, de novo, a mesma rotina, tá entendendo? É... Fica só pensando na... cai em depressão aqui dentro. Se num aguentar tem uns que endoida. É três tipo a cadeia: ou endoida, ou pula o muro, ou se mata. Ainda não cheguei em nenhum desses três, graças a Deus! Tentar pular o muro pra ir simbora, tentar se matar, não quero não isso pra mim não, eu tô tentando ser cabeça de gelo.

E1: Por que tu acha que tu é diferente dessas pessoas?

Entrevistada: Eu já... o quê? Diferente não, já veio na minha cabeça já.

E1: Já?

E2: E o que foi que te fez não fazer?

Entrevistada: Medo. Assim...

E1: Então você tem medo sim de morrer.

Entrevistada: Porque o negócio das presa aqui é se cortar, vocês já viro? Pronto... aí eu num sei porque eu fiquei assim... vai que eu dou numa... em mim pega numa veia dessa? Aí eu morro mesmo.

E1: Mas num é a intenção não? Quando a pessoa se corta?

Entrevistada: Sim a intenção é de se matar.

E1: É, é...

Entrevistada: Mas, ao mesmo tempo, eu fiquei com medo.

E2: De morrer?

Entrevistada: De morrer!

Entrevistada: Cês tão entendendo?

E1: Hanram.

Entrevistada: É meu baguiu é oto. Aqui dento a pessoa fica meia doida sabia? Num sabe nem o que se fala e conversar com outras pessoa assim...

E1: Tu num dissesse que preferia morrer do que tá aqui? Mas tu num tem coragem, né?

E1: De verdade, tu acha mesmo que tu preferia?

Entrevistada: De verdade?

E2: De coração

Entrevistada: De coração, não.

Entrevistada: Porque o meu mundão me esperando.

E1: É

Entrevistada: E, assim, a pessoa fica meia... de conversar com outras pessoa porque presa é diferente é outra conversa, é outro jeito e aí... conversa com presa é só conversa... é outra conversa, entendendo? É outro crima.

E1: Tu num gosta muito de conversar com presa?

Entrevistada: Eu passo o dia todinho dormindo, deitada. Por isso que eu pego esses remédio, pra dormir eu gosto. Não, eu num gosto nem de sair pra fora. As mulé diz que eu tô doida, já diz que eu já passei dos três. Eu digo: quem passou foi tu. Porque quando abre os pavilhão, todo mundo sai pa fora, pa tomar um ar puro, mesmo que seja nesse quadrado, mai é um ar puro, né?! Mai eu num vou não. Eu fico só da porta da cela, olhando com vontade de chorar, sentindo falta. Chega, assim, a boquinha da noite, a família da gente, a mãe da gente fai café, tá entendendo? Aí dá raiva, a pessoa aqui. A pessoa também tem que aguentar, porque se você fez. A pessoa num procurou... num sabia que era tão ruim assim, né?! Posso fazer nada, quando Deus quiser ele dá a liberdade da gente. Eu peguei 6 ano, mai eu vou mimbora, porque eu caí em 2008, aí o tráfico era 1/6 aí eu tenho que tirar.

E1: Mas tu acha que tu é diferente das pessoas que não tão aqui?

Entrevistada: Diferente não né?! Que a gente é ser humano, mas por outro lado a imagem né?!

E1: Tu acha que tua imagem é diferente?

E2: Eu vou ser mais forte na pergunta. Você acha que carrega uma marca e que essa marca é visível pra todo mundo que tá ao seu lado?

Entrevistada: Pra todo mundo não. Carrega, carrega, mas pra todo mundo não. Mas pa muita gente... Principalmente assim, pronto... gente de crasse já olha pra gente de outra forma.

Entrevistada: Só quem num esquece da gente é a mãe da gente, mai o resto.

Entrevistada: Até meu irmão me esqueceu.

História 8

Entrevistada: Agora eu querendo ir embora, não vejo a hora de ir embora. Porque não tão dano nenhuma oportunidade e não me dão lá fora. Nesse momento eu passando uma dificuldade terrível aqui, ainda tô sem visita, tem ninguém, algumas companheiras. Eu fui presa em 98, tirei 8 ano. Aí fui pra rua. Passei 4 anos na rua, num tive nenhuma oportunidade. Fui pu tráfico, fui presa por assalto, mas revoltei, ?! Pou, passar pior do que passei.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque da outra vez eu tinha minha mãe, assim, eu ainda tenho a minha mãe, mais ela tava do meu lado. Agora ela num tá.

E1: Por quê?

Entrevistada: Ficou magoada, né?!

E1: E assim como foi a tua infância? A tua vida em casa?

Entrevistada: A minha infância num foi legal não. Tome filho lá em casa, a gente num tem pai. Foi criado só por minha mãe, então num foi uma infância, ligado? Me envolvi no crime tinha 12 ano. Fui logo rua, devido minha mãe arrumou um padrasto. Ele dava muito, aí fugi.

E1: Fosse morar onde?

Entrevistada: Na rua. E na rua fiquei até meus 15 ano. Ele brigava, batia em mim. Ele dava muita ordem eu num queria ouvir aí fui pá rua aos 15 ano. Eu me casei, arrumei um rapaz, moramo junto, aí a gente passou a robar né que nem trombadinha. Cheirando cola, robano no meio da rua, aí conheci ele, depois casei com ele, vivia robano, aí fui presa eu e ele.

E1: Antes vocês nunca foram pegos não?

Entrevistada: Não, não, fui presa de menor.

E1: Aí foi pra...

Entrevistada:Pra Febem, ?! Que solta mais rápido.

E1: Aí tu já fosse várias vezes ou...

Entrevistada: fui 3 vezes presa de menor e 2 de maior.

E1: E como era lá?

Entrevistada: Lá era legal lá.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque lá tinha... a gente tinha mais proteção, tem mais cuidado porque somo de menor ?! Tinha responsabilidade com o próximo e aqui a gente é de maior, aqui é por conta própria. Toma porrada deles e a gente num pode bater ?! Tá entendeno? É totalmente diferente.

E1: Tu usava droga fora a cola, o crack?

Entrevistada: Fumo até hoje.

E1: E a cocaína?

Entrevistada: Apareceu o crack em 2000 já, né? Eu já tava presa, quando apareceu.

E1: Mas você usou?

Entrevistada: Usei. Já tava aqui dento. Usei aqui dento. Na rua, quando eu passei os quato ano na rua, era usuária.

E1: Tu deixou na rua?

Entrevistada: Deixei aqui dento mermo de fumar. Eu fumei um ano o crack aqui dento. Eu fui presa em 98 e me soltei no final de 2005. O crack apareceu em 2000. eu fumei aqui um ano.

E1: O que a rua trazia para aqui?

Entrevistada: Quando eu tava na rua num sei, só aventuras.

E1: É bom fazer aventuras?

Entrevistada: Sei lá, acho que não. acho que ainda vivo essas aventuras. Vou fazer 31 ano.

E1: O que é aventura?

Entrevistada: O que eu vivo.

E1: E o que faz em sua vida?

Entrevistada: Assim, eu trabalho, eu trafico.

E1: Você gostava de morar na rua?

Entrevistada: Não gostei. Arrumei um marido; ficou melhor. Depois que eu fui morar numa casa, arrumei um marido e fui morar com ele.

E1: Tu chegasse a se prostituir?

Entrevistada: Humrum.

E1: Ganhava quanto?

Entrevistada: Não, eu era virgem, aí num ganhava muito dinheiro não né?! Porque só mastubava os cara, tinha medo de ser estrupada.

Entrevistada: Era virgem, morava na rua.

E1: Aí tu só falava isso era?

Entrevistada: Com medo dos home, né?! As menina também, né?! Então não compensa, ?! Pá minhas amiga pra ninguém. Eu tinha namorado, mais num fazia as coisas... Aí quando conheci esse rapaz perdi com ele minha virgindade.

E1: Tu tinha medo de vir pra cá?

Entrevistada: Não, segunda queda agora fiquei um pouco assim, querendo a gente já sabe como é amanhã. Aí a segunda vez é mais doloroso você voltar. A primeira vez é ainda mais gostoso vou pu Bom Pastor, vou lá visitar. (risos)

Entrevistada: A primeira até que não é tão horrível, visse. Passei ocho ano aqui. Eu tinha dinheiro, tinha minha mãe, num me aperriava com nada. Agora não, tô sofreno, num tenho uma visita, num tenho nada, num tenho ninguém.

E1: O problema maior é a visita?

Entrevistada: É, porque eu vivo presa e abandonada. Eu tô abandonada. Eu tinha marido. Eu tô presa, agora, mais por causa do meu marido, ficava presa aí num sei o que ficava melhor ele, ?! Aí arrumou outra mulher. Minha mãe nem vem e no começo ele me usava.

E1: Na cadeia ele arrumou outra mulher?

Entrevistada: Na cadeia de home vai demais presa e tal.

Entrevistada: Não, quando eu voltei tinha uma casa enorme, meu cachorrinho. Aqui dento aprendi a traficar, dento da cadeia aprendi a traficar.

E1: Aí tu traficava aqui dentro mesmo?

Entrevistada: Traficava aqui dento mermo, na rua também. Saí, fui pegar na casa da minha mãe uns crackzinho. Aluguei uma casa, comprei os móvel. É rápido demais ganhar dinheiro: 2 dia sai rua vende crack.

E1: Ganhava quanto por dia?

Entrevistada: Eu vendendo 5 bolsa, era 500 reais.

E1: E um dia tu vendia mais ou menos 5 bolsas?

Entrevistada: Vendia até mais.

E1: Uma bolsa era quanto?

Entrevistada: Uma bolsa de 30 peda, são 20 do dono e 10 da pessoa.

E1: É meio lucrativo.

Entrevistada: É meio lucrativo. (risos)

E1: E quando tu traficava, tu pensava o quê?

Entrevistada: traficar.

E1: Por causa do dinheiro?

Entrevistada: Por causa do dinheiro e correr da poliça. A poliça embaça mermo, pega o crack, a gente é pega, é uma locura.

E1: Tu já sabe o que vai acontecer ?! Tu gostava?

Entrevistada: Eu gostava. Você arruma inimigo traficante também, por exemplo: você trafica na área, minhas peda tão maior, o crack é do bom, aí aquela confusão tô ganhando dinheiro na frente dela.

E1: Você tem medo disso?

Entrevistada: Não, eu gosto.

E1: gosta (risos).

E2: Quando tu saísse daqui, o que tu aprendesse, aqui, usasse lá fora?

Entrevistada: Uso maconha, mas pra ganhar dinheiro não.

E1: Mas a cocaína, não?

Entrevistada: Cocaína de vez enquano.

E1: É mais caro, num é?

Entrevistada: Assim, por exemplo: quero fazer uma festa. Aí vendo 5 bolsa hoje, as vezes 3, 4 aí dá 2000, 3000 aí, tá entendeno?

E1: Tu, quando traficava, ganhava muito dinheiro?

Entrevistada: Primeiro comprei meu móveis tudinho.

E1: Tu conhecesse ele na rua, não foi?

Entrevistada: Foi numa festa, aí ele era o traficante. Só tem...

E1: Como é isso? As mulheres gostam mais dos traficantes?

Entrevistada: Dos traficantes, dos ladrão, chega na festa é um moi de gente.

E1: Uma festa aonde por exemplo?

Entrevistada: Uma festa normal de traficante.

E1: Mas é no meio da rua?

Entrevistada: A gente aluga uma casa com piscina, essas coisa, os traficante mermo e os avião dos traficante.

E1: Aí todos já sabiam que a festa era dos traficantes?

Entrevistada: O traficante, por exemplo, é o traficante, então fulano não é, aí é o mesmo que fica com o dinheiro, aí os cara que é os traficante mermo.

E1: Mas tu já vai pra festa já sabendo que era dos traficantes?

Entrevistada: Sim, meus amigo, ?!

E1: Aí vai todo mundo?

Entrevistada: Vai todo mundo, chama quem conhece, por exemplo: meu amigo vai ter uma festa em tal canto e eu digo: intão! Aí vai eu, minhas amigas, meus amigos, já leva, tá entendeno? E aí a gente forma uma festa.

E1: E tem as mulheres que não gostam muito, sei lá, tem uma hierarquia? Sabe... sei lá traficante é melhor, depois vem aviões, depois quem não faz nada, enfim.

Entrevistada: Se eu quiser, geralmente, não vou ficar com uma pessoa liso igual a mim, né?! Eu vou querer ficar com um que tenha né? Se não fico melhor.

Entrevistada: Não, eu tava dizendo a minha colega ontem: eu quero sair, arrumar um trabalhador e que eu só arrumo bandido, eu não consigo (risos).

E1: Você tem vontade de ficar com um trabalhador?

Entrevistada: Não, acho assim, por isso eu tava dizeno: eu tenho que sair e arrumar um trabalhador, ter um filho e me aquetar.

E1: Mas tu acha que tu não volta?

Entrevistada: Dessa eu acho que vou voltar por homicídio. Vou matar 3 pessoa lá fora.

E1: Mas por quê? Tu recebeu proposta?

Entrevistada: Não, na minha casa morava eu e uma colega minha, aí eu vim presa e ela num traz uma calcinha pra mim. Cadê minhas coisa?

E1: Tu já ligou pra ela?

Entrevistada: Acho que ela já quebrou o chip, porque diz que o número nem existe mais.

E1: Mas não tem como tu pedir a tua mãe pra ir lá?

Entrevistada: Não, minha mãe não tá vino. Ela mora em Cavaleiro, eu tava morando em Olinda, eu morava em Casa Amarela.

E1: Tu já matasse alguém nessa história?

Entrevistada: Tava com 13 ano.

E1: Como foi?

Entrevistada: Assim, eu cheguei na rua novinha, era a novata no pedaço, aí eu fui fazeno amizade e tal, tal, tal, passei o dia acordada e de noite já dormia perto de casa. Num dormia dento da cidade, no papelão, como a turma dormia. Aí eu robava. omecei a robar, tinha umas mais velha que ela sempre tumava meu dinheiro, me batia e tomava meu dinheiro. Aí um dia eu ia o cara que eu ficava com ele , eu masturbava ele, aí eu vi de baixo do... porque ele deixava eu entrar no carro, eu pedia um cigarro aí ele pega lá no carro, aí eu vi de baixo do banco revólver aí eu peguei.

E1: Aí tu já fumava?

Entrevistada: Já fumava maconha e cigarro, cheirava cola. Aí fiquei, guardei o revólver lá num canto lá, trombadinha tem esses canto na rua. Guardei o revólver. Havia robado pra quando fosse de tarde, a hora que ela tumasse meu dinheiro no mesmo canto, vou matar ela agora.

E1: Tu pensasse muito antes?

Entrevistada: Não, só pensei que ia matar ela e pronto. Naquele momento quando peguei o revólver, peguei pensano em matar ela. Quando ela chegou perto de mim, cadê me dar o dinheiro, ela abriu a boca que olhei... aí tá tá tá.

E1: Desse quantos tiros?

Entrevistada: Tudinho, os 5.

E1: Pegaram quantos?

Entrevistada: Tudinho.

E1: Quantos pegaram nela?

Entrevistada: Eu num lembro nada que... eu não vi ela morreno.

E1: nada?

Entrevistada: Lembro não, eu vi assim, ainda tava viva.

E1: Mas e depois?

Entrevistada: Peguei o revólver, fui lá pá cabine e disse: matei uma mulé.

Entrevistada: Eu sabia que tinha matado ela, fui me bora.

E1: Mas tu olhasse assim pra ela, sei lá, se assutasse..., assim, ficasse a... se sentindo leve porque tinha matado?

Entrevistada: Fiquei nada. Eu vi ela assim, nunca mais ela ia vim dá em mim e pegar meu dinheiro.

E1: Tinha aliviado.

Entrevistada: Fui pra cabine lá e disse o policial. Cheguei lá cherano cola: oh! matei uma mulé.

E1: Por que tu foi falar?

Entrevistada: Aí ele disse: tu matasse o que minina? Tu tá é alombrada aí. Tumou minha cola, aí eu dei o revólver a ele, aí fui presa.

E1: Mas por que tu fosse procurar o policial?

Entrevistada: Porque eu num tinha que entregar a arma pra alguém?

E1: E por que tu num entregasse pro taxista?

Entrevistada: Aí ia dizer quem matou essa mulé? O taxista.

E1: Mas como tu sabe? Se ninguém sabia qual era a arma?

Entrevistada: Mulher, mulher, peguei a arma com o taxista, muita gente viu quando eu atirei nela.

E1: Tu num pensou em jogar fora a arma, deixar com ele? Tu nem levasse ela pra nenhum canto, não?

Entrevistada: Eu não. Foi no mermo canto onde ela tava.

E1: No meio da rua? Todo mundo vendo?

Entrevistada: Ela num dava em mim todo mundo veno? Ttodo mundo num ficava mangano de mim? Num me desmoralizava? Nunca mais ninguém quis dar em mim.

E1: Tu acha que valeu a pena?

Entrevistada: Lógico, que ela só queria ficar me bateno. Toda vez, ela me batia e as outras amiga tirava onda.

E1: Por causa disso tu passou 51 dias lá, tu num sabia que tinha matado?

Entrevistada: Ela não.

E1: Tu acha que foi bom pra o teu convívio lá com as pessoas?

Entrevistada: Ganhei moral, ?!

E1: Aí quando tu saiu, tu já tava tranquila, ninguém mexia contigo?

Entrevistada: O povo tinha medo de mim, ?!

E1: Ninguém num já tentou te matar não?

Entrevistada: Só a polícia, até aqui dento eu arengo com a poliça. Odeio eles. Eles não gostam de mim.

E1: E tu ainda fosse fácil. Tu matou uma mulher e fosse correr pra polícia.

Entrevistada: Não, porque eu tinha que entregar a arma pra o cara não ser preso por minha causa.

E1: Você não queria que ele fosse preso?

Entrevistada: Não. Porque poderia ter registro dessa arma, tá entendeno? Assim, quando uma arma é comprada, robada num dá probrema não. Mas ele andava com aquela arma, deixava tão disponível que ele deveria ter registro ser dele né?!

E1: Mas ninguém perguntou onde tu conseguisse a arma?

Entrevistada: Eu disse, robei.

E1: Aí depois desses 51 dias tu voltou pra rua? Ou pra casa da tua mãe?

Entrevistada: Eu voltei pá casa de mainha.

E1: E a tua mãe soube?

Entrevistada: Soube. Eu fiquei sob a responsabilidade de mainha. Eu fiquei 2 meses em casa. Mainha disse: se você sair, a mulé disse que eu vou presa. 2 meses dento de casa, aí eu saí com meus amigo, aí a gente inventou de assaltar um ônibu, aí a gente foi preso de novo (risos).

E1: Aí tu foi pra lá de novo?

Entrevistada: Aí eu fui lá de novo.

E1: Aí tu passou um tempo lá, aí tu voltou pra casa? O ônibus tava cheio?

Entrevistada: Tava, minha tia tava dento do ônibu (risos) foi foda essa. Quando eu olhei, minha tia dento do ônibus. A gente num entava pu trás, aí quando a gente entrou no ônibus aí minha tia tava sentada bem assim, no banco de trás, quando a gente tava fazendo o assalto ao cobrador que eu olhei pra trás... a gente robava o cobrador, os passagero, todo mundo, aí eu eita pôrra minha tia.

E1: Tu chegou a entrar pela catraca?

Entrevistada: Não, eu pulei, aí eu, minha tia! Pronto. Aí a gente já desceu no canto errado. Aí a gente foi preso.

E1: E aí ela não falou nada?

Entrevistada: Ela viu tudo, ?!

E1: Ela não falou nada pra tu?

Entrevistada: Ela ia falar o quê?

E1: Aí vocês desceram. Foram presos.

Entrevistada: Foi, aí a gente andou um pouquinho... tinha uma pedra...aí a gente pegou os revolve, colocou de baixo daquela pedra e saiu andano. Porque eu assaltava que nem homem, aí dizia que era 3 home, eu era bem maguinha.

E1: E por que tu não soltou os cabelos pra ninguém achar que era tu?

Entrevistada:Mais eu tava perto dos menino. Tem que ficar junto... eu por exemplo: assim, se robar tem que ser nós duas.

E1: Pegar, pega as duas, num é cada um por si não... porque tu podia ter fugido assim no caso...

Entrevistada: Oxe, foi muitcho rápido. A gente desceu do ônibu, colocou as coisa de baixo da pedra, a polícia já tava na frente da gente.

E1: Mas você poderia?

Entrevistada: Assim, quano a gente fez o assalto, em banco, que eu fui presa, aí foi cada um por si, tá entendeno? Eu já era de maior. O baguio já era mais novo.

E1: Vocês ficaram com alguma coisa do roubo?

Entrevistada: 50 mil.

E1: E aí dividiram?

Entrevistada: Eu e meu Mario. Eu ganhei 50 mil, ele 50 mil. A gente comprou uma casa, uma mansãozinha. Nessa época só quem tinha vídeo-cassete era a gente, rico, 96, 97 essa época. Aí a gente viajou fo pá São Paulo, foi uma onda.

E1: Tu tem quantos anos?

Entrevistada: Eu vou fazer 31.

E1: Se tu pudesse voltar no tempo, tu mudava alguma coisa?

Entrevistada: Eu tinha mudado... eu tinha estudado aeromoça, como eu pensava.

E1: Tu tinha vontade de ser aeromoça?

E1: Tu pensava desde quando?

Entrevistada: Quando eu estudava.

E1: Tu estudasse até que série?

Entrevistada: Eu fiz até a quarta série.

E1: Tu nunca trabalhasse assim... em alguma coisa...

Entrevistada: Eu tava trabalhando quando fui presa. Agora, tava fazeno faxina.

E1: Tu fazia faxina.

Entrevistada: Duas veze na semana.

E1: Aí tu fazia a faxina, saía e traficava?

Entrevistada: Por causa do Marcone. Porque eu tava só nas manhã.

E1: Tu num tais com nada na tua cabeça, quando tu sair daqui?

Entrevistada: Eu num sei nem pá onde eu vou. Eu ia ficar em casa, mas minha mãe não vai me receber.

E1: Tu acha que a tua mãe não vai te receber?

Entrevistada: Não, eu num vou na casa de mainha, mais eu num vivia lá, num vou agora não.

E1: Por que não?

Entrevistada: Porque não deu certo. Eu tentei da outa vez num deu.

E1: Tu e tua mãe brigam muito?

Entrevistada: Não, eu e ela assim, eu num consigo me adaptar dento da casa da minha mãe não. Tem que arrumar uma casinha mim.

Entrevistada: Só espero que eu não faça nada disso, ?! Assim, quando eu sair, quem sabe é Deus, ?! As coisa.

E1: Tu num quer matar? É isso?

Entrevistada: Quero não.

E1: Então, por que tu num deixa isso pra lá?

Entrevistada: Quero minhas coisa de volta, né mulé?! Eu vendo uma empadinha, umas pedinha, eu num tenho visita, num tenho nada. Eu tenho que ganhar um trocadinho. Aí, eles ficam me ferrano, mas num me dão emprego. Num é não mulé? Na moral, num podia me dar um emprego? Todo mundo trabalha.

E1: O que é o Bom Pastor?

Entrevistada: Bom Pastor.

Entrevistada: Assim é outo mundo o Bom Pastor. A gente é privado de praia, shopping, cerveja...

E1: O que é que tu mais levava na rua dessas coisas?

Entrevistada: De crack.

E1: E aqui o que tu mais gosta?

Entrevistada: Aqui eu não gosto de nada (risos).

E1: Tem nada que tu ache bom aqui?

Entrevistada: Nada aqui é bom.

E1: E aqui o que tu mais odeia?

Entrevistada: As ordens, é muitcha orde.

E1: E qual é a pior ordem?

Entrevistada: Ficar trancada o dia todinho na cela.

E1: Quando tu veio da primeira vez num era assim não ?!

Entrevistada: Não, era aberto, agora pior, agora tranca.

E1: Só sai pra comer. O que mais mudou da primeira pra segunda queda?

Entrevistada: Mudou tudo.

E1: Tudo o quê? E pra você?

Entrevistada: Pra mim, também.

E1: Quando tu chegou aqui da segunda queda, o que foi que mudou pra tu?

Entrevistada: Eu voltei a ser ruim.

E1: Tu num era não? Tu era, parou de ser e aí depois voltou?

Entrevistada: 24 ano na rua eu tava mai... aí aqui dento... num tinha ninguém, num quem é...

E1: Você precisa ser mais dura que quando você sair, você acha que vai sair mais justa?

E1: Sim... só mais uma pergunta. Tu acha que pode mudar o que aqui? Pra que quando tu sair, tu não volte pra cá?

Entrevistada: Assim, eles deveriam ressocializar a gente.

E1: Tu acredita em ressocialização? E tu acha que aqui ressocializa?

Entrevistada: Não, aqui não. Quando a gente saísse, eles deveriam ter uma firma só pra aquelas pessoas que já foram presas. Aí, ter o salário da gente e tal tá entendeno? Porque nem na própria comida quer dar um apoio, pôrra aí vai fazer o quê? Tudo de novo, se a gente é obrigado a ter o sofrimento, entendesse? Eles deveriam pegar a firma e tal. Isso, aquilo, tá entendeno? Aí se fizesse muitcha você tá teno o apoio de alguém. Ninguém confia em você nem seus vizinho e nem a sua própria família.

E1: Você acha que vai ter oportunidade quando sair daqui?

Entrevistada: De quem?

E1: Da sociedade toda.

Entrevistada: Da sociedade espero de vez enquano. Passa o negoço na televisão.

E1: Tu vai procurar emprego, essas coisas?

Entrevistada: Não, quando eu me soltei da primeira vez, vivia nas loja, o cara me chamou levei os documento, dei minha identidade a ele, ele voltou, quem é [fulana] nem perguntei porque, ?! Ele puxou lá o nada consta.

E1: Tu acha que foi isso?

Entrevistada: Lógico.

E1: Aí tu num vai tentar mais?

Entrevistada: Pra que? Todo canto vai ver quando puxar lá meu...

E1: Mas ele pode até tentar mesmo um ex- presidiário. Então, vai fazer o que quando sair daqui?

Entrevistada: E eu sei.

E1: Tu num pensa não?

Entrevistada: Penso não.

E1: Tu vai ficar aqui quanto tempo?

Entrevistada: Também não sei. São dez mese eu ainda vô pá audiência... vou dizer que num sei de nada.

História 9

Entrevistada: Eu comecei a fazer coisa errada ir presse mundo errado, quando minha vó faleceu. Eu perdi minha mãe, perdi meu pai, aí eu comecei. Fiquei com a cabeça baratinada, aí comecei a cheirar cola, fumar crack, fumar maconh. Aí, depois comecei a roubar, ai vim presa. Eu tenho 3 queda no Santa Luzia, quando eu era de menor. Aí com 18 anos foi que eu conheci aqui a Colônia Bom Pastor. Aí passei 2 ano e alguns dias fui sentenciada, no semi-aberto não tive direito de ir pro semiaberto, saí na condicional.

E1: Viesse pelo quê?

Entrevistada: Agora?

E1: Não, antes.

Entrevistada: Na primeira?

E1: Sim.

Entrevistada: Assalto. Aí, saí não fui assinar fui só 4 meses e fui no próximo... aí ela não deixou porque eu tava de bermuda, aí eu não fui mais aí comecei a traficar aí vim presa de novo. Aí tô aqui, mas sendo que graças a Deus ganhei o alvaral do 33 que é da segunda queda do tráfico e tô aqui porque causa do... da primeira queda, porque eu quebrei a condicional é de 6 meses a 1 ano. Eu já tô com 9 meses... vou fazer 10 e, sei lá, eu quero ir mimbora e fazer de tudo... de tudo pra não voltar mas pra cá, ?! Mas independente de qualquer coisa, se eu não arrumar um trabalho, porque eu preciso. Não dependo de homi na rua, dependo de mim mesma. Independente de qualquer coisa se eu não conseguir um trabalho esforçado eu vou fazer a mesma coisa.

E1: Tu tem quanto anos?

Entrevistada: Eu tenho 21, vou fazer dia... 22 sábado.

E1: Tu tem filho?

Entrevistada: Não.

E1: Tu estudasse?

E2: Fizesse até que série?

Entrevistada: 4ª.

E1: O que é que tu lembra da tua infância?

Entrevistada: Rapaz... sei lá... fui maltratada, num tive uma boa família.

E1: Por quem? Tu era maltratada por quem?

Entrevistada: Minha madrasta, mas hoje em dia eu venho pensando se eu tivesse seguido o que ela fez por mim, antigamente, eu não tava aqui.

E1: Quando tu diz: 'eu fui maltratada', significa o quê?

Entrevistada: Sei lá, porque ela dava em mim, queria mandar em mim.

Entrevistada: Eu morava com meu pai e com minha vó, que me criou, que faleceu e ela morava com outro homi. Aí, teve um certo dia que meu pai, no dia do meu aniversário ele... eu tenho um presente pra dar a você e é muito importante. Eu disse tá bom ai ele me levou pra casa da minha tia na Torre. Foi lá que eu vi a minha mãe pela primeira e última vez

E1: E por que tu não continuasse vendo ela?

Entrevistada: Porque ela sumiu...

Entrevistada: Sim, pra mim ela morreu. Ela num procurou mais saber de mim.

E1: Mas tu procurasse saber? Tu fosse lá... Como é que foi esse encontro?

Entrevistada: Meu pai me levou, né?! Pra casa da irmã dela, na Torre. Aí quando eu cheguei lá, tava ela e uma menina, que no caso é minha irmã, que eu num sabia e um rapaz. Aí eu no quarto da minhas prima brincando aí ela entrou... aí ela disse mermo assim: sabia que eu sou sua mãe? Aí eu simplesmente comecei a chorar e abracei ela. Aí a gente passou o dia. À tarde, aí finalzinho da tarde, eu e meu pai foi simbora e ela ficou lá.

E1: Passaram o dia fazendo o quê?

Entrevistada: Conversano. Ela me deu atenção.

E1: E por que...

Entrevistada: Ela ainda me explicou o motivo de ter se separado do meu pai, ela disse que...

E1: E qual foi?

Entrevistada: Ela disse que deixou meu pai, porque meu pai batia muito nela e ela já num sentia mais nada por ele. Aí ela foi procurou uma vida melhor. Aí minha vó pediu pra ficar com minha guarda. Ela foi, num fez questão de ir pra justiça esses negócio todo... Deixou. Aí pronto.

E1: E por que depois tu num... tu perguntasse dela pro teu pai?

Entrevistada: Eu não...

E1: O teu pai batia na tua madrasta?

Entrevistada: Quando ela procurava. Porque ela, né?! Boazinha não, ela é rim.

E1: Ele batia em tu?

Entrevistada: Não. Eu tinha... tava perto de fazer os 12 ano. Eu estudava num colégio de freira, lá no Derby. Aí sempre quem ia me levar e me buscar era ela. Aí nesse dia quem foi, foi minha madrasta. E foi antes do horário de eu largar porque eu pegava, eu pegava e 7 da manhã e saía de 5 da tarde, porque de 7 até às 12 era aula normal e das 12... vamo supor de uma até às 5 era aula de crochê, de tricô...

Entrevistada: Aí eu pegava de 7 e largava de 5. Aí ela foi, antes do horário, dizendo que tinha que me levar e eu escutei a conversa... ela conversando na diretoriacom a freira aí ela disse que minha vó tinha falecido.

E1: E tu?

Entrevistada: Eu me desesperei. Aí, a gente foi na pedra do Barros Lima, aí ela tava lá aí eu vi ela. Ela tava com a metade do rosto dela roxo, acho que foi derrame. Ai eu mandando ela levantar, chorando desesperada aí pronto. Daí eu disse pronto perdi tudo que eu tinha. Aí comecei a fugir de casa, comecei a andar com gente errada, aí pronto. Me envolvi nesse mundo da vida errada.

E1: A partir daí?

Entrevistada: Se eu me arrependo? Me arrependo.

E1: Qual era o conselho que tu disse que devia ter escutado da tua madrasta?

Entrevistada: Quando ela... Quando eu queria ir pros brega, eu pequena queria ir pros brega, e ela dizia que não, que eu tinha que crescer, que eu tinha que estudar aí eu achava que ela queria mandar em mim. Aí eu dizia sempre a ela: você num é minha mãe, não, pra mandar em mim não, mas se eu tivesse escutado isso, eu tava aqui? Num tava. E eu acho que eu já tinha acabado meus estudos...

E1: Tu culpa tua mãe por estar aqui?

Entrevistada: Não.

E1: Tu acha que se não fosse ela, se ela tivesse junto de tu, tu acha que poderia ser quetu não...

E1: Poderia ser diferente?

Entrevistada: Eu não... Não ia fazer essas coisa, que eu já fiz, se eu tivesse atenção da minha mãe ou se minha vó ainda tivesse viva, eu não tava não aqui não.

E1: Tu deu entrada na Santa Luzia com quantos anos?

Entrevistada: Duas queda: com 16 e uma com 15.

E1: Foi por quê?

Entrevistada: Roubo.

E1: E tu acha que começasse a roubar assim por quê?

Entrevistada: Por causa do crack.

E1: Por causa do crack. E tu se viciasse com quantos anos?

Entrevistada: Hum?

E1: Tu se viciasse com quantos anos no crack?

Entrevistada: Com 12

E1: E teu pai? Ele sabia?

Entrevistada: Hum?

E1: Ele sabia?

Entrevistada: Assim, ?! Eu acho que ele nunca soube que eu já fui dependente do crack.

E1: Tu acha mesmo?

Entrevistada: Acho que ele nunca... da cola sim, porque ele já pegou, já fragou uma vez no dia que ele foi atrás de mim pra me levar pra casa. Eu tava reunida com um bocado de maloqueiro tudo cheirando cola. Aí, quando eu avistei meu pai de longe, assim... aí eu fiquei pensando: acho que isso é lombra. Aí, eu continuei cheirando, quando eu vi era verdade, ele já tava perto, em cima de mim. Ele segurou meu braço: minha filha eu não acredito não, bora simbora pra casa! Eu joguei a cola assim no chão e fui mimbora pra casa com ele, mas depois fugi de novo e não voltei mais.

E1: Quantos anos tu tinha quando tu não voltou mais?

Entrevistada: Eu tinha 1. Aí passei 3 ano e pouco sem ir pra casa

E1: Na rua?

Entrevistada: Na rua. Aí, depois eu mesma comecei a ir. Aí ia, aí quando tava bem maguinha, aí ia ficava em casa, comia, comia me alimentava bem, quando eu tava bem fortezinha, eu pegava fugia de novo ia mimbora pra rua de novo.

E1: E teu pai dizia o quê? Tu acha que não sabia que tu era viciada em crack.

Entrevistada: Ele podia ter alguma suspeita, mas certeza não.

E1: E... E como foi morar na rua? Primeiro, por que tu... tu... cheirava cola?

Entrevistada: Sei lá.

E1: Assim, geralmente as pessoas... É... que moram na rua cheiram cola porque ficam com fome, ? Aí pra enganar a fome... Cheirar cola engana fome, né?

Entrevistada: É mais eu comia, eu me alimentava bem.

E1: É, é...

Entrevistada: Eu cheirava cola...

E1: Por que? Era...

Entrevistada: Sei lá, era por causa da lombra, a lombra.

E1: Qual é a lombra?

Entrevistada: A viagem... sei lá sei nem explicar isso a vocês.

E1: Sim, mas tu disse que tu passasse... quanto tempo sem ir em casa?

Entrevistada: Três anos e pouco.

E1: Quando tu voltou, teu pai disse o quê?

Entrevistada: Ele perguntou onde eu tava. Eu disse que tava no... eu vivia muito em abrigo quando eu num... pensava em ir pra casa: não, pra casa não. Aí, ia no conselho tutelar da Fernandes Vieira aí dizia: eu não tenho família não, eu quero ir pro abrigo. Os conselheiro já sabia já o meu sistema. Mandava eu esperar, me botava na Kombi e me levava. Quando eu tava bem gordinha, eu fugia de novo, sempre nessa. E aí eu fui crescendo, ficando.. Como é que se diz...

E1: Tu fazia o que na rua além de cheirar cola?

Entrevistada: Pintava o 7.

E1: O que era pintar o 7?

Entrevistada: Roubar, furar os oto, dale, tirar onda.

E1: Qual era a sensação?

Entrevistada: E eu sei...

E1: Furar os outros... tu furava por quê?

Entrevistada: Se viesse tirar minha paciência, que eu não tenho um temperamento muito bom não, qualquer coisa eu me estresso.

E1: Tu tinha medo de morrer?

Entrevistada: Eu não, nem tinha e nem tenho.

E1: Não tem medo de morrer?

Entrevistada: Porque eu sei que um dia eu vou morrer.

E1: E medo de ir presa, nunca tivesse?

Entrevistada: Tinha.

E1: Tinha?

E1: Perdeu quando?

Entrevistada: Quando eu entrei aqui. Porque Santa Luzia eu num digo nem que é uma prisão, porque a gente dorme numa cama, tem um armariozinho com umas coisinha da gente, bom atendimento, tem passeio, estuda, faz curso, entendeu? Então eu num digo que lá é uma prisão. Que lá a gente num fica presa, como fica aqui. Lá a gente faz atividade. Cada uma tem seu dia de fazer faxina. Então pra mim lá é um... Sei lá é um centro de recuperação. Não é uma prisão. Prisão é aqui.

E1: Mas então aí... Tu num tinha medo de ir presa até chegar aqui, quando tu chegou na tua primeira queda, que tu saísse tu já tinha medo de ir presa?

Entrevistada: Não. Quando eu completei meus 18 ano, eu ainda num tinha medo porque eu achava assim que se eu mentisse, dissesse que era de menor os policiais ia acreditar porque eu sou franjinha, né?! Ninguém diz que eu tenho 21 ano, mas eu me enganei, ?! Porque fui roubar drogada de crack e a casa caiu.

E1: Mas aí tu começou a ter medo então quando tu chegou aqui, ?!

E2: Na primeira queda.

E1: Quando tu saísse tu tinha medo de voltar, não tinha? Então tu não tem medo de ser presa tem?

Entrevistada: Tenho não.

E1: Tem não.

Entrevistada: Agora é porque sei lá... aqui... Antigamente na minha primeira queda em 2007, aqui não era como é hoje em dia, era um atendimento melhor. A diretora era maravilhosa não é que nem essa daí. Apesar de que eu nunca falei com essa mulher, mas sei lá, mudou muito. É só tranca, tranca, tranca. Abre de manhã o café, tranca. Almoço, tranca. Seis hora o café, tranca. E antigamente num era assim não. E antigamente num era assim não, o raio ficava fechado mas a cela ficava tudo aberta.

E1: Hoje em dia ficam as celas fechadas, ?!

Entrevistada: Tudo fechado.

E1: Tu tem filho?

Entrevistada: Não

E1: Tu pensa em ter?

Entrevistada: Três. Dois menino e uma menina.

E1: Quais seriam os nomes deles?

Entrevistada: A menina Islaketlin, o menino Cauã Vitor e o outro Pablo.

E1: Como foi... como foi que tu conhecesse Fábio? Tu tinha quantos anos?

Entrevistada: Eu era novinha, tinha uns 14 anos.

E1: Aí tas com ele até hoje?

Entrevistada: Não. Quando eu conheci ele eu tinha, um marido que tá preso no Aníbal Bruno, que eu não tô mais com ele, passei 6 ano com esse meu marido, que tá preso meu ex, sendo que...

E1: Não, peraí, calma tu conhecesse Fabio com 14 anos, mas tu era casada?

Entrevistada: Era.

E1: Ah, entendi.

Entrevistada: Sendo que o amor da minha vida sempre foi ele. Eu sempre amei ele e eu comecei a ficar com ele quando eu me soltei da minha primeira queda. A gente, antes de eu vim presa, a gente já se envolvia, mas escondido.

E1: Então...

Entrevistada: Aí eu passei.

E1: Teu marido... teu ex marido já tava preso, quando tu começasse a se envolver com...?

Entrevistada: Não, eu me envolvia com ele escondida.

E1: Teu marido foi preso por quê?

Entrevistada: Eu vim presa primeiro, aí ele foi roubar, aí tava muito drogado, porque ele usava droga também e dormiu com os roubo perto dele, aí os homi chegou e levou ele.

E1: Mas ele tirou a cadeia contigo, ele vinha ti visitar?

Entrevistada: Ele foi preso e ele tá até hoje.

E1: Até hoje? Desde... foi quando isso?

Entrevistada: Assim... 2007. Eu agradeço muito a Deus, porque o que separou a gente foi a cadeia, porque eu passei com ele 6 anos. Foi três anos de amor, três anos de sofrimento. Ele me espancava, se eu tivesse com uma roupa mole e o vento batesse, era pau que eu levava. Ele é doente, doente! Não é ciúme, isso pra mim não é ciúme; é uma doença. Eu tenho uma cicatriz dele de uma facada aqui nas costas. Isso aqui foi por causa dele e eu sofri muito com ele, ele dava muito em mim, eu perdi um filho dele com 7 meses de gravidez.

E1: Por que tu fosse espancada?

Entrevistada: Ele dava muito em mim.

E1: E como é que foi, hein?

Entrevistada: Foi assim: eu peguei a bicicreta e disse mesmo assim eu vou lá em Santo Amaro buscar uma maconha pra gente fumar. Ele disse mesmo assim: tá bom, num demora não. Sendo que na boca num é assim: chegou, pegou. Tem que esperar porque tem fila. Aí nisso eu demorei 1 hora e meia de relógio. Quando eu cheguei, ele disse que eu tava cum outro macho, aí começou a dale em mim. Quando ele deu um rodo em mim, eu já caí de lado, aí ele começou a dale de cabo de vassoura, eu desmaiei quando eu tornei eu já tava no hospital.

E1: Aí quando disseram que tu tinha perdido teu filho como é que tu ficou?

Entrevistada: Me desesperei. Disse que não queria mais ele. Aí ele disse: no dia que tu me deixar tu num fica com homi nenhum , porque eu mato tu e o homi que tiver com tu. Aí assim, por isso que eu agradeço de ter vindo parar aqui e ele ter ido pra lá porque separou a gente. Aí, eu quando eu saí fiquei com Fabinho e até hoje.

E1: E ele vem te visitar?

Entrevistada: Não, aqui não, quando eu tava na outra cadeia em Paratibe. Cês já conhece Paratibe? Porque eu vim pra cá e fui de bonde pra lá e voltei pra cá, por causa de processo aberto. Tava lá em Paratibe, ele tava indo todo domingo. Mas aqui é uma polêmica, tem que dá entrevista, tem que fazer carteirinha... e isso... e ele num tem paciência porque ele também é meio estressado do juízo.

E1: E tu... tu fumava crack na gravidez?

Entrevistada: Fumava

E1: Mas tu num tinha medo não que teu filho morresse ou não nascesse...

Entrevistada: Tinha não

E1: E me diz uma coisa: quando tu era pequena, tu tinha algum sonho?

Entrevistada: Meu sonho... ser dançarina.

E1: De quê?

Entrevistada: De brega, de forró, qualquer banda.

E1: Tu dança bem?

Entrevistada: Eu acho que eu danço bem, né?!

E1: Tu dançava muito? Tu saía muito pra... pra ir pra show de brega?

Entrevistada: Com certeza! Quando eu saí daqui, meu deus do céu!

E1: Nunca tentasse não, dançar com alguma banda?

Entrevistada: Nunca tive a esperança, assim... nunca tive a... como é que se diz? A chance.

E1: Mas... tu agora tem o mesmo sonho? Qual é teu sonho agora?

Entrevistada: Ser dançarina, num muda não.

E1: Qual vai ser a primeira coisa que tu vai fazer quando sair daqui?

Entrevistada: Quando eu sair daqui...

E1: Ou as primeiras...

Entrevistada: Vou na minha casa ver meus irmão que eu mais amo. Depois vou na casa da minha sogra ver meu marido e a filha dele, que é mais duas coisa que eu mais amo, e depois pra balada.

E1: Pra festa? quanto tempo tu num vê teu marido?

Entrevistada: Faz uns 3 meses.

E1: 3 meses?

E1: E teu pai?

Entrevistada: Sei lá, sumiu do mapa também.

E1: Desde quando sumiu?

Entrevistada: Fai é tempo. Eu num marco não as coisa não. Eu deixo rolar. Eu deixo acontecer.

E1: Tu dissesse que tu se casasse com 14 anos, num foi? Mas tu morava na rua com ele? Tu morava na rua com ele?

Entrevistada: Mas a gente tinha um barraco lá na Ilha do Joaneiro. É porque a gente gostava mesmo de ficar na rua junto com os outros menino, aí a gente saía de madrugada pra roubar. Isso tudo pra mim era uma aventura.

Entrevistada: Mas hoje em dia eu num quero mais não, assumo. Eu vim aqui a primeira vez e prometi pra mim e pra Deus que quando eu saí disso aqui, eu não ia mais roubar e eu não roubei. Se eu for roubar agora eu fico com medo, eu fico nervosa.

E1: Por que?

Entrevistada: Num sei. Eu num consigo mais roubar.

Entrevistada: Quando eu tô estressada com a mente baratinada afim de ver a rua eu faço: vou roubar.

E1: Por que tu faz isso?

Entrevistada: Com raiva, quando eu tenho raiva, raiva mesmo.

E1: Tu toma antidepressivo aqui? Tu toma algum remédio?

Entrevistada: Eu tomava lá na cadeia né, nelzine pra dormir, mas aqui é um...

E1: Há quanto tempo tu não usa crack?

Entrevistada: O tempo que eu tô aqui: 9 meses.

E1: Faz falta?

Entrevistada: Faz não.

E1: E tu pensa.. tu... quando tu sair, tu quer?

Entrevistada: Quero mais não. A única droga que eu não deixo de fumar é a maconha.

E1: Por que tu começasse a traficar?

Entrevistada: Porque eu gosto de coisa boa. Eu gosto de dinheiro. É uma forma de ganhar muito dinheiro fácil é traficando.

E1: Assim você pode ter dinheiro por outros jeitos também. Tu pensasse?

Entrevistada: Como? Se prostituir...

E1: Não.

Entrevistada: Trabalhar...

E1: Trabalhar...

Entrevistada: Pra arrumar um emprego é uma dificuldade...

E1: Tu já tentasse? Alguma vez assim...

Entrevistada: Eu não e é muito ruim você querer, um exemplo, você vê isso aqui no shopping esse baldinho de jóias. Você quer, você num vai querer esperar, você vai querer comprar naquela hora. Aí pra num tá dependendo de ninguém, é melhor você depender de você mesmo. Você compra na hora que você quer, paga o quanto quiser... por isso que eu...

E1: Quando tu diz muito dinheiro, tu diz quanto?

Entrevistada: Eu... por dia?

E1: Por dia, hanram...

Entrevistada: Por dia eu ganhava 500, 600 reais.

E1: Trabalhando mais ou menos aonde... tua boca...

Entrevistada: Minha boca...

E1: É, é... a boca em que você trabalhava.

Entrevistada: Na encruzilhada.

E1: Por que isso também depende da área, ?!

Entrevistada: É.

E1: A maioria das pessoas que tu conhecia também traficava?

Entrevistada: Tem envolvimento com gente de bens que trabalha, que faz curso.

E1: Tu é gente do mal, então, porque tu num trabalha?

Entrevistada: Assim, ?! Pro meu ponto de vista, melhor do que porque eu faço coisa errada e eu conheço gente que num faz e que me dá conselho preu sair dessa vida, mas eu num...

E1: Mas a maioria das pessoas que tu conhece elas também traficam?

Entrevistada: Não.. são usuário.

E1: Se você fosse uma autora e escrevesse, qual seria a história de vida que você queria escrever pra você, hoje, saindo daqui?

Entrevistada: Quero ter meus filhos, arrumar um cidadão de bem que me bote dentro de uma casa, arrumar um emprego.

E1: Tu quer arrumar um emprego agora mesmo?

Entrevistada: E viver minha vida de boa, sem depender de traficando, me juntando cum esses povo que...

E1: Tu tem advogado?

Entrevistada: Tenho não, meu advogado é Deus.

E1: Deu pra guardar alguma coisa do que tu disse que ganhava por dia.

Entrevistada: Que isso é um dinheiro amaldiçoado, ?! Num é um dinheiro esforçado, suado, num instante voa.

E1: Pode dizer que ganhou hoje e hoje mesmo já?

Entrevistada: Por dia eu gastava 100, 200 250, 300, 400 Reais, só de besteira.

História 10

Entrevistada: Essa entrevista é muito importante para a gente que se encontra aqui presa, porque vocês que estão lá fora, vocês vê o que eles mostra, o que a direção mostra, que é um presídio que eles tenta mostrar que é bonito, que é organizado, entendendo? Mas que a gente sofre, vocês num sabe, entendendo, principalmente eu que presa há muito tempo nesse lugar. Já vi muita coisa errada, já fui espancada aqui, entendendo? Já fui espancada, a, só não sofro tanto porque eu tenho um marido que me ajuda, e que corre atrás, porque ele sabe, ele sabe o que ele faz, porque sabe que se mexer comigo; meu marido denuncia como já denunciou esse lugar, entendendo? Porque eu nunca vi um presídio... vendendo o trigo que é feito o pão que o Governo manda pra gente, a gente tem que pagar ali na cantina R$ 2,00 se quiser comer, viu? O pãozinho assado que é feito com o trigo que o Governo manda pra gente mesmo, a gente tem que pagar, entendendo?!

E1: E como é que é isso?

Entrevistada: A gente tem o direito do pão da bóia, mas só que, a gente quer comer um pão assado, tá entendendo? Mas eu não discriminando porque eles vende, porque sempre teve essa cantina ai, certo, mas o pão vinha da rua, porque o certo é esse. Se ele quer ficar com a cantina porque a cantina até de presa era, ele não tem precisão de ter uma cantina onde tem presa que precisa, porque antes essa cantina daí era de uma presa e num tinha nada ilegal, nunca teve nada de errado. Ela sempre funcionou melhor do que funciona hoje, porque hoje ele tem pena de investir. Ele só quer ganhar, às custa do Governo, às custa da gente.

Entrevistada: entendendo, num é isso, num é isso, então é errado. Hoje eles procura comprar tudo barato, carne assada vende na cantina, é pego aí. No Governo da gente, charque, é feito arrumadinho com feijão verde com tudo, às custa da gente, porque tudo é vindo pra gente.

E1: E ele revende?

Entrevistada: E ele revende, ele revende, entendendo?! Então isso é errado, eu acho. Eu acho assim, entendendo?! A gente samo presa por alguma coisa que a gente fez errado ?! Mas a gente não samo presa pra ficar sendo tratada como a gente é hoje. Hoje eu preferia ser uma animal, um gato, um rato, eu preferia ser do que sofrendo as humilhação que eu passo hoje, entendendo?! É trancada que nem bicho, direto, 24 hora, entendendo?! certo teve, uma, um certo apagão aqui e fugiram duas mulhé, sabe por quê?! Revoltada com o tratamento que eles trata a gente hoje. Hoje, eu abro a boca e digo, viu, de vez de ele ressocializar a gente que samo presa, eles piora mais, tá entendendo?! Eles trabalham com, eles trabalham causando constrangimento, revolta e rancor, porque isso aqui num é um lugar que é pra gente entrar e procurar se ressocializar pá sair pra um mundo melhor, num é, com a cabeça melhor pro mundo? Procurar trabalhar, mas eles tão piorando.

E1: Me diga uma coisa...

Entrevistada: Aqui, aqui é o lugar onde o filho chora e a mãe não vê.

E1: Deixa eu te perguntar uma coisa, quantos anos você tem?

Entrevistada: Eu tenho 26 anos.

E1: 26?

Entrevistada: 26 anos.

Entrevistada: Tenho 26 anos, cheguei aqui com 21 ano.

E1: Tu estudava, antes de vim pra cá, ou não?

Entrevistada: Não, não estudava, tá entendendo?! Sabe por quê? Eu vou dizer! Muitas...

E1: Conta um pouco da sua história antes daqui.

Entrevistada: Olha, muitas vezes a gente tá aqui, muitas vezes a gente tá aqui por falta de oportunidade lá fora, entendendo?! Porque quantas veze eu num já cheguei batendo, procurando, buscando um emprego e ninguém nunca me deu. Com uma filha recém nascida, entendendo?! Gestante de outra, minha mãe sem trabalhar, meu pai num sei nem onde anda... marido, o pai das minhas duas filha mataram, entendendo, que são...

E1: Ele era errado?

Entrevistada: Era, era errado, também. Mataram e eu fiquei com uma criança pequena e com outra gestante, entendendo?! Aí comecei a traficar. Fui traficar logo, depois eu vi que o tráfico não tava dando certo pra mim... fui roubar, mas tudo isso manter as minhas filha, tá entendendo?! Vim presa a primeira vez grávida, tive minha filha aqui.

E1: Tu engravidou a primeira vez com quantos anos?

Entrevistada: A primeira vez eu engravidei com 14 ano. Tive minha filha com 15.

E1: Aí foi quando tu começou, assim, começou a fazer coisa errada?

Entrevistada: Foi, foi comecei.

E1: E tu estudasse até quantos anos mulher?

Entrevistada: Eu fiz até a 8ª série.

E1: Até 14 anos que foi quando tu engravidou?

Entrevistada: Não, depois que eu engravidei eu ainda, eu concrui a minha 8ª série, entendendo?! Depois que eu vi que a situação tava ficando difícil, porque tinha esse negócio de Projovem, num sei que, sabe, mas depois eu vi que a minha situação tava ficando difícil, ai eu fui, achava que o meio mais fácil era aquele.

E1: Quando tu começou a roubar é, tu já tinha parceiro?

Entrevistada: Já.

E1: Antes não?

Entrevistada: Antes não.

E1: E tua mãe fazia o quê?

Entrevistada: Minha mãe é desempregada. É empregada doméstica.

E1: E quando tu era criança, tua mãe trabalhava?

Entrevistada: Minha mãe já trabalhou, agora como eu digo a você é difícil, difícil emprego, muito difícil. Minha mãe, se minha mãe fosse esquentar a cabeça, minha mãe também ia tá no mesmo rumo que eu, porque tu imagina a mãe da pessoa olhar dentro de casa e ver os filho sem nada.

E1: Tu tem quantos irmãos?

Entrevistada: Eu tenho mais duas irmã.

E1: E a tua irmã?

Entrevistada: Uma se casou, mora com o marido e a outra também mora com o marido.

Entrevistada: Aí imagina se a minha mãe fosse olhar com os meus olho, ela num ia fazer a mesma coisa que eu não?! Ela ia fazer, porque quando ela olhar lá pra casa tinha uma filha com uma menina de um ano, gestante, a outra já tinha se perdido, tudo em casa. Tinha oportunidade de nada, ela também tinha oportunidade de nada, mesmo sendo uma cidadã de bem, que minha mãe é, graças a Deus. Até ela, ela que era cidadã de bem num tinha oportunidade, quanto mais as filha. Ela ia fazer o que se ela fosse pensar como eu pensava em... ela ia fazer a mesma coisa ajudar, né?! Mai como minha mãe é piradona de vez, ?! Aí eu fui procurar fazer, mas Jesus sabe que eu me arrependo de tudo.

E1: E tua mãe sabia?

Entrevistada: Minha mãe sabia. Eu morava com a minha mãe, logo quando eu comecei demais, eu comecei a traficar...minha mãe num sabia. Depoi eu comecei a roubar, aí depois num deu pra esconder mai, aí pronto, eu saí de casa, eu saí de casa porque eu tava vendo a hora a polícia me pegar, entendendo?! me matar, porque nessa vida a polícia chega e mata.

E1: E tu não tinha medo de morrer?

Entrevistada: Eu tinha medo de que? Eu só pensava no dinheiro, depois eu fui assaltar à mão armada, eu não queria mais furtar, eu queria já assaltar à mão armada.

E1: O furto dava algum dinheiro?

Entrevistada: Dava.

E1: E tu furtava o que, bolsa?

Entrevistada: Não, furtava em loja.

E1: Como assim, tu entrava aí pegava alguma coisa?

Entrevistada: Entrava dentro da loja, tirava os alarme das roupa e levava as roupa todinha que eu queria.

E1: Ah.

Entrevistada: E se fosse em mercadinho eu chegava, entrava e levava tudo que eu queria, tudo que minha filha tava necessitada, tudo que em casa tava necessitado eu levava.

E1: Aí tu vendia depois era?

Entrevistada: Dependendo do que eu levava, assim, quando, eu levava, levava também perfume...

E1: Aí você vendia?

Entrevistada: Levava também creme de cabelo, essas coisa, entendendo?!, dentro de casa, e quando eu levava dentro da casa, eu já abastecia a casa, e depois eu ia buscar manter meu vício, que eu num fumava crack?!

E1: Tu começou a fumar com quantos anos?

Entrevistada: Eu comecei a fumar crack eu tinha 17 ano.

E1: Já tinha as duas filhas?

Entrevistada: Já tinha as duas filha, aí, porque assim, quem usa essa droga pode o filho passando fome, pode a mãe passando fome, num quer nem saber. Se tiver só R$10,00 de vez de comprar carne pro filho comer e o pão, vai comprar é a droga. E tem essas pessoa que usa, num usa porque quer não, porque é doente, porque eu vejo hoje eu num uso, hoje eu num uso, hoje eu evangélica, mas eu olho paquelas pessoas eu sinto pena, eu sinto pena, porque eu sei que elas num fumando porque elas quer fumar, eu sei que elas fumando por coisa da cabeça, por uma coisa, isso é uma coisa psicológica, que mexe muito com a cabeça. Teve uma noite que eu gastei...

E1: Não tem nenhum acompanhamento pra quem usa droga, isso?!

Entrevistada: Aqui não tem nenhum acompanhamento, nenhum! Meu marido tentou me internar.

E1: Ele fumava não?

Entrevistada: Eu, não, meu marido é honesto, é cidadão de bem, eu, eu queria ajuda, ali num tem o IMIP, ali tem um órgão que é de indo, de indo, de desintoxicar num é, eu fui pra lá porque eu já tava, meu Deus, eu num sabia pra onde correr, eu fui pra lá sozinha.

E1: E aí?

Entrevistada: Nem uma família minha me deu apoio não, nem me acolheu porque tava desgostosa comigo, já não tinha mais esperança. Meu marido tentou me ajudar, eu fui prali, meu marido procurou alguns, muito recurso, num tem o CAP'S, meu marido procurou um lugar pra me internar, não tem lugar pá mulher aqui, e crínica pá se internar, pá internar o dogrado só quem tem dinheiro, é pago. Aí eu fui pra essa crínica de desintoxicação, fiquei lá, passei uma semana, duas semanas como e fosse internada, aí de lá fui encaminhada pro CAP'S, mas o CAP'S também é muito fraco, é uma coisa muito fraca.

E1: Porque é fraco?

Entrevistada: Porque...

E1: Você vai pra lá e num fica...?

Entrevistada: Olhe, pra cuidar de um drogado que usa droga como o crack, ele tem que ficar internado.

E1: E não voltar.

Entrevistada: Ele tem que ficar internado passando por muito psicólogo, muito remédio, muita coisa. É, é, tem que ter pessoas evangélica pra buscar por Jesus, pá ensinar o caminho de Jesus, porque não é fácil não, isso mexe muito com a cabeça e com a saúde também, a saúde também. Oia, eu fumava tanto do crack, tanto do crack, eu sabia que Jesus tinha um prano na minha vida, entendendo?! Eu já sabia que, no de repente de Deus, ele ia me pegar, ia me tomar, entendendo?! Eu sabia que meu fim num ia terminar nas droga, entendendo?! Num foi a cadeia não que me mudou não, como chega pessoas ai, manda me chamar, pra que? Pensando que eu vou dizer que foi eles que me mudou, que foi a cadeia que me mudou, é mentira, num foi ninguém que me mudou, porque a tendência do tratamento deles é piorar. Foi Jesus que tem um prano na minha vida, já sabia que eu tinha algo diferente de muitas e muitas pessoa.

E1: Mas quando foi que tu começasse a ter fé?

Entrevistada: Eu sempre tive fé, eu sabia que um dia o senhor ia me pegar no de repente, entendendo?!

E1: E quando foi isso?

Entrevistada: Depois de 4 ano, faz 4 meses que eu sou evangélica.

E1: Mas foi aqui, do nada?

Entrevistada: Foi aqui, do nada, do nada, nem as pessoa num entende como foi, porque aqui dento eu era mal conduta, aqui dento num tinha mulhé aqui que nem eu não rapaz. Eu já briguei com polícia aqui dento, eu já briguei, ele vim querer me espancar e eu: é o que? É, era, porque eu era assim, o que? Minha mãe num bate em mim porque eu era rebelde mermo, os ASPE quem era inimigo era eu, nem, nenhum desses ai venha falar alto pra mim não rapaz, tá entendendo?!

E1: Mas tu achas que era efeito da droga que tu usava, é isso?

Entrevistada: Não, era revolta mermo. Era revolta, raiva, muita raiva.

Entrevistada: Revolta. Revolta de ver, revolta. Revolta de saber que tava num lugar desse sem ninguém que pudesse vim me ajudar, sem acompanhamento de, de nada nem de ninguém, porque pá pessoa falar com a psicólogo, meu Deus do céu.

E1: Mas tu parou de, de, fumar crack?

Entrevistada: Parei, teve um certo dia que eu fumei crack o dia todinho, a tarde todinha, fumei “mermo”, quando foi assim, de noite, eu senti algo estranho, senti algo estranho, o senhor me mostrou logo que se eu num parece, ele me mostrou assim, eu vindo de repente, meu pulmão preto do jeito que tava, e que ia sair uma ferida nele, essa ferida o senhor me revelou que era um câncer, era um câncer, se eu continuasse a fumar, e eu era mais forte, porque eu continuei a fumar. Aí, no de repente de Deus, eu aceito Jesus, aceito, sem eu querer, eu aceito, aceitei, depois.

E1: Nesse dia.

Entrevistada: Depois que eu aceitei, nesse dia não...

Entrevistada: Porque aqui a gente só tem igreja no sábado, entendendo?!

E1: Se fosse mais cedo, ?!

Entrevistada: É, é, aí eu aceitei, quando eu aceitei eu fraquejei ainda, fumei, depois eu parei, num quis mais, ai, num parei de fumar cigarro, aí parei de fumar crack, parei de usar, fumar maconha, parei de tudo, parei de usar de tudo, entendendo?! O crack ele faz tanto mal principalmente no nosso coração, sabe por quê? Depois que eu parei de fumar e vim sentindo uma dor, assistência médica aí num tem. Eu melhorei, entendendo?! Mas, eu sofro, de vez em quando assim eu sinto uma dor no meu coração tão grande que eu vejo a hora bater os trimilique e morrer. pensando que eles leva é, eu chorei essa semana ganhar um remédio de dor, eu chorei porque aí num dá remédio a ninguém não, tem que chorar ganhar um remédio, eu num sei onde é que , pra onde é que indo os remédio que mandam gente não, porque pra gente tomar um remédio a gente tem que chorar. Eu discuti, eu vi a hora ele me pegar e me levar pro castigo, foi, porque eu abri a boca e disse, aí agora me dá, sabe por quê? Porque eu abri a boca e disse: num tão querendo me dá remédio, tão querendo que eu morra, né?! Porque só assim eu morrendo eu num vou poder contar lá fora quando eu sair daqui, né?! as coisa errada que eu vejo aqui dento, né?! Que até presa grávida de ASPE já teve aqui, de abortar, tomar Citotec e abortar a criança ?! Tudo escondido, teve ASPE aqui de comer a presa.

Entrevistada: São acostumado eles sabe, o mermo, oe, o mesmo agente que me espancou, que me espancou, que eu briguei com ele, eu também não vou mentir porque você já aqui num lugar desse 4 ano, sem vê filho, sem vê mãe, que minhas filha, minha mãe num vem não, só quem vem é meu marido, entendendo?! Aí, do nada, vem um agente assim, metê o cacete em você, você já, entendendo?! Isso foi antes de eu ser crente, aí eu briguei com ele também, mas Jesus é tão bom na minha vida, que ele me espancou e no final das conta deu uma de vítima, ele me levou delegacia, quando chegou na delegacia eu num tive chance de dizer um 'a', ele disse tudo que ele queria dizer, ele disse que foi agredido, de mentira, quando a agredida foi eu. Eles faz isso, ele espanca as presa, aí quando vê que a presa, como ele sabe que eu tenho um marido que corre atrás das minha coisa, entendendo?! Eles são assim, eles são metido a esperto, que de esperto ele não tem nada que prova viva sou eu, eles espanca as presa, aí quando vê que a presa tem uma família que vai correr atrás, ele leva a presa delegacia, chega na delegacia, diz o que quer porque a gente não tem direito de falar nada, chega lá bota uma ocorrência, ele fica como a vítima e a gente fica como agressora.

E1: Acontece muito de eles engravidarem as mulheres aqui dentro, de ter filho?

Entrevistada: Acontece muito, num é pouco não.

E1: À força ou...?

Entrevistada: Não é a força. Escute! Eu tô presa, eu vou dar um exempro, eu presa, carente, não, escute, porque aqui a gente, a mulher presa, a mulher presa ela carente, ela fica carente sem home. Imagina uma mulher dois ano aqui presa sem um home, qualquer home que aparecer pra ela é home, tá entendendo?! Mas mesmo ela querendo ele não tem o direito, ele sabe o dever dele aqui dentro qual é, eu nunca vi home tá entrando dentro de pavilhão pá fazer total. Presídio de mulé quem tem que entrar pá fazer total é mulé, porque nas cela, as mulé tá de sutiã, sem sutiã, só de calcinha, aí vem um homem vai mesmo pá grade só de calcinha, nua. Presídio de mulé home não entra dentro de pavilhão não, quem entra é mulher, mas aqui é diferente, aqui só quem entra é home viu, aqui home passa a mão nos peitinho delas quando vai na grade, o agente, ASPE, passa a mão no peito, dá pontada, dá biquinho, dá isso e dá aquilo outro, é, é, marca e tudo.

E1: E acontece muito de ter amante?

Entrevistada: Olhe, eu, eu, eu num vou também, mentir?! Eu vou falar só o que eu vejo, aqui eu só vi um, aqui eu só vi um que eu sei, ?! Porque quando vem se agravar minha filha, quando a gente vem saber é porque já num tem nem mais graça, é porque já vem acontecendo. Oe... toda de madrugada, todo dia de madrugada, se ele já fez a total, ele só vai vim no corredor quando ele for chamado né?! Quando tiver alguém passando mal, o certo é esse, num já fez a total, num já contou tudinho, num tudo certo, então só é pra ele ir pro corredor quando a gente chamar: meu senhor tem alguém passando mal. Quando a gente chama: meu senhor tem alguém passando mal, eles num vai não, passando mal que morra, diz mesmo assim, pode morrer, num morreu ainda, não foi? Aí todo dia de madrugada é zuada de raio abrindo, eles vindo pegar as mulé trazendo pra cá pro alojamento, transando com elas, depois leva elas e tranca do mesmo jeito, viu, só que tem gente que num dorme, presa num dorme, fica só escutando, bota o espelho, vê o que eles fazendo. Teve uma mulher que morreu aqui com uma chapa, por falta de socorro, porque muitas e muitas vezes essa mulhe, da 32, a cela 32.

Entrevistada: Da cela 32, essa mulé ia, aí pedindo socorro, pedindo ajuda, ela tinha pobrema, ela tinha uma pratina na cabeça, pedindo e ninguém ajudava a mulé, deixaram a mulé morrer à míngua, aqui já teve, questões de mulher grávida, a criança nascer morta por, passar da hora de nascer, dela dizendo que com dor e eles querer ser parteiro, dizer que não na hora, 3 criança já morreu lá dentro e uma agora pouco, morreu uma agora pouco, nasceu morta, a menina linda, a mulé três dia com dor.

E1: E ela?

Entrevistada: Três dia com dor, essa mulé, essa, doente da cabeça, ela doente da cabeça, ela tenta fugar direto, querendo ajuda, querendo denunciar, ela já tentou fugar por ali e agora pouco levaram ela pro hospital, ela tentou fugar, sabe por quê? Porque ela ficou com pobrema na cabeça, por saber que tinha uma filha com saúde dentro da barriga e morreu porque eles num quiseram levar ela, a criança dela nasceu toda roxinha.

E1: Mas me diga uma coisa, tu vê muita diferença da primeira queda pra segunda queda?

Entrevistada: Muita, porque se eu pudesse quem tava aí, seu eu tivesse o poder quem tava aí era Doutora Ana Moura, porque aí sim ela era uma diretora, porque essa diretora até mudar a passagem, ela tem a gente como... ela tem nojo da gente, ela num para pra perguntar nada a gente não, nada, ela num conversa com a gente, a entrada da sala da diretora era por aqui, pelo, por ali, pelo serviço social.

Entrevistada: Num era, agora é lá na frente, porque nenhum, nenhum tipo de contato com a gente ela quer, ela só traz aqui repórter, essas coisa pá mostrar alguma coisa que é obrigação dela fazer mermo na cadeia, pá mostrar que fazendo o que? Nada. Ela fazendo nada, ela tá piorando, ela tá piorando com esse comportamento dela porque pelo menos, Dona Ana Moura conversava com a gente, ela, ela sim tinha a gente como, como se fosse, eu vou dizer filha dela ou sobrinha, como se fosse parente, como se fosse pessoas que precisam de ajuda, e essa dai não, ela só quer saber de ganhar e pronto.

E1: Tu ficasse mais triste porque já sabia como funcionava ou ficou melhor porque já sabia como funcionava?

Entrevistada: Eu, eu, eu que foi que eu senti, eu senti foi desprezo da parte deles com a gente, num chega conversar, num chega pá perguntar nada, só espantar, dá tiro de borracha, só trata a gente mal, eles num chega pá perguntar não, às vezes você é ser humano, você também sente as coisa, tu com pobrema, num sei quanto tempo sem ver sua família nem nada, você ali, você precisando que uma pessoa chegue: por que você assim, você num é assim; ?! Encaminha você prum psicólogo, não, bora! Entra! Vai timbora, vai! Ai diz aqueles nome feio mesmo, desmoraliza você mesmo, de tudo, nojenta, isso, aquilo outro, 'vai nojenta, passa!' É desse nome que...

E1: Mas como foi que tu foi pega, tu já furtava sempre?

Entrevistada: É é, furtava sempre, a minha primeira queda eu fui, eu fui presa grávida né?! Eu tive minha, eu tive uma filha aqui, eu tava, eu tava, eu furtava carro, entendendo, furtava o som do carro, eu furtava, aí eu fui presa.

E1: Em flagrante?

Entrevistada: Em fragrante. Eu grávida com uma barriga bem gradona, eu tava com oito meses, aí vim pra cá, aí passei o que, três meses aqui.

E1: Foi muito difícil o começo?

Entrevistada: Foi difícil, né?! Mas num foi tanto porque aqui a gente ainda tinha alguma, alguma pessoa que se importasse com você.

E1: Tu fosse pra lá pra parte das grávidas?

Entrevistada: Num tinha ainda não.

E1: Não. Aí tu tava nesse cela daqui da frente?

Entrevistada: Eu fui presa em 2003.

E1: Aí tu tava nessa cela?

Entrevistada: Eu tava junto com as outras presa.

E1: Com a criança e tudo?

Entrevistada: Com a criança e tudo, mas aqui, a gente que somos presa, nós somos, assim, muito unida nessa parte, se eu tivesse uma filha que eu num tivesse visita, quem tivesse me ajudava, porque aqui eles, num dá leite a filho de ninguém não, quem chegava e dava era as presa, viu, olha Juliana, tua filha nasceu, eu mandei minha mãe trazer uma bolsa de leite, eu mandei minha mãe trazer um Mucilon, eu mandei minha mãe trazer um pacote de fralda descartável pá tua filha.

E1: E ela ficou contigo até quantos meses?

Entrevistada: Ela passou 20 dias comigo, depois minha tia veio buscar, minha tia levou.

E1: Ela não ficou os três meses?

Entrevistada: Não.

E1: Mas por quê?

Entrevistada: Porque também, não, porque também olhe, eu tenho isso comigo, lugar de presídio num é lugar criança, não é lugar criança, entendendo?! Apesar de que aqui nunca foi um presídio de, de muita violência né?! Mas eu tenho isso comigo, lugar de presídio num é lugar de criança, então, minha tia veio e levou ela.

E1: E tu tem contato com a tua mãe, com a tua tia?

Entrevistada: Tenho, tenho contato, ?! Porque meu marido sempre vai lá, assim, dá uma assistência, ?! Porque, se não fosse por meu marido, ?!

Entrevistada: Antes de vim pra cá. Na minha vida doida, ?! Esse crack, você faz tudo, você vende seu corpo, você vende seu corpo, você rouba, você mata por ela, entendendo?!

Entrevistada: Então, como vê, quando eu saí daqui da minha segunda queda, aí eu peguei, ?! Aí num fui roubar, ?! Num fui roubar, vendi meu corpo, aí eu conheci ele, eu disse que eu, eu saí com ele pra fazer um programa.

E1: Tu fazia onde o ponto?

Entrevistada: Eu num fazia ponto.

E1: Como era?

Entrevistada: Era normal, assim, eu nunca parei numa avenida pra ficar lá não.

E1: Não.

Entrevistada: Não.

E1: Era na sua comunidade, era?

Entrevistada: Não, na cidade, numa invasão lá, ali no Cais de Santa Rita, num tem um prédio ali abandonado que foi interditado?

E1: Tem, tem.

Entrevistada: Eu morava lá, entendendo?! Então, assim, eu tava com umas colega e ele se interessou por mim, eu peguei, fui e fiquei com ele, só que pra mim só ia ser um programa, ?! Só que ele gostou muito de mim, aí, ele pediu conhecer minha mãe, tudinho, conhecer minha filha, eu levei ele em casa, tudinho, aí ele ficou ajudando minha mãe, me ajudando. Nessa queda agora eu caí sem precisão nenhuma, eu vim presa sem, porque eu acho que Jesus queria mermo que eu vinhesse.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque eu não tinha precisão, porque, meu marido tava mantendo tudinho, da minha mãe, não tava deixando faltar nada pra mim nem nada, mas a droga, o vício, por causa do crack eu vim parar aqui nesse lugar de novo. É por isso eu digo, essas pessoa que fuma crack é doente, isso é uma doença, isso precisa de um tratamento especial paquelas pessoa, porque hoje morre mais pessoa por causa do crack, hoje muitas família é desfeita por causa do crack, hoje o mundo, o Brasil está se acabando por causa do crack, em geral, o Brasil está se acabando por causa do crack, hoje há mais pessoa presa por causa do crack.

E1: E quando tu caiu da primeira, da segunda vez, e da terceira, tu sentiu diferença da tua mãe, da suas filhas, da tua tia?

Entrevistada: Senti, senti desprezo da parte delas, ?! Elas me desprezaram aqui dentro.

E1: Tua mãe, tua tia e as filhas também?

Entrevistada: Também.

E1: Mas a partir da primeira queda já?

Entrevistada: Não.

E1: Da segunda?

Entrevistada: Da segunda.

E1: O que elas pediam pra você?

Entrevistada: Queria que eu mudasse, ?! Que eu saísse dessa vida, ?! Que essa vida num tem nada dar, minha mãe ficava em casa só esperando chegar a notícia: mataram tua filha!

E1: Tu acha que, quando tu sair daqui, elas vão acreditar que você não vai mais fazer isso?

Entrevistada: Acredita, acredita porque hoje eu sou uma nova criatura, é, hoje eu sou evangélica, mermo de verdade, eu tenho no meu coração só Jesus e, quando eu sair daqui, eu vou procurar levar o pouco que eu conheço aquelas pessoas que eu vejo ali, entendendo?! fazendo o que eu fazia antes. Hoje eu vou procurar e principalmente as que me conheciam antes, é que eu quero mostrar hoje o que Jesus pode fazer na vida de um ser humano.

E1: Na primeira queda ela vinha te ver?

Entrevistada: Vinha, assim, vinha um domingo, aí passava dois, três meses sem vim, entendendo?! Apesar de que da primeira...

E1: Aí suas filhas também?

Entrevistada: Minhas filha também, apesar de que da primeira e da segunda vez eu saí rápido. A primeira queda eu saí com três meses, a segunda queda eu saí com quatro meses, essa, essa agora é que eu quatro ano presa.

E1: E quando tu saísse tu fosse pra onde, tinha alguém ali fora?

Entrevistada: Não, quando eu saí eu fui direto pá casa da minha fumar crack, fumar crack, eu sai daqui direto pá fumá crack.

E1: E da segunda queda, também fosse pra casa da tua mãe?

Entrevistada: Não, a segunda queda quando eu sai daqui, eu fui morar... porque minha imã morava lá, nesse prédio, só que a minha irmã tinha saído de lá porque lá era muito perigoso, ela só morava porque era emprestado entendendo?! Então minha irmã saiu de lá e foi morar, alugou uma casa com o marido dela, foi morar perto da minha mãe e eu fui morar lá sozinha porque nem eu queria prejudicar minha mãe e minha mãe tinha medo de me ter dentro da casa dela, porque através do crack podia chegar os cara e me matar, podia chegar a polícia na casa dela e invadir.

E1: Você queria proteger a sua mãe?

Entrevistada: ?! Aí eu fui morar sozinha.

E1: E tuas filhas?

Entrevistada: Com a minha mãe, minha mãe num me dava, minha mãe. Hoje eu sei que quando eu sair daqui eu vou pegar minhas filha morar comigo, mas antes minha mãe num me dava porque minha mãe via a hora chegar os home e me matar.

E1: Mas tu queria?

Entrevistada: Nem que, nem eu queria, Deus me livre meu Deus do céu, chegar a polícia, me pegar e minha filha, chegar umas pessoa e me matar e aí eu com a minha filha.

E1: E tu num pensava em momento nenhum em não, não fumar mais crack?

Entrevistada: A gente pensa.

E1: Mas não consegue.

Entrevistada: Não consegue não, eu, vendo os meus exame, eu corria pá todos os lados, eu até fui me internar nessa clínica de desinto... de desintoxicação, mas num tinha uma ajuda especial, parei de fumar crack quando eu tava lá, e eu queria, eu improrei pra ficar lá, eu passei uma semana lá, eu implorei pra ficar lá: deixa eu ficar aqui por favor. Aí: num pode não ficar não! Sabe o que foi que eu fiz? Eu disse: por favor deixa eu ficar, aqui é tão bom, eu já tava me sentindo bem. Aí ela: você num pode ficar aqui não, você já desintoxicada, você vai simbora! Sabe o que foi que eu fiz? Peguei abri a bolsa dela, tirei o cerular sem ela ver, da assistente social e fui mimbora pros Coelho, vendi e comprei pedra, porque ela num me deixou eu lá.

E1: E, assim, agora o que é que você espera lá fora?

Entrevistada: O que eu espero agora quando sair daqui, sabe, é ir pro sinal, qualquer coisa, vender pipoca, fazer um bolo, sair pá vender; eu cozinho, olhe eu sei fazer tudo que você imaginar, entendendo?! O que eu pretendo é isso.

E1: Tu vai voltar pra onde?

Entrevistada: Eu vou morar com meu marido agora.

Entrevistada: Ele é uma benção de Jeová, é o anjo que Jesus me deu tomar conta de mim aqui, porque às veze também a gente tem um marido errado, incentiva muito a gente a fazer coisa errada, porque, eu tinha um, vê, o pai das minhas filha era errado, ?! Aí quando ele ia preso aí eu dava continuidade, eu ia roubar, levar as coisa pra ele, pá manter minhas filha, eu ia vender crack pá não deixar faltar nada pra ele nem pra minhas filha, entendendo?! Incentiva muito a gente ter um marido errado igual a gente, e eu com o marido, assim, eu digo porque eu já tive a experiência dos dois, ?! E eu com o marido honesto, ?! Aprenda a ganhar um poquinho, Jesus, num deu muito por Jesus.

E1: Ele é evangélico?

Entrevistada: Não. Aí vamo, vamo trabalhar, aprende a trabalhar! Faz um bolo, vai vender alí, se num der certo o bolo tu pega umas água mineral vai vender alí, se num der certo água mineral tu pega umas roupa de banho e vai lavar alí, mas tu ganhando um pouquinho, suado, que nem a polícia vai chegar na tua porta, nem um malandro vai chegar na tua porta...

E1: Qual é o maior problema que tu tem aqui dentro?

Entrevistada: Aqui dentro o maior pobrema são, essa direção.

E1: Mas por quê? O que é que ela faz pra você?

Entrevistada: Ela, faz coisas desregulares, ?! E irregulares, ?! Faz coisa que não é, não no acordo, no contrato que elas fez com o Governo, entendendo?! Nem tinha precisão pra elas fazer o que elas faz com a gente, porque, cadeia de São Paulo é de mulhé, oxente! Eu duvido nenhum deles entrar nesse corredor, até porque aqui num tem polícia suficiente segurar essas mulé não. Tu acha que tem? Porque aqui tem 700 presa, com 10, 10, 10 não, com 5 agente tomando conta. Tu acha que tomaria se fosse uma cadeia de São Paulo? As mulé já tinha mirado esse portão, arrombado, já tinha ido simbora, tudinho, por aí você tira que não é uma cadeia perigosa, que não é. Aqui não tem faca, entendendo?! Aqui não tem nada e as mulhé em nenhum momento pensa em fazer isso não, entendendo?! Agora, com o tratamento deles, é que vai gerar isso, o tratamento, o tratamento deles é que vai gerar, habituado, porque se eles procurar tratar a gente diferente, porque eles sabe que num tem precisão tratar a gente desse jeito. Se eles procurar tratar a gente diferente a gente vai começar a se arrepender de aqui, né?! A gente vai procurar ajuda, vai procurar eles, vai procurar psicólogo, só que ninguém nem pensa, porque pelo tratamento deles, quando eles começa, porque que as presa vai pensar, oxe, vou fumar crack, vai por causa da revolta, porque através da revolta vem o crack e através do crack, tá entendendo?! vem a loucura, e a loucura é ter o apagão e fugir duas, como fugiu. Porque cadeia de mulhé, oa, mulhé pensa muito, home num pensa não, mas mulhé pensa muito assim, eu quero sair porque eu tenho meus filho lá fora, pensa nos filho, mulhé pensa muito nos filho que lá fora, é por isso que elas num pensa em muita violência não, pensa não, aqui, o que tem mais é o que, é normal, você conviver com muita presa dentro de uma cela, você, ah, sempre fica, a gente arenga em casa com o pai e com a mãe, com os filho, porque num arenga com outra presa que num lugar desse já cheia de pobrema, né?! Só tem isso mesmo, normal, isso é normal dentro de uma cadeia, dentro de uma cadeia dessa superlotada, um quadradinho menor do que o banheiro da sua casa com certeza.

Entrevistada: Era, apois meu banheiro era do tamanho dessa cela, meu banheiro naquela invasão era do tamanho dessa cela. Num quadradinho bem pequeninho dorme oito mulheres, tudo de lado, se se virar uma de frente, tem que acordar as outra todinha.

E1: Mas qual é o teu maior sonho?

Entrevistada: Meu maior sonho eu vou dizer, é sair daqui, poder ter minha casa, ?! Poder criar minhas filha diferente da criação que eu tive, diferente de tudo que eu fui, né?! Procurar levar minha filha pra um caminho certo, ?! Procurar levar ela igreja que é o único caminho que tem, ?! Procurar fazer a diferença.

E1: E quando tu era pequena tu tinha algum sonho assim, tu lembra?

Entrevistada: Tinha.

E1: Qual era?

Entrevistada: Tinha o sonho de ganhar uma bicicleta, minha mãe nunca teve condições de me dar, tinha o sonho de ganhar roupa nova, tinha o sonho de ganhar boneca, mas minha mãe nunca teve condição de me dar.

E1: E no segundo grau, quando tu já tava terminando a escola, na oitava série, antes de tu entrar aqui, que tu queria?

Entrevistada: Vê, na oitava série, entendeu, eu também, vê, eu também o que me levou muito a roubar, a furtar, a furtar foi que eu ia escola, via assim, alguma das minhas amiga tudo com material novo e eu num tinha, eu num tinha material, aí eu ia lá pras Lojas Americanas e roubar os material escolar todinho, aí roubava o caderno, caneta, lápis, tudo que eu queria ter, aí eu ia buscar. O que me levou muito também a roubar foi a necessidade, tá entendendo?!

E1: Sua mãe morava onde?

Entrevistada: Minha mãe mora ainda em Santo Amaro, por detrás do Hospital Oswaldo Cruz.

E1: Sei.

Entrevistada: Ali.

E1: Tu crescesse lá?

Entrevistada: Cresci lá. Aí pronto, ?! Eu ia estudar, quando eu olhava, num tinha um caderno levar escola, tinha assim um caderno usado com poucas folha que alguém me doava.

E1: Mas tu pensava em ter uma profissão?

Entrevistada: Não, eu já sonhei muito em ser dançarina.

E1: Dançarina?

Entrevistada: É, é.

E1: Dançarina de que?

Entrevistada: Dançarina de, de, do que fosse.

História 11

E1: A gente queria que tu falasse da tua vida.

Entrevistada: Da minha vida como assim? Como eu caí aqui?

E1: Não.

E2: O que você achar importante falar sobre a sua vida.

Entrevistada: Assim, porque...eu entrei nessa vida de tráfico porque meus filhos estavam passando necessidade. Eu tenho quatro filhos com ela para dar de comer, desempregada aí fui traficar para dar de comer aos meus filhos, aí terminou eu vindo presa, caí aqui. Passei dois anos, ganhei minha liberdade e fui fazer a mesma coisa porque meus filhos estavam passando necessidade e emprego muito difícil, aí a gente tem que traficar mesmo pra não ver os filhos morrendo de fome.

E1: E tua família?

Entrevistada: Assim, minha família é muito distante, minha mãe é morta, meu pai também. Eu tenho minhas irmãs, mas é cada qual por si.

E1: E tua mãe quando morreu, tu tinha quantos anos?

Entrevistada: Tinha seis anos hoje tenho vinte e sete anos.

E1: Tu ficou com quem quando ela morreu?

Entrevistada: Fiquei com a minha irmã mais velha.

E1: Ela tinha quantos anos?

Entrevistada: A minha irmã, na época, tinha uns dezoito para dezenove. Aí depois eu ganhei a vida... fui para rua aí pronto! Terminou caindo nessa vida.

E1: Porque tu foi para rua?

Entrevistada: Porque eu quis e porque, assim, minha irmã assim ela era muito impaciente aí eu não quis mais ficar com ela.

E1: Quantos anos tu tinha?

Entrevistada: Eu tinha uns oito para nove anos quando eu não quis mais ficar dentro de casa.

E1: Tu fazia o que? Estudava?

Entrevistada: Estudei só até a quinta série, depois não quis mais.

E1: E quando você saiu da casa da sua irmã, você fez o que?

Entrevistada: Fui para rua, comecei a cheirar cola. Depois eu passei para essa vida de tráfico.

E1: Mas tu foi morar na rua?

Entrevistada: Morei na rua.

E1: Como foi essa mudança da casa para rua?

Entrevistada: Foi muito ruim... porque tempo de chuva de inverno era ruim demais para dormir... às vezes tinha até gente assim para querer mexer com a pessoa, para fazer maldade.

E1: Como era que você se protegia?

Entrevistada: Me protegendo... às vezes, assim, eu corria às vezes ainda eu levava desacerto.

E1: E como foi que te chamaram para o tráfico?

Entrevistada: Foi o pai das minhas filhas, meu companheiro.

E1: Como é que tu conheceu ele?

Entrevistada: Eu conheci ele assim... porque ele morava perto da casa das minhas irmãs, aí eu passei um tempo, voltei para casa da minha irmã, passei um tempo, aí eu conheci ele, mas quando eu conheci ele, já vivia nessa vida de tráfico. Aí pronto, eu não era usuária, aí comecei a usar depois que conheci ele.

E1: Tu usava o que?

Entrevistada: Eu usava maconha, depois eu comecei a usar crack. Eu grávida dela.

E1: E dos outros filhos tu não usava droga não?

Entrevistada: Não. Dos outros filhos não, só dela. Dela eu usei muita droga, aí, através dessa droga que eu comecei a usar, eu me prostituía com muitos homens para arrumar dinheiro para me drogar. Terminou eu pegando uma doença no meu sangue, não pude amamentar minha filha e hoje eu não sou a mesma pessoa que eu era antes porque meus outros filhos pode ser amamentado e ela não pode ser. Eu queria muito que ela mamasse, mas ela não pode mamar porque eu peguei uma doença no sangue através da prostituição e através do crack também, porque essa droga é uma droga que veio para acabar com a maioria das pessoas, que quando você começa a usar o crack, às vezes você faz divida, não pode pagar, morre ou então termina nisso que aconteceu comigo: a pessoa pegando uma doença através da prostituição.

E1: Tu tentou parar de usar?

Entrevistada: Tentei nesse tempo que estou aqui nem penso mais em usar, mas eu sei que eu ainda não estou curada totalmente, por isso, quando eu sair daqui, eu vou procurar o... pra eu ficar, porque, se eu não for, eu vou cair de novo na tentação e eu não quero mais, porque eu sei que eu não tô recuperada ainda. Faz sete meses que eu não uso.

E1: O que fez tu usar a primeira vez?

Entrevistada: Através dos pais das minhas filhas. Ele tava usando aí me ofereceu, aí eu usei a primeira vez, aí pronto! Aí comecei.

E1: E tua primeira queda já foi tráfico?

Entrevistada: Foi tráfico.

E1: A segunda também?

Entrevistada: Também.

E1: Tu passasse quanto tempo na primeira?

Entrevistada: Dois anos e nessa segunda agora faz sete meses.

E1: Quando tu sair daqui o que tu queria?

Entrevistada: Quando eu sair daqui eu pensei em me por no meu lugar para criar meus filhos, terminar de criar meus filhos, porque da outra vez que eu caí aqui eu ainda não conhecia o crack, mas, ao passar o tempo, o pai das minhas filhas começou a usar, usar e me ofereceu foi quando eu me destruir.

E1: Quando tu saiu daqui tu conseguiu trabalhar, voltar a estudar? Tu saísse daqui fosse para onde?

Entrevistada: Não. Fui para casa porque eu tenho minha casa, mas foi por pouco tempo para eu conhecer o crack, ai pronto, aí Deus me colocou aqui de novo porque ia morrer.

E1: Você acha que foi uma coisa boa então?

Entrevistada: Foi uma coisa muito boa eu ter vindo parar aqui porque senão eu ia, ou eu ia morrer robano, ou eu ia morrer de tanto fumar. Até mesmo esse problema que eu tô, porque eu não ia saber que tava com esse problema porque nem pré-natal eu ligava para fazer, aí eu não ia saber que eu tinha esse problema e não ia me cuidar aí ia terminar eu morrendo.

E1: O que você pretende fazer quando sair daqui?

Entrevistada: Quando eu sair daqui eu pretendo arrumar um emprego e criar meus filhos.

E1: Como vai ser essa volta?

Entrevistada: Assim vai ser para mim né?! Eu espero... pra meus filhos, eu acho que vai ser muito bom porque quando eles vêm aqui e digo que vou embora eles ficam muito feliz.

E1: Eles vêm te ver sempre?

Entrevistada: Vem. Minha irmã traz eles dia de sábado.

E1: E teu marido?

Entrevistada: Ele vem não, porque aí aonde eu tô pode entrar homem não.

E1: Mas antes ele vinha?

Entrevistada: Vinha.

E1: Ele continuou usando?

Entrevistada: Continua

E1: E tu vai voltar para ele quando sair?

Entrevistada: Não, porque minha irmã tá me ajudando muito e ela disse que, se eu voltar para essa vida de novo que eu vim parar aqui, vai me abandonar, e eu não quero não.

E1: O que você acha que era mais difícil em morar na rua?

Entrevistada: O mais difícil era porque... é... passa, a pessoa passar fome, passar não sei quantos dias sem tomar banho é muito ruim.

E1: E o que te fazia continuar lá?

Entrevistada: O que me fazia continuar lá na rua? As drogas.

E1: Tu usava crack ou só cola?

Entrevistada: Só cola.

E1: E a droga alivia?

Entrevistada: Não.

E1: Mas tinha alguma coisa que você gostava na rua?

Entrevistada: Não, tinha nada que eu gostava.

E1: Tu pode lembrar nada de bom?

Entrevistada: Nenhum momento bom eu passei...

E1: E o tráfico era o que para tu?

Entrevistada: Assim, na minha parte eu achava bom porque não faltava nada para meus filhos, mas, ao mesmo tempo, foi ruim porque eu vim parar aqui... por que a pessoa desempregada é muito ruim... é muito ruim a pessoa desempregada vê seu filho pedindo pão e você não tem para dar. O desemprego tá muito grande.

E1: O que você quer que eles lembrem de você? O que você quer passar para eles?

Entrevistada: Assim, eu quero que eles estudem para mais tarde ser alguém na vida, né?! Não quero que eles passem pelo que eu tô passando hoje, nenhum deles.

E1: O que você acha que vai evitar eles terem essa vida?

Entrevistada: Assim, o exemplo que eu tenho para dar a eles não o exemplo que eu dava antes, mas sim o exemplo que eu quero dar a partir do momento que eu sair daqui.

E1: Tu acha que é importante o exemplo da mãe para não vim para cá?

Entrevistada: É importante.

E1: O que mais é importante para não vim para cá?

Entrevistada: É importante, assim, no meu exemplo é assim que eles estejam sempre estudando, porque, assim, meus filhos são muitos estudiosos. Isso aí eles não puxaram a mim não porque eu nunca gostei de estudar.

E1: Tu estuda aqui?

Entrevistada: Não.

E1: Você tinha algum sonho antes de querer ser?

Entrevistada: Tinha, meu sonho era de ser cabeleireira.

E1: Hoje em dia você tem vontade de ser?

Entrevistada: Tenho vontade de ser cabeleireira, porque eu sei escovar, sei ajeitar o cabelo.

E1: Aqui dentro tem um cabeleireiro, né?!

Entrevistada: Tem.

E1: Tu não pode ir para lá?

Entrevistada: A gente que está com bebê, a gente não pode sair.

E1: Desde que você chegou já estava com ele?

Entrevistada: Estava com oito meses de gravidez, aí gestante e quem tem bebê não pode trabalhar não.

E1: O que você acha que é liberdade?

Entrevistada: Liberdade é a pessoa tá em casa né?! Porque aqui não é lugar de viver não. Liberdade é a pessoa estar livre porque aqui a gente tá muito presa, muito presa mesmo.

E1: Quando tu vendia drogas para as pessoas, tu pensava alguma coisa quando tu olhava para elas?

Entrevistada: Não pensava em nada, só pensava mesmo em vender.

E1: E como tu acha que a sociedade vai te acolher quando você sair daqui?

Entrevistada: Assim, muitos, muitos viviam... me davam muito conselho pro bem, né?! E se eu sair daqui mudada, do jeito que eu tô pensando em sair, eles vão me... me ver bem. Agora, se eu sair do jeito que eu entrei...

E1: Qual é a maior diferença da pessoa que entrou aqui pra pessoa que vai sair daqui?

Entrevistada: Assim, a maior diferença é porque quando a gente entra, a gente entra assim, pensando em sair pior do que a gente entrou aqui, aí ao passar do tempo aquilo vai mudando na mente da gente...

E1: Mas o que fez então, tu voltar pra cá? Tu saiu, tu achou que tu tava mudada?

Entrevistada: Não, assim, eu queria sair dum... eu pensei em sair de um jeito e fazer coisas boas, mas só que aí, foi quando eu conheci esse crack, né?! Foi que destruiu tudo na minha vida.

E1: Como foi ter filho aqui dentro?

Entrevistada: Foi horrível...muito ruim porque na rua a gente tem uma pessoa que ajude a gente no nosso resguarde, uma irmã, um parente, e aqui a gente não tem... é horrível... muito ruim.

E1: E ela vai ficar aqui até quando?

Entrevistada: Ela vai ficar aqui comigo até minha situação se resolver e eu ir embora.

E1: Ela vai ficar até o fim, então?

Entrevistada: É.

E1: Não vai ficar separada dela não?

Entrevistada: Não, que minha adevogada falou com o juiz pra ela ficar comigo até eu resolver toda minha situação.

E1: Você se acha preparada pra voltar?

Entrevistada: Ainda não.

E1: Se hoje, chegarem pra você e disserem: você vai sair amanhã?

Entrevistada: Eu vou porque tem que ir, mas assim que eu me soltar daqui eu vou procurar uma casa de apoio, alguma coisa.

E1: Você acha que precisaria de mais tempo aqui pra alguma coisa?

Entrevistada: Não, assim, aqui não é lugar pra ninguém, eu não vou dizer... aqui não, mas se fosse assim outro lugar, uma casa de apoio, pra alguma coisa eu queria, mas aqui não. Aqui é muito ruim. É horrível aqui.

E1: O que tu acha que poderiam mudar pra ficarem preparadas pra sair?

Entrevistada: Assim, porque veja, aqui dentro do berçário nós somos muito presa, assim, divia ter, a gente divia fazer um curso de alguma coisa, ter aula de alguma coisa, que a gente não tem nada aqui, nada que tenha pra gente... nada. Na verdade, a gente só sabe mesmo é dormir, acordar e comer, dormir, acordar e comer... somente. Era pra ter, pelo menos, assim, um curso, alguma coisa, assim, que vinhesse, né?! mexer com a mente da gente, mas não tem nada disso. Pelo menos pra quando a gente sair daqui a gente dizer que a gente aprendeu alguma coisa, né?! Porque o que a pessoa aprender a pessoa já vai fazer lá fora pra ganhar um trocado, um coisa ou outra, mas nem isso a gente pode dizer que aprendeu, porque não tem nada disso. Aí é muito difícil também, pra mente não só minha como de muitas.

E1: Tu acha que tu não cai de novo?

Entrevistada: Eu não vou cair mais porque eu não quero mermo, porque eu não tenho mais vontade de fazer mais o que eu fiz.

E1: E se tu voltar pra rua e teus filhos não tiverem o que comer?

Entrevistada: Aí vai ser diferente, aí eu peço, mas traficar mais eu não quero não, quero mais não.

E1: O que você gostaria de dizer mais pra gente?

Entrevistada: Assim, o que eu gostaria mais de dizer é que, assim, que eu gostei muito, né?! de vocês ter vindo fazer a entrevista, porque pelo menos, já é o que? Um motivo de abrir o portão prarrente pelo menos respirar um ar diferente, porque a gente é muito presa aí dentro, e gente diferente que a gente possa conversar já é, já é grande coisa pra gente... já é grande coisa.

História 12

E1: Me fala um pouco da tua vida até aqui.

Entrevistada: Minha vida, eu acho que minha vida assim, depois que apareceu essas droga, eu me destruindo nela. Faz dois ano que eu deixei de fumar crack, graças a Deus, meu negócio agora é só cheirar pó, quero que Deus me tire dessa droga, que é o que tá me acabando agora é esse pó e parar mais de tá na cadeia, porque eu só vivo na cadeia, desde os meus doze anos, que eu só vivo na cadeia.

E1: Tu caísse quantas vezes?

Entrevistada: Eu tenho quatro queda em Santa Luzia e primeira aqui.

E1: E tu caísse por quê?

Entrevistada: A primeira queda foi com assalto.

E1: Assalto, à mão armada?

Entrevistada: Assalto à mão armada.

E1: E agora?

Entrevistada: As outras é tudo tráfico e uma foi tentativa de homicídio, tentei matar uma colega minha.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque, causa de dívida de droga. Dei três facada nela, mas graças a Deus ela não morreu não, ela agora tem dezessete anos.

E1: Mas tu que devia a ela?

Entrevistada: Não, ela que devia.

E1: Tu tava fazendo a cobrança?

Entrevistada: Eu dei um prazo de dois meses a ela pra ela me pagar, e ela disse que não ia me pagar, se eu fosse mulher, fosse matar ela, aí foi o que eu fui fazer. Chamei ela pra gente dar uma bola, eu sou usuária de maconha ela também né?! fumava, a gente foi, aí ela foi comigo e eu tava armada aí, quando ela distraiu, eu dei três facada nela e só não matei ela porque eu vi dois rapaz vindo, aí eu fiquei com medo e fugi e deixei ela lá, no chão.

E1: Me conta um pouco da tua infância e da tua adolescência.

Entrevistada: Minha adolescência, eu comecei a viver nessa vida, quando eu conheci um rapaz, ele se encontra preso, já faz seis anos, me tirou de casa eu tinha doze anos de idade, fugi de casa pra morar com ele.

E1: Ele tinha quantos anos?

Entrevistada: Ele tinha dezoito, aí eu vi ele vendendo, lá perto da minha casa, quando eu fui morar com ele era cheio de droga e eu ficava vendo os movimento dele, as coisas dele, aí ele foi preso, aí eu quis ficar no lugar dele e comecei a viver minha vida, nessa vida tudo por causa dele e até hoje eu sofri por causa dele.

E1: Mas tu ainda mantém contato com ele?

Entrevistada: Não.

E1: Como é o dia aqui, a noite aqui?

Entrevistada: O dia e a noite, assim, a gente pá comer, a gente sofre, que a gente come a hora que eles quer, pra tomar banho é a hora que ele quer ligar a torneira que é pra soltar a água. A gente sofre aqui dentro! Já fui espancada aqui dentro por um deles, já fui pra delegacia, porque disseram que me pegaram droga comigo, não pegou comigo. Já fui pro castigo oito vezes e a gente assim tá sofrendo, nós toda aqui sofre, porque a gente não come direito, não tem comida suficiente pra nós. Chega comida aí pra gente do bom e do melhor, eles não dão a gente, eles vende na cantina: chega charque, chega fruta, essas coisa e ele bota pra vender pra gente. A gente só veve na tranca, a gente só sai uma hora de relógio e bota pra dentro. Teve um apagão aí de, teve, faltou luz na hora do café da noite, fugiram quatro pessoa: duas foi simbora, duas ele capturou. Espancaram as meninas. Deram um tiro na mulher de sessenta e oito anos, ela se encontra no castigo, só por causa de uma comida que ela pediu e eles não quis dá, aí eles atiraram nela. Ela é uma senhora de sessenta e oito anos, foi na minha presença que eles fez isso. A gente sofre, a gente é humilhada e esculhamba a gente. Tem uns que é safado e gosta de tocar nas pessoas e isso tudo a gente tá levando, né?!

E1: Como é tua relação com tua família?

Entrevistada: Minha mãe todo domingo vem me ver, ela, só tenho minha mãe por mim, minha mãe não tem condições nem de botar adevogado pra mim, e minha mãe sofre muito por tá longe de mim e eu estou presa a um ano e cinco meses.

E1: Tu acha que da forma como a cadeia está funcionando, tu acha que ela serve para ressocializar?

Entrevistada: Assim do jeito que ela tá agora, isso aqui pra mim tá sendo uma escola, porque antigamente os outro dizia que essa cadeia era boa, mas a vista que eu tô vendo agora, se eu não me regenerar agora, eu não me regenero mais nunca, mas eu creio no meu Deus que mais nunca eu volto pra essa cadeia. Mais nunca eu quero viver nessa vida.

E1: Qual é o teu grande sonho?

Entrevistada: O meu grande sonho é sair dessa vida, arrumar um emprego direito, um trabalho, ter minha casa e ter o meu filho, que é o sonho que minha mãe tem é ter um neto.

E1: Tu estudasse até eu série?

Entrevistada: Eu estudei até a sexta série.

E1: E porque tu parasse?

Entrevistada: Por causa dele, ele dizia que eu não ia pra escola, ia me encontrar com outro. Ele me levava pra escola ia me buscar. A professora tinha medo, porque ele ia armado, ia me buscar armado, aí eu deixei de ir pá escola por causa disso, por causa dele.

E1: Tu tem irmãos?

Entrevistada: Eu tenho um irmão de dezesseis anos, trabalha, nem bebe, nem fuma é trabalhador.

E1: E eles vem te visitar?

Entrevistada: Vem, todo domingo.

E1: Como é que tu vê hoje a sociedade, diante de tanta cadeia? Tu acha que ela é boa, ruim? Tu tem raiva da sociedade?

Entrevistada: Porque quando eu tirei cadeia, eu era de menor e eu gostei, quando era de menor, era comida boa, tinha cama, a gente era tratada bem, a gente saia, tinha passeio e aqui a cadeia é muito diferente, é muito diferente, muito diferente.

E1: Tu tem uma relação boa com o padrasto?

Entrevistada: É, ele gosta muito de mim, ele me assumiu, foi ele que me criou desde novinha, ele que vem me ver, é ele que é Marcos, meu padrasto. Meu pai mataram, quando mataram meu pai eu tinha dois anos de idade, meu pai era errado também.

E1: Era errado também, fazia o que de errado?

Entrevistada: Ele roubava, matava, ele tinha uma boca de fumo, ele espancava muito na minha mãe e a minha mãe tava se encontrando com esse meu padrasto escondido dele, ele não sabia, aí ele foi pra gafieira, aí chegou dois colega dele chamando ele pra fumar maconha, aí ele foi, quando chegou lá já tinha uns cara lá esperando ele ai mataram ele.

Entrevistada: Aí meu padrasto ficou com a minha mãe, me resistrou e eu tenho ele como pai pá mim. Ele que me dá as coisas, ele que me assume. Eu nem era pá tá nessa vida que, pouco ou muito, eu tinha dentro da minha casa. Minha mãe mora no primeiro andar. Ele comprou uma casa pra mim e pro meu irmão, que o meu irmão é filho dele mesmo, ele que me assume de tudo, o que eu precisar eu tinha na minha mão.

E1: O que tu acha que precisa fazer pra que a cadeia melhore, para as pessoas se ressocializarem?

Entrevistada: O que a gente precisa é mais ser liberada, ficar no pátio, que é coisa que a gente não tem, e pra poder entrar as coisa, que aqui é muito difícil entrar as coisa, num é todas as coisa que entra. Se manda cinco biscoito, eles só deixam entrar três, se manda cinco carteira de cigarro, ele deixa entrar duas. Esculhamba as família da pessoa. Minha mãe chegou de sete hora da manhã aí na frente, deixaram minha mãe entrar de duas hora da tarde, a comida levou sol e azedou, tas ouvindo?! Aí quando foi na hora da revista, aí um policial disse: você vai dar lavagem para porco? Disse isso na cara da minha mãe, e eu sou um pouco perturbada da cabeça, do juízo, aí eu comecei a esculhambar o policial aí na frente, aí apanhei e fui pro castigo.

E1: Tu já foi pro castigo?

Entrevistada: Fui oito vezes pro castigo. A gente sofre aqui!

E1: Como é o castigo?

Entrevistada: O castigo é no isolamento, uma cela bem pequenininha pra seis pessoa, que é três na cama e três no chão. Chega comida a hora que ele quer, num pode, num tem direito de biscoito, num tem direito a nada lá trás, só a roupa. Pra chegar absolvente lá trás é pobrema e, se tiver menstruada, tem que usar pano, porque o absolvente não deixam entrar. A reportagem pede pá entrar pra ver como é que a gente tá, mas eles num deixa a reportagem entrar, diz que a gente tá bem, coisa que a gente não tá bem. As mulher que trabalha aí é humilhada, eu vejo, a gente sofre! O que a gente tá pedindo aqui... a gente só quer mesmo ser liberada pá passar tempo solta e as comida. Setecentas mulheres pra uma cadeia dessa pequenininha... na hora de dormir a gente sofre, é vinte mulher no chão, o chão bem pequenininho, só vocês entrando pra ver como é a cela da gente, pequenininha.

E1: Tu chegou a trabalhar aqui já?

Entrevistada: Nunca me deram emprego, nunca, eu tô com um ano e cinco meses aqui e nunca me deram emprego.

E1: Tu pensa em voltar a estudar?

Entrevistada: Eu estudo aqui.

História 13

E1: Me fala um pouco de você.

Entrevistada: Um pouco de mim?

E1: É.

Entrevistada: Que eu estou me sentindo muito depressiva nesse lugar, por eu estar aqui desde o dia quinze de abril de 2008, e num ter regressão, assim num tô sentindo regressão de nada né?! Num tá acontecendo nada, porque o meu processo ele anda muito devagar, então já dei parecer, já dei entrevista pro semi-aberto, é progressão de regime e nada de acontecer, nada, nada de ninguém me chamar. Aí vou ter uma audiência no dia 22 de dezembro, de março agora, ganhei dois alvará no dia 22 de dezembro do ano passado, de 2008 pra 2009 e um de 2009 pra 2010 e continuo aqui no mesmo lugar. Já tirei minha cadeia, minha cadeia foi no sexto, oito anos e cinco meses e já tô a dois ano e dez meses, dia 15 de abril faço três anos e não saio daqui, continuo no mesmo lugar.

Entrevistada: Aqui, eu fui espancada por dois ASPEs e um, inclusive, saiu daqui da Unidade, ele apertou o meu pescoço uma vez por eu tá brigando com uma menina que a menina veio falar da minha mãe. Quando deu minhas parte, eu fui pra cima dela, mas fui pro Japão, passei Natal e Ano, mas ganhei no conselho, no papai leve. E o outro foi um irmão que ele também foi afastado daqui, ele tentou dá uma gravata em mim lá, na frente de todo mundo aqui no pátio, à noite, aí eu também agredi ele porque ele veio me agredir. Eu acho que só quem poderia me agredir é meu pai, meu pai é falecido. Aí ele me botou no Japão vinte dias no castigo.

E1: Tu tem quantos anos?

Entrevistada: Fiz trinta anos em dezembro.

E1: Trinta.

E2: Tu tem filhos?

Entrevistada: Não, nunca tive relação com homem não, sou lésbica.

E1: Tu tem alguém aqui?

Entrevistada: Tenho.

E1: Mas, tu conhecesse aqui ou lá fora?

Entrevistada: Não, na rua eu tava com uma da rua, só que ela, depois que eu caí, ela se afastou de mim.

E1: Num visitou.

Entrevistada: É que ela disse que eu num era desse mundo de assalto e, realmente eu nunca assaltei. Eu sou menina aqui, que só assim, estudava, jogava no Sport Clube do Recife, passei numa matéria no jornal, que muitas pessoas viram, eu a, é Simone é... e mais duas, bailarina e outra, saímos numa entrevista falando sobre drogas, que graças a Deus, esses onze meses eu tô liberta do crack.

Entrevistada: Simplesmente, eu fui, eu sou agora, liberta, entendeu? Sou afastada dos caminhos do Senhor, que eu passei seis anos na igreja, me afastei, foi quando eu entrei nessa vida de lésbica e aqui eu sinto um lugar muito... aqui tá sendo muito agressivo já.

E1: Mas...

E2: Como é a noite aqui?

Entrevistada: A gente entra, eles tocam, dão o café de cinco, de sete horas eles recolhem a gente, é... seis horas.

E1: Aí vocês ficam trancadas a partir das seis horas?

Entrevistada: É, fica todo mundo trancada. Quando dá oito horas eles fazem o total e depois todo mundo vai dormir, se fizer zoada, ele bate a cela.

E1: Quando dá oito horas ele faz o que?

Entrevistada: Ele faz total, pra saber se tem alguém, se tão todas corretas.

E1: Ah, sim.

E2: Ou se alguém fugou.

Entrevistada: É, inclusive teve até uma fuga aqui de uma menina, que foi um dia que faltou energia, ela fugou e a gente passou três dias de Carnaval trancada por causa dela, até quebraram esse portão aí, elas arrombaram.

E1: São quantas pessoas na tua cela?

Entrevistada: Na minha cela, a maior cela que tem é a minha, é a trinta e dois, que é a última da janela, ela tem quarenta e três mulheres.

E1: E caberia quantas normalmente?

Entrevistada: Era pra caber umas dezoito pessoas, passou da conta, né?! Eles fizeram cama, camas, todo mundo dorme na cama, ninguém dorme no chão, em outras celas, a turma dorme tudo no chão.

E1: Tu acha que essa experiência aqui vai fazer com que tu retorne pra cá?

Entrevistada: Não, porque... foi até bom essa matéria, falar um pouco, eu acho que eu aprendi. Aqui, pra mim, não é uma escola, é uma faculdade, escola é lá fora, que a gente só aprende quem não quer coisas que não prestam e aqui, pra mim, por exemplo, de alguns ASPEs que são gente fina eles demostra um esforço assim, uma ajuda, eles conversam, pede pra gente, se for embora, a gente, se ganhar o alvará agora, eles chegam lá no portal, eles falam: num volta mais, levanta a cabeça! Como dona Mônica é uma ASPE, que ela procura processo da gente, ela que corre atrás, entendeu?! Então pra mim, aqui é uma experiência muito grande, eu mudei muito, tive muitas mudanças.

E1: Tu acha que do jeito que a cadeia tá funcionando aqui, ela serve pra ressocializar?

Entrevistada: Assim, servir, serve, com certeza, mas deveria mudar muitas coisas aqui.

E1: O que por exemplo?

Entrevistada: Por exemplo, é... alguns ASPEs não ser muito agressivo com as reeducandas.

E1: Humrum.

Entrevistada: Porque o que tem aqui, tem uns que eles são muito agressivo, inclusive tem uma que tá no Japão por, por uma agressão de um, um tiro de borracha ela levou.

E1: Quando?

Entrevistada: E agente tem até medo de comentar, foi uma semana dessa aí, antes do Carnaval, por causa da comida. A gente tava trancado, na tranca, antes da quarta-feira de cinza. Ele, ela falou que queria farinha, ele fez: toma essa merda! Ela disse: isso aí num merda não! Ele fez: cale a boca! Aí deu uma, pegou a doze, botou aqui nela, meteu no ombro e deu um tiro de borracha e pegou à queima roupa nela. Ela tá com a roncha deste tamanho, tá defecando sangue e urinando sangue no Japão, no castigo.

E1: E o médico?

Entrevistada: Eles não levam, porque sabe que se ela sair pra fora na visita no dia de domingo ou qualquer hora, alguém vê, denunciar, vão denunciar eles e a gente queria pelo menos o direitos humano aqui, pra pelo menos a gente falar o que tá se passando, porque a maioria a gente paga pelos erros dos outros.

E1: Tu recebe visita no domingo?

Entrevistada: Eu recebo visita mas, de vez em quando, minha mãe não pode vim por causa dos meus sobrinhos que nasceram gêmeos e nasceram com problema e é muito difícil. Se a gente tá trabalhando, ele trabalha no pátio, na limpeza, a gente desentope fossa aqui, três, quase quatro meses sem receber, porque recebe pela SERES e a gente não tá vendo o dinheiro.

E1: Então vocês não tão recebendo?

Entrevistada: As firma não pagam no dia certo, as firma, aí dá corda, plástico, perfil e a gente não recebe da casa, as menina da cozinha, tudinho, não tão recebendo, a Conceição, três meses atrasados e a gente tá tudo precisando, que a família da gente lá fora tá passando, necessidade.

E1: E eles alegam o que pra esse...?

Entrevistada: Alegam que, não falam nada, tempo indeterminado disse que é... num, num tem tempo, num sabe, num tem previsão, é isso que eles falam pra gente, e a gente trabalha feito escravo aqui, que agorinha eu tava... minhas mão encaliçadas, limpando o mato lá fora, aí desentope fossa, pega em merda dos outro, aí acha faca, acha celular no buraco, tem que entregar, se não entregar a gente vai pro Japão, muitos problemas.

E1: E como é que entra celular?

Entrevistada: Entram encaixado em mulas, que pessoas da família de alguma reeducanda aqui pagam cem reais pra elas entrarem, mas entram fácil, né?! Porque sabem encaixar, acostumada em presídio de homem, sabe fazer, se chama mula, é... leva droga é tudo.

E1: E a droga?

Entrevistada: A droga no momento a gente não tá vendo no corredor, né?! Mas tem época que tá, tem época que tava tendo crack, tudo.

E1: É mais caro aqui?

Entrevistada: Caro não, é... dez reais um negócio que é do tamanho de um grão de arroz, e engraçado que depois que teve a operação pente fino, por duas vezes no mesmo mês, eles levaram tudo, saíram levando tudo e agora eu não sei como é que entra e, se eu ver, eu tenho que ver e me calar, né?! Que se eu falar as menina me chama de caboeta, x-9 e eu trabalho aqui no pátio o que eu mais ouço é isso é x-9, tu é x-9, arrisca, se eu não for meter a cara e falar grosso também eu apanho na cara sentada, aqui, a gente tem que calar, a gente tem até medo quando os direitos humanos vem de falar, porque eles ficam no pé da gente, se eles ver, ou alguém, alguma, tem alguma presa aqui que são caboeta, são x-9. Tem umas que ficam rondando, se você vê encarnando demais, é porque quer ouvir pra dizer a eles.

E1: A chaveira é x-9?

Entrevistada: A chaveira não, Jane não, ela fica na dela.

E1: Mas vocês ficam desconfiadas?

Entrevistada: A gente fica, porque a gente não confia nem na roupa que a gente veste né?! Se ela rasgar, a gente tá nua na rua.

E1: Tu consegue dormir aqui?

Entrevistada: Não, não porque na cela que eu moro é muita zuada, as meninas são daquelas que se discutir elas furam, furam pra valer até matar, 'eu vou te furar!' Porque elas são maloqueira de rua e a gente não vai se medir com pessoas assim porque eu mesma nunca vivi na rua, só conheci umas amizades, por através de umas amizades que eu tô nessa, mas eu só durmo através de controlados.

E1: Estudasse até que série?

Entrevistada: Eu estudei até a oitava e aqui eles não deixam eu estudar, tava estudando, mentindo, porque eu não tinha acesso, disse que era terceira, porque eu passei sete anos sem estudar, porque eu jogava futebol e ficava complicado aí depois que eu arrumei uma bolsa.

E1: Quando tu sair daqui qual é a primeira coisa que passa na tua cabeça, pra tu fazer lá fora?

Entrevistada: A primeira coisa que eu falei na matéria e falo pra diretora daqui dona Alana é que, já tá, já tá garantido a minha lanchonete e ela já comprou chave, já comprou carne, é, carne de cachorro quente, ela já comprou todo o material, só tô esperando a minha saída, inclusive, eu tando preso aqui eu ganhava o auxílio moradia que eu comprei um barraco na favela, aí foi indenizado e minha mãe foi pá audiência que..., pá constatar que eu estou presa, aí entregou as chave na mão da minha mãe e lá tá o apartamento no nome dela, mas quando eu me soltar eu vou fazer, refazer a minha vida, construir uma coisa que eu perdi contra amizades que não vale a pena.

E1: E qual é o maior sonho que tu alimenta aqui dentro?

Entrevistada: O maior sonho é poder ajudar as que ficarem quando eu me soltar, poder, a família delas, de algumas que me deram o nome, de não ter condições financeiramente de poder ajudar com uma cesta básica, entendeu? Trazer algum lanche, entregar na casa da família e poder ajudar.

História 14

Entrevistada: Eu fui criada, eu sou filha de criação, minha mãe me criou, minha mãe legítima morreu, minha mãe me criou, eu sou revotada da vida. Eu sou aviciada, tinha um filho, mataram, ele tinha um 21 ano e eu entrei em pânico e fiz besteira e vim parar aqui, e, hoje em dia, eu tento me regenerar.

E1: Mas me conta mais como é que foi a tua infância, no caso, tu sabia que a tua mãe tinha te deixado?

Entrevistada: Vim saber depois de grande.

E1: Era uma amiga da tua mãe que deixou?

Entrevistada: Ela deixou eu presa no quarto e foi embora pá Bahia.

E1: Presa no quarto?

Entrevistada: Sim, dento dum barraco.

E1: Na casa dela.

Entrevistada: Ela num me deu, ela não me deu pra essa moça, deixou eu lá, ia lá, sarando, sarando, sarando e pobrema nas perna, sem andar, 3 ano sem andar e essa senhora cuidou de mim porque ela cuida de outro e quem me ajudou é ela, só tenho ela.

E1: Você quando era criança tinha algum sonho?

Entrevistada: Sonho?

E1: É.

Entrevistada: Tinha sonho de ter trabalhar, estudar.

E1: Queria trabalhar em que?

Entrevistada: Eu queria trabaiar em enfermagem, né?! Mas num cheguei a fazer meus estudo.

E1: Tu fizesse até que série?

Entrevistada: Eu repeti a segunda série.

E1: Aí desistiu dos estudos?

Entrevistada: Era muito danada no colégio e aí fui expulsa. Isso é de pequena, num tive futuro, né?! Tem que ter um futuro, né?!

E1: Tu num pensa em estudar aqui?

Entrevistada: Penso. É a, a... chefe de segurança já falou pá ver uma vaga pá me colocar tô só esperano, que eu tive uma briga aqui, tive uma confusão, que fui pu castigo tô aqui a dois mese no castigo. Aí ela tá pra mim dar um trabalho e me dar uma aula e tá esperano uma vaga que num tem vaga.

E1: E antes de vir pra cá tu fazia o que lá?

Entrevistada: Drogando eu fui pega na...

E1: E tua mãe sabia, teus filhos sabiam o que aconteceu contigo?

Entrevistada: Minha mãe recramava sempre, minha mãe me dava muitchos conselho, minha mãe me deu uma casa pra eu sair da rua, se ajuntou com meu marido, meu namorado né?! Tem um barraco, mas, sempre que brigava com ele, ia pá rua. Num sei o que aconteceu, fui presa, saí de casa num dia no outo fui presa, num me pegaram com nada só cum dinheiro do programa e com uma pedra, ainda tava intera. Achava que era do tráfico.

E1: Eles acharam que era do tráfico?

Entrevistada: Eles colocou 11 peda e dinheiro eles cumeram. Aqui é o pior lugar pra você trazer a família.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque eles maltratam, né?!

E1: Como é que tu se sente aqui?

Entrevistada: Derrota, me sinto enterrada viva. Faz a segurança, às vezes, a gente num faz nada, castiga por besteira, num pode dizer um 'ai' também.

E1: Tu dissesse que era revoltada da vida, tu acha que é revoltada por quê?

Entrevistada: Pela morte do meu filho e pela mãe que me deu, né?! Porque ela só tinha eu e outra, deu eu e não deu a outra.

E1: Quando ela te deu, que te deixou, a outra já tinha nascido?

Entrevistada: Já tinha nascido, é mais velha.

E1: Aí foi com ela e te deixou?

Entrevistada: Foi com ela não, deixou com minha vó, com a mãe dela. E ela falou pra minha mãe que tinha dado eu ao marido dela, mas ela prostituta, ela tinha curtido com tudinho e a mulé do homem queria matar. Ela foi pá Bahia e deixou eu dento do quarto. Fiquei doente.

E1: Quando sair daqui tu pretende fazer o que?

Entrevistada: Eu pretendo me regenerar e viver minha vida e da minha mãe.

Entrevistada: Arrumar um trabalho importante, qualquer coisa, aprender aqui na... agente faz trabalho, sandália, tiara, missanga, ela me ensina a fazer. Na rua, compro material e o trabalho é que não sei.

E1: E agora tem algum sonho?

Entrevistada: Hamram, não quero ser mais enfermeira.

E1: Mas tu deixou porque num gosta mais ou não acredita que vá conseguir?

Entrevistada: Consigo sim.

E1: Mas tu num quer mais por quê?

Entrevistada: Num quero isso não, ando muitcho perturbada, eu fui até réu primária depois da morte do meu filho. Eu num gosto nem de falar que num é fácil, 21 ano era tudo pra mim e pra minha mãe, minha mãe faça um chá aí pro meu filho, ela fazia.

E1: Tu tem alguma proposta? Tu acha que alguma coisa pode ser feita aqui dentro (colocar mais trabalho, escola, e deixar mais visitas, alguma coisa) para que a pessoa saia e não cometa crimes de novo?

Entrevistada: Aqui a gente precisa de visita, porque aqui só tem visita de mãe. A gente quer uma visita de uma amizade, do sobrinho...

E1: Tu tens amigos?

Entrevistada: Tenho. Também num sou muito chegada, assim, minha vida é mais só, minha cumade quer vim num pode, uma visita extra agente não tem e só tenho minha mãe, tenho minha cumadre, tem meus cunhados também, tem minha irmã, meus sobrinho que é as coisa mais linda que eu tenho, adoro! 9 mese que eu tô aqui e ele doido pá vim. Num tem condições, dá revolta na vida da pessoa, termina a pessoa tendo mal conduta. A gente quer ter boa conduta e num pode se a gente mesmo pede, num pode.

História 15

Entrevistada: Ah, até eu chegar aqui eu tinha uma vida normal, né?! Lá fora, né?! Trabalhava pra manter meus quatro filho, sou avó, tenho, acho que numa básica assim, acho que eu já tenho, acho que, uns dez netos. Só que lá fora eu era sozinha pra tudo, pra manter meus filhos e meus neto, aí, aí foi quando veio o desemprego, me deram, me ofereceram, né?! Preu ganhar mais, assim, pouxa, tu num vai ganhar mais, tu vai ter como manter teus filhos, teus neto, eu fui atrás de querer mais, de uma ambição, né?! Aí fui, caí pro tráfico, não demorou muito aí me entregaram, caí a minha primeira queda, saí daqui com um mês, um mês que eu saí daqui, um mês e quinze dias me pegaram de novo, me colocaram aqui, aí agora sou condenada, fui condenada a cinco anos, dois anos no fechado, tô esperando a resposta da minha primeira queda, que tá na mão da, do Ministério Público, aí é que eles lá vão ver, se vão me absolver ou se vão me dar mais cadeia. Mas, estou arrependida de tudo que eu fiz, não vale a pena...

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque tudo que passa aqui dentro.

E1: E o que é que te passa aqui dentro?

Entrevistada: Humilhação... dormir com as baratas, cumer um cumé desses, cheio de bicho. Poxa, eu errei, quer dizer, não só eu como as outras, mas nós somos seres humanos né?! Vocês precisa, precisava vir assim, não só vocês, e outra coisa, qualquer coisa aí que eles souber que eu tô falando aqui eu vou ser bondeada.

Entrevistada: Aqui nós somos espancadas, falta com o respeito com nós, muitos palavrão, câmara eu acho que aqui não tem. Vocês tem certeza que eles não vão saber de nada disso?

E1: Com certeza.

Entrevistada: Mas eles humilha nós, é tiro de borracha, bate, leva pro castigo. Pronto, hoje mesmo, o prantão que tem aí, hoje, cinco e meia nós já tamos na tranca, peraí, oxente, o que é isso? O juiz não sabe de nada disso não, do que nós tamos passando aqui não, porque quando o juiz chega aqui, já é outra coisa, ele passa pro juiz outra coisa, só basta o juiz dar as costas...

E1: E pra vocês, é pra botar a tranca de que horas?

Entrevistada: Antes, nós ia pra tranca sete e meia, no máximo oito horas. Hoje em dia, cinco e meia, quinze pras seis, tudo na tranca. Bora camboio de vagabunda, camboio de puta... bora. Muitas, a maioria, também cede pra eles, porque se sede pra eles, sede pra eles, vocês tão entendendo o que eu tô querendo dizer? O sexo. Como tem umas que não cede, ali, aquelas dali também não presta pra eles, não vale nada pra eles, não vale nada. Termos um médico aqui a gente não tem, médico a gente não tem aqui, médico a gente é atendido aí. É, ginecologista, quem tiver com muita dor, o remédio quem dá é eles, elas quem dá o remédio que elas quiserem, tem que esperar a ficha dois, três meses pra ser atendida aqui, nesse lugar. É certo isso? Eu acho que não. Quer dizer, se eu tiver falando algo a mais pode dizer, que eu paro por aqui mesmo.

E1: Não, eu quero que você fale mesmo, porque é mediante a sua informação que a gente vai poder mostrar com a pesquisa, não vai ser revelado seu nome, não vai ser revelado nada, apenas a informação.

Entrevistada: Outra coisa, porque errou, eu trabalhava, eu trabalhava aqui dentro, eu trabalhava, porque me pegaram com um aparelho que não é meu, não é meu, jogaram na minha cama, onde eu dormia, eu fui lá pra trás, peguei dez dias na disciprina, tô arriscada a pegar mais vinte dias. Tenho um filho preso, tenho um genro preso, não tenho donde tirar. Eu me mantinha daqui, do trabalho daqui, então, quer dizer, não quer que a gente se endireite desse jeito, não quer. Quer que a gente se revolte mais ainda, como é que a gente vai se ajeitar desse jeito?

Entrevistada: Tu acredita que ninguém nunca viu uma lagrima minha aqui, hoje tá descendo. Que chega um certo ponto que a gente não aguenta mais. Hoje eu tive que inventar que ia estudar ali à tarde, não, mas eu quero estudar, eu estudo de manhã, aí eu tive que inventar que eu ia estudar ali à tarde. Já falei com a professora já pra poder sair da sala, da cela, já, isso é, é, são muito agressiva elas, uma fura uma a outra, e é trafico, é tudo, eles querem combater, mas eles não tão conseguindo combater o tráfico aqui dentro, porque a maioria deles são os próprio que coloca pra dentro, são os próprios, que nunca as famílias que coloca. Como é que tem condições de a família, você vai pra vestoria, você tira a roupa, agacha, levanta, não sei quantas vezes, e a droga ainda cai pra dentro, não tem condições não.

E1: Tu acredita nesse sistema, do jeito que ele tá funcionando, a pessoa se ressocializa?

Entrevistada: Não, não.

E1: E como é que tu acha que deveria ser o sistema pra pessoa se ressocializar?

Entrevistada: Devia ser assim, veja, não só no meu caso, como no caso das outra, poxa! A gente errou, só porque a gente errou a gente não tem o direito de trabalhar? Que é isso? Tendo vaga pra trabalhar, bota quem chegou agora, em vez de botar quem já tem duas, três, queda, quem já tem cadeia pra comer nas costas. Quem chegou agora é que eles tão botando, quem chegou agora pra trabalhar, não tão botando as residente, tão botando sumariada pra trabalhar. Quer dizer, passa dez, quinze dias na espera, ou menos, sai da espera, vai pro convívio, quando sai do convívio, aí fala ali, arruma um emprego, que nem a maioria delas tão trabalhando. E a gente que já tá mais aqui, antigo, que eu vai fazer um ano e cinco meses que eu tô aqui.

E1: Como é que fica tuas emoções, teus afetos aqui em relação a sociedade, fica com mais raiva da sociedade, com menos raiva?

Entrevistada: Não, eu não fico com raiva e ao mesmo tempo eu fico, cai, cai uma depressão. Depressão, que eu não era esse, esse físico, minha cintura agora é 38, eu visto 42, 42 pra 38 é uma diferença muito grande, né?! Promete emprego de hoje de amanhã, quando foi a semana... 'você não vai ter direito de trabalhar não porque você rodou com aparelho.' Poxa, eu rodei com o que não é meu, jogaram na minha cama, eu não tenho condições de ter um aparelho aqui dentro não, porque minha filha desempregada lá fora, minha filha vende churros na cidade, eu recebo visita uma vez por mês, às vezes nem vem, vem de dois em dois meses, de três em três meses, como é que e posso ter um aparelho aqui nesse lugar?

E1: Tua filha vem?

Entrevistada: Minha filha vem.

E1: Só sua filha da sua família?

Entrevistada: Só vem minha filha só, minha mãe não vem que me desprezou aqui.

E1: Tem uma filha só?

Entrevistada: Não tenho uma filha só, tenho quatro filho. Um não pode vim que é procurado, o outro tá preso, e a outra tá gestante, aí não pode entrar mais porque já tá com sete meses, aí não entra e ela não pode entrar por causa dos filhinhos dela, porque ela tem três filho, quatro aliás, tem quatro, cinco com o que ela tá esperando, aí ela não pode entrar porque neto não pode entrar, que neto não é família, que é isso? Neto não é sangue? Neto não entra aqui não, eu não tenho o direito de ver meus neto não, e um ano, vai fazer um ano e cinco meses que eu não sei nem como é a fisionomia dos meus neto já, aí como é que eu vou me sentir? Só eu que sei, né?!

E1: E como é que foi na tua casa, tu morava com a tua mãe quando tu caísse pela primeira vez?

Entrevistada: Não, eu morava só, eu morava só com a minha companheira e meus filho.

E1: Mas tu se dava bem com a tua mãe?

Entrevistada: Me dava bem com a minha mãe. Foi uma discussão que teve aqui entre minha filha e minha mãe sobre ciúmes, que minha mãe diz que minha mãe dá mais atenção ao meu irmão lá no sanatório onde ele tá, no HCTP, ciúmes, e disse que quando eu tava na rua nunca quis me ajudar foi preciso a minha mãe entrar pra vida, pro tráfico, hoje em dia eu tá aqui, pra poder sustentar ele e agora tão, querem vim, não... que era pra me dar...

E1: Mas quando tu caísse, é, até então, tua relação com a tua mãe já não era muito boa?

Entrevistada: Não, já não era muito boa e agora foi que piorou mesmo.

E1: Aí quando tu caísse da primeira vez, como é que ela ficou?

Entrevistada: Até porque, até porque, ela já disse que eu já era a vergonha, né?! A ovelha negra da família, eu já era a vergonha da família porque eu gosto, não gosto assim do sexo, né?! Sou, é, amigada com uma mulher, pronto, na rua, não é de agora, é de muito tempo e ela sabe, ela nunca aceitou, ela quando veio aceitar já era tarde, eu já era mãe de quatro filho já, aí, então, a gente não se dava muito bem.

E1: E esses filhos?

Entrevistada: Esses filhos são todos meu.

E1: Então tu tivesse uma relação heterossexual?

Entrevistada: Morava com ele e com ela numa casa só.

E1: Morava com os dois?

Entrevistada: Com os dois: com ele e com ela.

E1: E como é que foi isso, conta essa história.

Entrevistada: É uma história tão... essa historia foi sofrida e ao mesmo tempo não foi porque enquanto ele judiava de mim ela não... alí eu já superava, né?! Como se diz o ditado o amor supera, né?! Porque eu já superava devido o amor que ela passava pra mim e ele já tirava do outro lado, enquanto uma dava de um lado, o outro ia e tirava e aí eu fui, chegou um certo tempo que eu fui e não aguentei mais e fui embora, joguei tudo pro ar, joguei casa, joguei filho, tudo pro ar e fui mimbora, mas me arrependi.

E1: Ele sabia que...

Entrevistada: Ele sabia, ele sabia, tanto é que...

E1: Vocês foram morar juntos já...

Entrevistada: A gente morávamos junto... não, quando ele me conheceu, eu tinha doze anos, ele já sabia que eu era, que me minha mãe tinha me colocado de casa pra fora, não me aceitava eu dentro de casa porque e não gostava de homem, gostava de mulher.

E1: Com doze anos?

Entrevistada: Com doze anos de idade eu já não sentia nada por homem. Tive o meu primeiro namorado, um marinheiro, eu cheguei a jogar o meu namorado pra minha irmã porque eu não sentia nada, não sentia, só sentia com uma mulher, que foi a minha professora, que foi que, não que abriu, que isso não tem nada a ver não, ninguém bota ninguém ao mau caminho não, a gente só faz aquilo que a gente quer mesmo, não é verdade?!

E1: E que mau caminho?

Entrevistada: Assim, o mau caminho, assim, é ter um... agora daqui, eu tá aqui agora na cadeia porque eu fui praticar, o que, fui destruir a vida de um ser humano, né?! Porque eu destruí eu só fazia destruir, eu não roubava e não matava e ao mesmo tempo eu roubava e matava porque eles roubavam e matavam pra sustentar o vício deles, pra chegar até a mim ou às outras pessoas pra comprar a droga, né isso?!

E1: Tu já visse alguém num, num estado muito, muito ruim indo comprar a droga contigo? E o que é que tu sentia?

Entrevistada: Já vi já, eu me sentia mau, porque, no meu ponto assim, eu sendo uma mãe de família, né?! Eu passando droga, de menor eu não vendia droga a de menor porque eu me sentia mal, puxava o de menor e dava conselho, vinha mulher, mulher vinha comprar a mim, eu num, num despachava ela, assim, de espontânea vontade, eu já dava a vez pra outro, vai fulaninho, eu não vou despachar não, é uma mulher, porque tu não vai, pai? Eu digo, porque eu não me sinto bem despachando uma mulher, poxa, um de menor chega, eu sei lá amanhã ou depois o meu filho ou minha filha tá se drogando, porque eu não me drogo, ninguém lá em casa não se droga, a minha droga só é o cigarro mesmo, ninguém lá em casa se droga, aí quer dizer, ali eu tava, não tava me sentindo bem, que ali eu sabia que ele ou ela ia pegar no pé dos outro, matar ou roubar, chegar ao ponto de matar, né?! Pra tomar ou o dinheiro ou algum pertence pra vender ou ir numa boca de fumo pra trocar por uma droga.

E1: E teu pai?

Entrevistada: Meu pai eu não tenho pai, meu pai se separou da minha mãe, eu tinha oito meses de idade, minha mãe me criou sem pai, não só eu como...

E1: Aí quando tu completasse doze anos tua mãe te colocou pra fora?

Entrevistada: Minha mãe me colocou pra fora com doze anos de idade, desde os doze anos de idade que eu não vivo na companhia da minha mãe.

E1: E como é que tu se virava assim com dinheiro?

Entrevistada: Ah, eu me virava assim, que tinha o, tinha o meu outro irmão, que Deus o tenha, que ele já morreu. Era, a gente saiu de casa, a gente foi pra cidade, ele comprava pente, a gente vendia pente no sinal, assim, nos bar, e ali a gente ia se virando sem precisar de pegar no que é dos outro e eu vim vender droga já agora a pouco, depois de mãe de filha, uma vergonha!

E1: Tu tás com quantos anos?

Entrevistada: Eu tô com 40 anos, comecei, acho que com uns 32 a 33, por aí, assim, acho que foi. Não ganhei nada, só fiz perder, perdi meus dente que quando a policia me pegou colocou a arma na minha boca, começou a girar na minha boca pra tirar dente tirar tudo, preu dá de conta do dono, do dono da droga, quem, colocava na minhas mãos, e, na real, de mesmo não tinha dono nenhum, que os dono era tudo ele mesmo, que eu peguei uma oferta e ali juntei um dinheiro, foi, já não trabalhava mais pra ninguém, já trabalhava pra mim mesmo, entendeu? Tinha dono nenhum, aí eu ia dizer uma coisa que não tinha, não existia e mesmo se existisse eu não ia dizer porque vida dos meus filho lá fora como é que ia ser, iam tirar a vida dos meus filho ou aqui dentro mesmo ia mandar tirar minha própria vida, porque aqui tem mulher com disposição pra isso, aqui tem, aqui tem uma que se droga, passa por você... pronto! Acabousse e fica por isso mesmo porque ele não toma providencia nenhuma não, ficam por isso mesmo, a providencia que eles tomam, bota lá trás, passa dez, vinte, trinta, até sessenta dias já passou uma lá trás, sessenta dias, mas continua aqui com nós, que é que adianta? Se ela é uma ameaça aqui pra nós, que eu mesma, eu não sou agressiva.

E1: Que é que tu queria fazer?

Entrevistada: Ah? Não, eu acharia que deveria assim, botar essas mais perigosas pra outro canto, as mais perigosas pra outro canto, que eu mesmo não sou perigosa em nada aí, que eu não mexo com ninguém, não sou maloqueira, não vivo no corredor, fico à procura dum emprego e não me dá um emprego, aí vai fazer o que? Que nem eu cheguei pra ele e disse: vou fazer o que? Vai chegar uma oferta de uma droga pra vender e eu vou, pego, pro corredor, pra vender, porque eu vou ter que manter aqui dentro, me manter meu vicio, que eu fumo, não vou ficar só dependendo da minha filha lá fora, que minha filha não tem condições, e outra, não tem obrigação comigo, nem ela, nem família nenhuma tem obrigação comigo aqui dentro, aí eu vou pegar essa oferta, arriscado é o que? Arriscado é assinar outro 33 na cadeia, aí eu vou mofar aqui dentro, aí eu vou culpar quem? Eu vou culpar eles, porque não quer me dar um emprego, por causa de que? Por causa de um aparelho que foi pego na minha cama sem ser meu, não é justo isso, e eu vou pro conselho, e eu sei que eu vou perder esse conselho, vou pegar mais vinte dias lá trás, com um aparelho que não é meu, com um aparelho que é dos outro, que a mulher já foi pra rua já, a dona do aparelho já foi pra rua já. Eu já entrei ali, eu já falei com tudinho, nenhuma quer escutar, nenhuma... vou esperar, é, como é que se diz aquele, esse negócio, é, que vem de lá do Fórum, Direitos Humanos, é, quando o Direitos Humanos chegar...

Entrevistada: Mas a gente aqui também não dorme não, a gente cochila, e logo que eu durmo, assim, na grade.

E1: Quantas pessoas são na tua cela? E é pra caber quantas dentro da tua cela?

Entrevistada: Rapaz, eu acho assim, que era pra ser cinco no quadrado, duas na grade, dorme quatro na grade comigo, eu durmo com isso aqui meu tudinho, dum, eu dum lado só que nem tá vendo ali, de ladinho, na grade, arriscado vir outra e, que tá na grade ali, eu tô na grade, qual é a proteção que tem ali?

E1: Vocês não fazem um rodízio, não?

Entrevistada: Um, não, reservar, não, a gente não reserva não, cada um tem seus canto ali, cada um tem seus canto, quando chega a noite, bateu as tranca, já vai forrando tudo, faxina, é, a gente faz todos os dias, faxina, exemplo, hoje sou eu, amanha de novo, cada um dia, uma pessoa só, uma pessoa só faz duas vezes, na semana, e assim vai, até, terminar o mês.

E1: Mas assim, afetivamente, tu acha que tu mudou da primeira para a segunda queda?

Entrevistada: Eu mudei, eu mudei.

E1: Em que?

Entrevistada: Não, eu mudei, o termo mudou porque o tempo passou, a gente ficou mais madura, né?! Antes eu não era muito assim, é, responsavi, eu não ligava pra nada, ligava pra... o importante pra mim era ter algo pra os meus filho, pra os meus neto. Primeiro lugar tava eles, eu não, hoje em dia, eu já penso diferente, já penso de chegar lá fora eu sei o que eles tão passando dificuldade lá foras, lá fora, mas eu não vou fazer a mesma coisa que eu fiz pra eu cair aqui, entendeu?

E1: E quando tu consegue lembrar, quando tu era pequena, qual era teu maior sonho? O que é que tu queria?

Entrevistada: Ah, eu pensava em ser uma jogadora, jogar bola, futebol.

E1: Ah, é.

E2: Tu gosta de jogar?

Entrevistada: Jogo, gosto, gosto.

Entrevistada: Já joguei, meu sonho era esse.

E1: E agora?

Entrevistada: Agora eu não tenho sonho nenhum mais não, meu sonho nun vai, nunca vai ser realizado não.

E1: Qual é?

Entrevistada: Nunca. Não, meu sonho é viver minha vida normal, lá fora como eu vivia antes, porque eu era feliz e não sabia, eu tinha que cair aqui pra eu dar valor a minha liberdade e a minha família. Que minha família é meu filho, meus filho e meus neto, né?! Irmão não, que irmão pra mim é parente. Agora eu não tenho mais sonho nenhum, mais não.

E1: E o que tu pensa em fazer quando tu sair daqui?

Entrevistada: O que eu penso em fazer é sair daqui, emprego eu sei que não vai ter não, pra mim não, mas eu penso assim, em negociar, né?! Não com drogas, mas sim com alimentos, qualquer coisa, até pipoca no sinal, bigbig, chiclete, qualquer coisa, mas por tanto que seja um dinheiro honesto, digno, né?! Suado, não dinheiro fácil, que era um dinheiro fácil, mas ao mesmo tempo é um dinheiro muito arriscado. Levei tiro, levei... minhas pernas oh, isso aqui foi tiro, levei tiro da Rocan, eles chagavam: 'tua casa caiu!' Eu digo: 'caiu nada, meu bem, agora que a casa levantou mesmo!' E eu correr e eles atrás, tome bala, tome bala, e eu chegar a puxar e atirar também, eu não queria saber não, era chegar e puxar e atirar também e num precisava de droga pra fazer isso não porque eu não me drogo não.

E1: Tu tinha medo de morrer?

Entrevistada: De que?

E1: De morrer... de ir presa.

Entrevistada: Tenho não. Hoje em dia eu tenho aqui, de morrer nesse lugar. Medo de ir presa eu também não tinha não.

E1: Não tinha medo de morrer lá fora, mas tem medo de morrer aqui?

Entrevistada: Não tinha não, mas eu tenho medo de morrer aqui dentro.

E1: Por quê?

Entrevistada: Porque aqui é onde a gente vê a traição, aqui de um tudo tem, tem muita traição aqui dentro desse lugar, menos esperar é muitas cobras a lhe picar, por, peras costa, né?! Pela sua frente não, é por detrás.

E1: Mas você tem medo das presas?

Entrevistada: Hum?

E1: Medo das presas?

Entrevistada: Nem de todas elas eu não tenho não, eu tenho mais medo daquelas que se droga, que elas se drogas, se drogam pra poder fazer mal às outras. Eu acho que, pra poder a gente dá uma tapa numa, a gente não precisa se drogar nem beber não, a gente tem que ir é lúcida mesmo. Se você tinha disposição, você vai lúcida, não precisa de droga, de bebida, não precisa de nada não. Elas tão dizendo umas coisas comigo, a maioria delas já foi, uma mesma já foi dizer, olha, veja a minha necessidade como foi aqui dentro: eu ganhei uma camisa, é, da Rota do Mar nova, vesti domingo, aí ficou um pouco apertada e as meninas chegou, passou, disse 'oxe, pai, tá com a camisa do teu filho é?' Domingo, dia de visita, eu não tive visita, mas eu me arrumo e saio pra fora, né?! Fica junto com elas, 'oxe, pai, tá com a camisa do teu filho, é?' Aí eu não, não tô gostando muito dela não porque ela, aí prontamente fui, entrei, tirei. Aí, quando foi antes de ontem, eu vendi cem cigarros, eu vendi. Uma drogada foi e vendeu e fumou o dinheiro, comprou droga e fumou o dinheiro, eu fiquei sem a camisa, sem o dinheiro e sem o cigarro. Pedi muita paciência a Deus pra não chegar e não arrebentar a cara dela, e se não dava logo um monte de furada nela pra ela saber, porque vem me tirar como otária nesse lugar, tá com comédia? Lá fora ninguém nunca me tirou, tive que cair aqui dentro pra me tirar como comédia. Mai eu pedi a Deus, e Deus foi e me tranquilizou. Aí ela chegou e disse poxa pai. 'Eu vou querer o meu dinheiro. Daqui pra domingo eu quero o meu dinheiro, porque, se você não me der meu dinheiro, eu juro a você que, se você bobiar, eu vou pra outro presídio, porque você vai me pagar.' Mas foi só naquela hora, porque eu sou só de momento e não demorou muito, quando eu vi o olho dela cheio d'água, aquele olho dela cheio d'água me comoveu. Ela: 'vai me desculpa, me perdoa.' Eu digo: 'eu não sou Deus pra perdoar ninguém não, agora lhe desculpar, eu vou lhe desculpar, agora não faça mais isso não, porque eu tô muito triste com você, você me tirou, você usou o meu dinheiro, sabendo que eu não tenho que ninguém paga pra mim. Vocês aí recebe, toda quarta-feira recebe lanche, recebe cigarro, e eu não recebo nada disso não, eu tenho que vender um pertence meu, uma camisa minha, uma bermuda minha, pra poder sustentar meu vicio aqui, pra poder não tá pedindo: guarda um cigarrinho, guarda um cigarrinho, porque isso humilha', oxe, 'eu não vou lhe dar não rapaz, isso é cadeia, te vira, quem tem seus vícios que se sustente.' E elas não tão erradas não, elas tão mais do que certas, ninguém aqui tem obrigação com ninguém não, como a minha família lá fora não tem obrigação comigo aqui dentro, fui eu que procurei a cair aqui nesse lugar, porque apesar do memento que eu comecei a praticar coisas erradas, já fui consciente já que eu ia ter que cair um dia, mas não cair sem esperar.

E1: Como é que tu via a sociedade?

Entrevistada: Bem, eu não via a sociedade, até porque, que eu mal saia do local onde eu morava, onde eu moro, né?! Eu mal saia.

E1: Me diz uma coisa, qual é tu sentimento hoje com relação a sociedade lá fora?

Entrevistada: Meu sentimento hoje é que, se eu fiz, não que eu fiz muito mau a eles lá fora, que eles me perdoasse, só isso, me perdoasse.

E1: Só pra finalizar, tu estudasse até que série?

Entrevistada: Só até a segunda série.

E1: Só até a segunda série, só?

Entrevistada: Só a, b, c, d, somente isso, mas eu sei escrever, consigo ler pouca coisa.

E1: E outra coisa, tu, aqui, tem uma companheira?

Entrevistada: Tenho uma só não minha filha, tenho muitas, uma só não, oia, já me arranharam todinha já hoje, uma só não, tem uma na cela, outra na outra...

E1: E elas sabem?

Entrevistada: O que? Sabe o que? Quando descobre é um pau triste que eu levo, só vivo apanhando, só vivo apanhando delas. Bem, lá fora, como você perguntou o que era que eu sentia assim, no que diz assim respeito à sociedade, vergonha, não vou mentir, vergonha de dizer, poxa, será se, eu trabalhei pra ela, será se ela sabe do que eu tô fazendo, sabe nada, ao mesmo tempo eu acho engraçado, fico com vergonha, não vou ali não, ela tá sentada assim num, é, numa pizzaria que é, eu ia com a minha família, né?! Minha filha fazia, mainha, oia onde ela tá. Eu fazia, eu não vou lá não, tô com vergonha, oxe, porque mainha? Eu vou não, eu acho que ela sabe do que eu estou fazendo, poxa, a primeira vista que eu me vestia, preu me vestir hoje, só não percebe, só não percebe quem é besta, sabendo que a pessoa não tinha de onde tirar, né isso?! Só minha mãe que não percebeu, minha mãe não percebeu, que minha mãe ia lá, contava as história tudinho que eu fassando isso e isso e isso, emprestei um dinheiro pra sua irmã, num sei o que num sei o que, eu ia lá, que tinha um fundo falso do guarda-roupa, ia lá, puxava um pacotinho de dinheiro, tome mãe tanto, e ela, ah mãe, eu tô trabalhando num bar. Num bar? Pra sua mãe chegar de quinze em quinze dias levar R$ 200,00, R$300,00, um bar dá isso? Um bar não dá isso não e ela num...

E1: Dava quanto mais ou menos por mês que tu ganhava?

Entrevistada: Por mês eu acho que eu tirava mais de R$10.000 por mês viu, era mais de R$10.000 por mês que eu tirava, que eu mesmo ia buscar, eu mesmo partia, eu mesmo embalava, eu mesmo fazia isso, tudo isso, eu mesmo distribuía, eu mesmo fazia tudo isso, num precisava de ninguém pra fazer não, eu mesmo fazia e nem queria meus filho envolvido não.

E1: Teus filhos sabiam?

Entrevistada: Sabia, todos eles sabia, teve uma filha minha que ela saiu de casa: 'nunca mais eu dirijo a palavra a senhora, até a senhora entrega essas coisas.' Eu disse: 'apois eu não vou fazer o que você quer não, eu faço o que eu quero, porque filho não manda em mim eu que mando em filho, você entendeu? Eu não devo satisfação a você, você deve satisfação a mim.' Aí ela saiu de casa, voltou pro marido dela, os dois filhinhos dela, mas não deu muito tempo não porque ela disse: 'mainha, o amor que eu sinto pela senhora é tanto que eu perdou a senhora. Só lhe peço uma coisa: cuidado, se a senhora cair lá dentro, eu nunca vou visitar a senhora, eu nunca vou tirar a sua cadeia.'

E1: E ela veio?

Entrevistada: Veio, ela é a única que tá vindo agora, que ela chega 'oie mainha, eu não trouxe nem uma pipoca pra senhora eu só vim com o dinheiro da passagem.' Mas, eu tô satisfeita, porque ali eu tô vendo que ela tá vindo de coração e outra coisa, eu tenho que pensar duas vezes, como eu cair lá fora, pra não cair aqui dentro de novo, pra ela, minha filha não tá aí sendo humilhada, tirando a roupa, se agachando, se levantando, num sei quantas vezes, é uma humilhação, que ela leva aí na frente, porque eles esculhambam, até as visitas eles esculhamba, quer dizer, eu não quero mais ver minha filha ou minha mãe ou minha irmã, qualquer um da minha família, passando por isso de novo. Eu não quero, que nem tem muitas aqui que tem uma aqui que tem oito quedas, peraí menino, é brincadeira né?! Oito queda.

Entrevistada: Mas eles ficam escutando, mas tem outro aqui que, ele é uma excelente pessoa.

Entrevistada: É um forte, de buchão. A gente chama ele de monstro da lama, monstro da lama a gente chama ele, ele é horrível, ele é horrível, horrível, horrível, ele fez a visita voltar porque tava com a camisa do Santa, quando ele caiu pra cá, que olhou: 'venha cá!' Aí eu... 'É, você, venha cá!' Aí tá, eu com uma calça de Santa. 'Você vai tirar!' Eu disse: 'eu não vou tirar não, não vou tirar não, sabe por quê? A calça é minha, a calça é minha, eu só não tô com a camisa porque roubaram a minha camisa e agora minha filha não vai poder trazer outra camisa do Santa pra mim não.' 'Você vai tirar!' Eu disse: 'eu não vou não! O senhor me leva pra disciprina, mas eu não tiro a minha calça. O senhor quer que eu vista, eu fique de cueca aqui, eu vou ficar de cueca aqui pra todo mundo ver, o senhor quer?' E as visita tudo olhando... me fez passar vergonha, mas eu também, eu fiz ele passar vergonha também. Oxe, eu ia ser obrigada a tirar a minha calça do Santa porque ele não é torcedor de Santa? Que é isso?! Não tirei não! 'O senhor vai me levar pra disciprina, agora o senhor se prepare, porque eu mando minha família fazer uma carta que vai direitinho pra lá, o senhor peça, o senhor não vem tocar num fio de cabelo não, porque se o senhor bater em mim, o senhor vai levar. No dia que eu fui pra disciprina, o negócio do aparelho, ele veio querer me agredir, bater em mim. 'O senhor não vai bater em mim não porque, se o senhor bater em mim, eu vou bater no senhor também. Eu sei que eu não tenho força com o senhor não, mas também apanhar sozinha eu não vou apanhar sozinha aqui não, porque o senhor não é meu pai, eu nem tenho pai, nem tenho mãe na cadeia e o senhor não tá aqui, né pra isso não. O senhor tá aqui é pra segurança das presas, que é pras presas não fugar, e outra, e umas não tá agredindo umas as outras.' Agora, pra eles próprio agredir nós, esculhambar nós, baixar a nossa moral, porque do jeito que a gente respeita ele, a gente também quer respeito, num é isso?! Mas eles acham que não, eles acham que só por causa da farda, a farda de que, da Suzipe... porque lá fora eles não são nada, eles só são alguma coisa aqui dentro, por que lá fora... Eu já disse a ele: 'se eu encontrar o senhor lá fora, eu meto sua cara, eu lhe encho sua cara de bala e pronto acabou-se, pronto, depois eu posso pegar mil ano de cadeia, mas o senhor não vai tá mai naquela empresa.' Nenhuma aqui dentro, nem em canto nenhum, porque eles tão errado, pronto. Quer saber mais de alguma coisa, eu demais, né?!

E1: Tu teria alguma proposta pra modificar o sistema prisional?

Entrevistada: Trabalho pra todas elas, ocupar todas elas, porque é muita mulher aqui sem ocupação na mente, num tem ocupação, aí vão fazer o que? Ou praticar ou vão se drogar. Vão tá brigando uma com a outra, porque brigam tudinho, até por um balde d´água, até se soltar um peido tão brigando: 'porra, fulana, tá fedendo, tu tás podre, vai pro banheiro!' Não, tudo bem, isso elas tão certas, vai pro banheiro, num é porque a gente somos presa, mas tem que ter educação, num é isso?! Nem toda vez, que tem hora que não dá pra ter educação nesse lugar não. Elas, a mente desocupada, exempro, não tem sala de aula pra todas, não tem vaga pra todas. Devia ser assim mai, mais esporte... esporte tem, tem um professor, né?! que vem de manhã, eu num sei se ele agora vai vim de tarde, mas é um esporte só, é um professor só. Aí, ocupar a mente delas com esporte, com trabalho, é, ainda tem mais outras coisas né?! Cursos né?! Essas coisas aí, fazer bolo, assim, essas coisas, que eu não entendo muito não, é, tapeçaria...

E1: E tem atendimento aqui psicológico, social?

Entrevistada: Um ano e cinco meses vai fazer que eu tô nessa cadeia, meu nome tá ali e eu nunca fui pra psiquiatra, não. Eu quero ir é pra psiquiatra, não psico...

Entrevistada: Psicólogo, psicólogo eu já fui já; psiquiatra, nunca fui pra psiquiatra e até porque, na rua, toma um remédio de depressão, aqui, pra tomar um de depressão tem que ir pra psiquiatra, né?!

E1: Já botasse teu nome lá?

Entrevistada: Já botei meu nome, já num sei quantas vezes, eu nunca fui ser chamada, num durmo, num como direito, que a depressão tira a vontade d'eu durmir, tira meu sono, vontade de eu comer, vontade até de tomar água, nem água direito eu tomo por causa da depressão. Eu já falei pra eles aí já. 'Oxe, já viu presa ter depressão, presa num tem depressão não, presa num tem direito a nada não!' Aí quer dizer que, porque eu sou presa, aí eu não tenho direito de ter uma depressão, depressão é pra rico, disse que era pra rico, depressão, oia, quer dizer que só é rico que tem coração é? Pobre num tem coração não. Tá certo isso? Só é rico que tem coração?

2.2.3 Rastreando o campo: o roteiro de entrevistas decodificado (10)

Analisando as falas de todas as entrevistadas, muitos sentimentos e teses vinham à tona. Seriam aquelas mulheres do mesmo patamar social, agrupando-se na mesma categoria alvo do controle seletivo do Estado? Quais foram as situações que as conduziram ao cárcere? É possível encontrar elementos comuns? Que sentido tem a pena para essas mulheres? Quais as reais expectativas e sonhos ao saírem da cadeia?

É fundamental compreender o sentido dessas interrogações e, talvez, refletir a partir das próprias falas. Para isso, estruturamos uma sequência de dados extraídos da análise do roteiro de entrevistas decodificado. Relacionamos esses dados com o intuito de promover alguns indicadores daquela situação.

No intuito de decodificar, em dados quantitativos e qualitativos as entrevistas produzidas no campo, criamos 32 categorias para identificar: a faixa etária, a procedência, a raça ou etnia, os vínculos afetivos (antes e durante o cárcere), a escolaridade, a situação econômica, a relação com o trabalho, as percepções sobre a experiência carcerária e a expectativa de reinserção social, a religiosidade (antes e durante o cárcere), a prática sexual (antes e durante o cárcere), o motivo da queda, o acolhimento ou desacolhimento familiar após a saída do cárcere, os sonhos/desejos (antes e durante o cárcere).

Esses dados foram produzidos a partir de um procedimento hermenêutico de análise dos discursos, uma verdadeira garimpagem. Não é apenas um questionário composto de perguntas e respostas, mas de uma análise, nas falas, da representação subjetiva desses elementos para elas. Assim, não posso afirmar que uma presa tem mãe, mas esta não a visita. No entanto, posso indicar que esta presa tem uma mãe e se há visita ou não, na sua fala não foi mencionado.

Trata-se de uma experiência interessante, marcada de muita subjetividade seja no discurso, seja na sua análise. Aparentemente fluido, mas certamente mais aberto, mais rico em possibilidades, menos direcionado e mais focado na afetividade.

a) Relacionando os elementos: faixa etária, onde mora, raça ou cor, escolaridade, curso profissionalizante, ocupação antes da prisão e situação econômica

Cerca de metade das mulheres entrevistadas tem entre 18 e 30 anos e reside em comunidades carentes. Algumas são moradoras de rua ou já moraram, temporariamente na rua. Mais de 70% das mulheres se classificaram pobres e mais de 86% têm o ensino fundamental, tendo somente uma o ensino médio e três são analfabetas. Dentre elas, somente 2 têm curso profissionalizante e apenas 10 tinham alguma ocupação antes de serem presas. Esses dados sinalizam um perfil de pobreza, pouca escolaridade, quase nenhuma profissionalização e significativa desocupação. É uma pista da proximidade delas à noção de lumpemproletariado.

O lumpen, denominação dada por Marx à classe abaixo da classe operária e que rejeitava a cultura do trabalho, era, por ele, bastante criticada. O lumpen corresponde à camada mais baixa da sociedade; àqueles que vivem na miséria, que vivem direta ou indiretamente desvinculados da produção e que se dedicam a atividades marginais. O lumpen é o alvo da seletividade do cárcere.

Um dado interessante sobre as diferentes situações socioeconômicas dessas mulheres e sua repercussão dentro do cárcere foi relatada por uma presa que, espontaneamente, conversou com a equipe de pesquisa e quis ser entrevistada, embora não constasse na listagem das mulheres selecionadas pelo critério do retorno, mas tivesse mais de uma queda. Segundo ela, há um grande processo de discriminação no Bom Pastor em relação às mulheres mais miseráveis (as “caça-rato”, as que não têm visitas) e as de comportamento reprovável (as “maloqueiras”). Segundo algumas entrevistadas, se você for “bonitinha” e apresentar um melhor grau de instrução, mais facilmente conseguirá trabalhar na cadeia. No entanto, se você for classificada como “maloqueira”, estará em desvantagem. Como se percebe, além do preconceito, não há um critério objetivo para se selecionar para o trabalho.

Essa discriminação pode-se perceber na própria distribuição dos espaços. Vejamos. O Bom Pastor é dividido em dois pavilhões: Bom Viagem e Favela. Antes essa denominação era: Boa Viagem e Pina, embora há ainda menção de algumas detentas a três categorias: Boa Viagem, Pina e Favela. Talvez essa mudança nos nomes esteja relacionada com a própria mudança na condição dos bairros Boa Viagem e Pina e a diferença entre eles não seja suficiente para refletir as diferenças entre as moradoras dos dois diferentes pavilhões. No pavilhão Boa Viagem moravam as presas com melhores condições. Havia algumas celas reformadas, inclusive, com cerâmica, ao invés de apenas cimento batido. Essas benfeitorias foram feitas por familiares das presas. Hoje, os dois pavilhões, após a reforma, seguem o mesmo padrão, mas as divisões nominativas, assim como as divisões pela condição financeira das detentas (as ricas e as pobres, como dizem) e pelas cerâmicas em algumas celas, ainda permanecem.

Diante desses relatos somos conduzidos à indagação: será que o cárcere reproduz, não obstante a identificação pela condição de presidiária, a mesma discriminação social e patrimonial de fora da cadeia? E, em razão disso, novos esteriótipos? Novas práticas de relação entre quem tem poder, quem tem dinheiro e quem nada tem, inclusive no que tange à caridade e solidariedade desenvolvida lá dentro?

O fato de 15 mulheres mencionarem que viviam em favelas, 02 mencionarem que viviam nas ruas e 08 não mencionarem onde viviam, se analisado com a evidente estratificação social do Bom Pastor, nos indica o quê? Não há só um público no Bom Pastor, nem uma só forma de cumprir sua pena, de “tirar sua cadeia”.

Segundo Pavarini, no curso: “Como liberar-se da necessidade do cárcere: um curso de pesquisa-ação sobre a penalidade em Pernambuco”, o Estado exerce um controle social seletivo. Certamente, o cárcere não é para todos, mas só para alguns. Para uns, as penas alternativas são suficientes, mas para outros só a privação da liberdade mesmo. Para aqueles que têm patrimônio, é possível que uma pena, que afete o patrimônio, tenha um poder simbólico e, de fato, produza uma perda; já para aqueles que só têm a liberdade, tirá-la significaria o mínimo e o máximo. O cárcere foi feito para o lumpen.

O controle social (11), segundo Alessandro De Giorgi (2000), no século XXI, se caracteriza pelo controle atuarial, ou seja, controle exercido sobre sujeitos sociais coletivos considerados grupos produtores de risco. Esse controle, realizado pelas elites econômicas, se volta à preservação da ordem social e se manifesta por meio de instituições, práticas, poderes e saberes. Segundo ainda o referido autor, o cárcere condizente com esse tipo de controle abandona as práticas de reinserção e reabilitação social e assume um papel somente ameaçador para aqueles controlados.

A partir disso, podemos refletir acerca de um modelo explicativo que justifique o porquê dessas mulheres virem do mesmo grupo social, de semelhantes histórias de déficits e de retornarem ao cárcere, visto que se tornaram um alvo ainda mais fácil depois da marca do aprisionamento, um grupo de controle ainda mais seleto dentre o lumpen.

Percebe-se também que, no que tange ao critério raça ou etnia, não há quase menção, a não ser 02 mulheres que afirmaram ser negras. Este fato induz a algumas interrogações: será que a falta de menção se dá em razão da pouca significação da questão racial no cárcere? Será que isso se dá pela falta de desigualdade racial neste ambiente, ou seja, o cárcere tem uma só cor? Será que não se sente essa questão, porque há uma discriminação maior que as identifica - ser presa - logo a discriminação racial se torna insignificante, ou mesmo inexistente?

Como diz Leitão em “Do negro escravo ao negro preso: sistema prisional e racismo”, o cárcere é o ponto final do racismo, pois lá:

[...] as relações são muito mais penitenciais do que raciais. Entre os internados isso é notório, e todos os relatos que pude colher dão conta disso. Entre a Segurança esse viés é também fraco, embora um tanto mais presente, porque é função da Segurança estabelecer determinados estereótipos para facilitar o trabalho de manter a disciplina, e o uso de expressões do tipo “negão” são usadas, mas, repito, de maneira que pouco influencia na carreira criminosa do internado. De maneira similar a Diretoria, para quem pouco importa a cor/raça, mas antes a origem e o tipo de crime cometido, já que a partir daí é que se vai preferir colocar o recém-chegado em tal ou qual Corpo, de acordo com a inclinação para a “personalidade de cadeia” de cada um. Não se pense que estamos diante de um quadro que tangencia a “democracia racial”. Muito até pelo contrário. É que o racismo esgotou seu papel, e os internados são jogados à própria sorte na prisão. Já não importa saber senão que estão lá presos os que foram segregados pelo racismo. Quando egresso do sistema prisional, aí o racismo também ficará menos explícito, porque bastará saber que é um exdetento para que as portas se fechem outra vez, reiniciando o ciclo que o conduzirá de novo à prisão ou direto para o cemitério. O sistema penitenciário, portanto, é utilizado pelo racismo como ponto final, onde desembarcam os selecionados pela cor/raça para que não façam parte da sociedade, que justifica, através do “hermafroditismo moral”, essa seletividade, fazendo ilações do tipo: Ah, mas só porque é preto? Só porque é pobre? Isso não determina nada, ele está preso porque é vagabundo, isso sim! Eu mesmo conheço um amigo de um parente de um vizinho meu que é preto, pretinho mesmo, mas é decente, não se envolve com essas coisas...

b) Relacionando os elementos: ter pai, mãe, filhos, companheiro(a), ter a visitas desses entes e ter havido rompimento de vínculos familiares após o encarceramento

A maioria das mulheres entrevistadas tem mãe, filhos, companheiro(a) e, pelo menos metade delas, não tem pai. Constata-se, ainda, que a grande maioria recebe visitas. Das 17 mulheres que afirmaram ter companheiro(a), somente 6 mencionaram receber visitas dos companheiro(a). Das 23 mulheres que afirmaram ter filhos, somente 10 mencioram receber suas visitas, ou seja, menos de metade. Das 23 mulheres que afirmaram ter mãe, somente 5 mencionaram receber visitas da mãe. Dentre as entrevistadas, 23 indicam rompimento de vínculos familiares, sobretudo com a mãe (11) e com o companheiro(a) (6).

Daqui percebemos um cenário de afrouxamento de vínculos, que podem ser melhor compreendidos pelos relatos, por exemplo:

1- [...] é três queda. Ele vinha na primeira queda, na segunda queda, mas agora vem mais não. Porque ele diz que é só safadeza. Disse assim: se tu cair de novo, num vô vim mais não, aí num vem não. A primeira até que não é tão horrível visse, passei oito ano aqui.

2- Eu tinha dinheiro, tinha minha mãe num me aperriava com nada. Agora não, to sofreno, num tenho uma visita, num tenho nada, num tenho ninguém. [...] É porque eu vivo presa e abandonada, eu tô abandonada, eu tinha marido, eu tô presa agora mais por causa do meu marido, ficava presa aí num sei o que ficava melhor pá ele né?! Aí arrumou outra mulher. Minha mãe nem vem [...]

O afrouxamento desses vínculos não implica diretamente na redução de potência, pela produção de afetividade negativa, pelo abandono, saudade, sofrimento, mas indicam esse produto.

Há diversidades. Há as resilientes, aquelas que repensam as atitudes, a partir do abandono. Há ainda aquelas que não se arrependem das práticas que as levaram ao cárcere, ou que não chegam a formar um modelo de vida alternativo para eliminar o anterior, mas pensam em criar alternativas para não ter que retornar ao cárcere, para recuperar seus vínculos. Esse afrouxamento de vínculos, às vezes, promove uma análise das próprias relações afetivas, percebendo-as como melhores ou piores do que eram de fato.

c) Relacionando os elementos: trabalha no cárcere, acredita haver algo de correto no cárcere, acredita haver algo de errado no cárcere, como passa o tempo no cárcere e acredita que o cárcere ressocializa

Dentre as entrevistadas, 24 mulheres não trabalham na prisão, 26 não vêem nada de certo no cárcere, 29 vêem algo de errado no cárcere, mas 16 acreditam que o cárcere ressocializa. A que se deve essa crença na ressocialização? Ao longo tempo para refletir sobre a própria vida? Para se arrepender dos delitos? Por meio da educação? Ou por medo de voltar? Por cansaço da rotina de entrada e saída da cadeia? Pelo adestramento?

O fundamento filosófico da pena privativa de liberdade bem que foi promover a reflexão e o arrependimento, mas, como bem evidenciam Rusche e Kirchheimer em “Pena e estrutura social”, Pavarini e Melossi em “Cárcere e fábrica” e Foucault em “Vigiar e Punir”, o cárcere funciona como locus de adestramento de pessoas em razão das exigências do modelo econômico.

Apesar de mais de metade das entrevistadas afirmarem que acreditam na ressocialização promovida pelo cárcere, muitas delas não estudam, não trabalham, não estão se profissionalizando, não planejam um futuro diferente, não pensam sobre a própria conduta, ou mesmo se arrependem dela. Parece-me que dizer acreditar na ressocialização significa, para elas, dizer que acreditam na própria ressocialização, ou seja, que a cadeia teve um forte poder dissuasivo quanto à repetição das práticas que as levaram para lá. Significa dizer: “não quero mais voltar”, ou melhor, “não preciso mais continuar aqui”, “já entendi o recado”, pois, quando são questionadas sobre a ressocialização das demais presas, elas dizem não acreditar na ressocialização das outras.

Algumas mulheres “tiram a cadeia” estudando, outras à base de entorpecentes (lícitos ou ilícitos). A desocupação e a “tranca” são certamente duas grandes dificuldades no encarceramento.

1- Já botei meu nome umas dez mil vezes já. Já falei com o chefe e disse “meu senhor, eu preciso trabalhar que é pra ajudar meus netos, meu senhor, se eu trabalhar até o final do ano, eu mando uns trocados pros meus filhos, que meus netos tão passando necessidade!”... não tem vaga, não tem vaga... a menina que chega lá hoje que tem esse negócio de pano quente, que aqui chama pano quente, pras novatas, pras antigas eles não bota... que tem uma antiga que fala, né. Aí já bota a novata no emprego... e novata não tem direito, que eu tô há oito mês aqui... eu digo “me dê, pelo menos, pra eu lavar o pátio, pra varrer, pra lavar os banheiros aqui!”. Até hoje não me deram emprego ainda. Porque o que eu tenho pra falar da cadeia é isso... não tem nada de bom aqui, é tudo de ruim aqui pra gente.

2- [O que mais odeia?] As ordens, é muitcha orde. [E qual é a pior ordem?] Ficar trancada o dia todinho na cela.

d) Relacionando os elementos: tinha religião antes do cárcere, tem religião no cárcere e religião adquirida no cárcere

No que tange à religião, tema muito referente e frequente nas unidades prisionais masculinas, não houve quase menção nas falas das mulheres, no Bom Pastor.

É importante destacar que a falta de menção expressa não torna esse tópico inconclusivo, visto a manifestação frequente do envolvimento religioso perceptível por expressões marcadamente encontradas na fala de quase todas as detentas entrevistadas, como se pode percebe.

e) Relacionando os elementos: prática sexual antes do cárcere, prática sexual durante o cárcere e prática sexual após o cárcere

Quanto à prática sexual, importante tópico de análise dos efeitos do cárcere sobre a personalidade, percebemos oscilações nas menções a essa questão, antes, durante e após o encarceramento. 27 mulheres mencionaram manter relacionamentos heterossexuais antes de serem presas, nenhuma se disse homossexual, uma disse manter práticas heterossexuais e homossexuais e 1 não mencionou sobre a prática sexual. Durante a experiência carcerária, 6 mulheres mencionaram ter mantido relações homoafetivas e 23 nada mencionaram sobre o assunto. Após a saída da prisão, somente 2 mencionaram ter relacionamentos homoafetivos e 18 nada mencionaram.

No encarceramento, um dos efeitos que se pode constatar é a prática homossexual que muitas desenvolvem em seu período de reclusão. Os próprios dados acima mostram bem isso. Embora a experiência no campo possibilite a percepção de casais homoafetivos, boa parte das mulheres negam essa prática sexual e se dizem heterossexuais.

Aqui nesse canto a gente tem carência também. Pra fazer um encontro aqui demora um ano. É mais fácil uma mulher vim da rua fazer um encontro aqui dentro que na hora eles assina. Agora 'pro' homem não. É mais complicado, tem que ter endereço, quer saber se já viveram junto mesmo, entendeu? É um processo mais longo do que uma mulher. (...) tem umas que diz assim quando entrar aí: 'ó, eu não faço amor com nenhuma mulé', quando vai ver não dá nem 3 dias. Eu falo: 'ué... tu num faz sabão com uma mulé, tu num faz nem amor com uma mulé, tá com a mulé já?' Eu falo quando eu vejo, oxe!

Foucault (1979, p. 98) afirma que: “[...] nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias”. Nesse sentido, uma relação homoafetiva pode ser utilizada como forma de poder. Toda relação afetiva-sexual produz poder e pode até gerar status no meio carcerário entre as mulheres. No entanto, a prática homoafetiva na sociedade extra muros sofre resistência em sua aceitação.

f) Relacionando os elementos apresentados como possíveis motivos da queda

Nas entrevistas narrativas, percebe-se que vários são os motivos indicados como responsáveis pela “queda”, destacando-se: “má companhia”, “para consumo de drogas”, e “para sustento da família”. No critério má companhia, está bem presente a influência do companheiro, como pode-se perceber nos relatos abaixo:

1- Minha infância eu vivi, morava com a minha mãe, aí depois quando eu completei 15 ano aí eu fui sair da casa da minha mãe, arrumei esse cara que fui morar com ele, tive uma filha, aí quando minha filha tava com nove meses de nascida já aí eu fui e me separei dele, aí arrumei outro, aí esse vivia muito na vida errada, eu me envolvi com ele aí acabei vindo parar aqui. Já é a segunda vez que, é a segunda vez já. Primeiro eu caí com assalto, e essa agora foi tráfico.

2- [...] eu tô presa agora mais por causa do meu marido [...]

3- [...] furtar, o que sempre fiz na influência de Flávio também tá entendeno? Aí pá num me matar eu fazia o que ele queria.

A questão da droga, sobretudo o crack, está muito presente na vida das mulheres entrevistadas, como se pode perceber pela leitura das histórias delas no ponto 1.3. O crack figura como um elo entre a evolução no uso das drogas (que geralmente tem início, ora com sofrimentos incurados, ora com a busca por aventuras) e a criminalidade. O crack impulsiona a prática de delitos para que ela mesma sobreviva por uma viciação que, algumas vezes, se encerra com o cárcere, ou descansa temporariamente com ele, e, outras vezes, continua dentro dele. O consumo do crack no Bom Pastor, muitas vezes, se dá por meio de crimes praticados lá dentro mesmo, como disseram as entrevistadas, por meio de furtos e venda de coisas de outras detentas, seja por meio do tráfico que elas passam a realizar lá dentro mesmo.

Há um relato interessante onde uma entrevistada conta que uma mulher viciada em crack furtou uma camisa sua e trocou por droga. Quando ela descobriu e manifestou o seu aborrecimento, a outra detenta, já sem o efeito da droga, implora seu perdão e alega ter sido mais forte que ela. A entrevistada, depois de comunicar que não terá uma segunda vez, a desculpa.

Parece que o crack as torna inimputáveis perante sua própria consciência, não obstante haja passagens de sofrimentos e arrependimentos pelo abandono dos filhos, por conta da viciação, quase não se percebe o mesmo arrependimento no que tange aos crimes cometidos em razão da droga.

Outro sintoma que se pode perceber é que a viciação no crack parece aproximar essas mulheres à categoria das “maloqueiras”.

Outro elo que se identifica é entre as motivações: “para consumo de drogas” e “má companhia”, que vem geralmente vinculada à figura do companheiro(a) e de amizades que já vivem na criminalidade. Quando se está na motivação “para sustento da família”, e esta não se relaciona às drogas e más companhias, há uns poucos relatos com certa vergonha pelo que se fez, mas, a grande maioria, com a afirmação de que aquela era a única saída e que, diante das mesmas condições, não exitariam em fazer o mesmo.

g) Relacionando os elementos: para onde foi quando saiu do cárcere, tem para onde ir quando sair novamente do cárcere e para onde vai após sair do cárcere

A questão do acolhimento está relacionada aos vínculos familiares. Vejamos: enquanto 16 mulheres mencionaram ter voltado para casa ou para a casa dos pais após a saída da prisão, 11 disseram ter ido para a rua e apenas 2 foram para a casa do companheiro(a). 29 mulheres mencionaram ter para onde ir quando saírem da prisão, dentre elas, 27 disseram que voltariam para casa ou para casa dos pais. Esses dados analisados conjuntamente com os relatos das mulheres indicam uma outra pista: o afrouxamento dos vínculos pelas poucas visitações não implica desamparo na saída da prisão.

Talvez as poucas visitações tenham razões diferentes de indiferença, desprezo ou reprovação, como, por exemplo, dificuldades financeiras; burocracia institucional para cadastramento da visitação; a revista, que pela própria natureza é vexatória; o lugar para receber os visitantes, pois os espaços que dividem a quadra coberta com lençóis ou as calçadas laterais que rodeiam a quadra são comprados; por falta de vontade das próprias mulheres que não querem seus familiares, sobretudo filhos pequenos, naquela realidade que, segundo alguns relatos, “isso aqui não é lugar para criança não”, “só quero ver meus filhos quando sair daqui”, enfim, tantos outros podem ser os fatores.

No Bom Pastor, por exemplo, só se admite a visita de Pai, Mãe, Companheiro(a), Filhos e Irmãos. Só são admitidas outras pessoas, como, por exemplo, demais parentes, vizinhos ou amigos, se as pessoas permitidas não estiverem visitando a detenta. Vale ressaltar que, para iniciar a visitação, é preciso ter uma carteira de autorização que é providenciada a partir da entrega de 02 fotos, cópia do RG e do comprovante de residência, em uma semana para as detentas do pavilhão e em 10 dias para as detentas da cela de triagem.

Essa prática de restrição de visitação no Bom Pastor não tem respaldo legal, pois segundo a Lei de Execuções Penais, espécie de diretriz na Política Penitenciária Nacional, é permitida a visitação de parentes sem qualquer restrição quanto ao grau de parentesco, bem como de amigos. “Art. 41 - Constituem direitos do preso: X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados”.

Isso só aponta para a perspectiva de que cada unidade prisional é um feudo, tendo sua própria forma de funcionamento.

h) Relacionando os elementos: motivos para não voltar para o cárcere e acha que retornará ao cárcere

Ao falarem do desejo de sair do cárcere e de não mais voltar, as mulheres apontaram como principais razões: os maus tratos (21), a privação de liberdade (17) e a família (17). Ainda assim, duas mulheres mencionaram que achavam que talvez retornariam ao cárcere.

O que percebemos foi que, embora todas manifestem um desejo de não voltar, poucas disseram como fariam para não mais voltar, ou seja, quase nenhuma tinha reais expectativas para não voltar mais para a cadeia. O desejo de não mais voltar parecia estar desvinculado de modelos de vida alternativos, o desejo de não mais voltar está vinculado ao desejo de recuperar a liberdade, de fazer o que se quer, de voltar para a família, ou para as aventuras, de se ver livre de tanta “tranca”, de tanta ordem, de tanto aperto, de tanta confusão, de não se comer o que se quer, de ter hora para tudo, de sair do sofrimento. Isso nada tem a ver com não voltar a cometer crimes, procurar uma vida fora da realidade que as conduziu para a cadeia.

Não é que não gostariam de cometer outros delitos, talvez porque nem todas vejam os delitos como os vemos. Não gostariam é de voltar ao Bom Pastor. Há, inclusive, parece-me, um sentimento de exaustão diante dessas idas e vindas, por parte delas e da família. Umas até manifestam um desejo de que gostariam de que tudo fosse diferente, diferente mesmo, mas, diante da realidade que se tem, há, para elas, poucas alternativas.

Umas disseram: essa é a última vez que “tiro cadeia”. Outras disseram: por mais que eu não queira, se quando sair não tiver trabalho, e sei que não terá, sei que voltarei para cá. Umas ainda disseram: é claro que o crime compensa, quando eu traficava, eu ganhava muito dinheiro, não faltava nada para a minha família, só tinha do bom e do melhor, mas não aguento voltar para esse “inferno”. Uma outra disse: saí daqui, procurei trabalho, tentei, ninguém quis empregar uma ex-presidiária, o que é que eu podia fazer?! Não ia morrer de fome, portanto, voltei a fazer o que fazia. Aquelas envolvidas com tráfico ainda alegam a dificuldade de se querer ter uma vida diferente, pois “com o tráfico não se brinca”.

Há ainda aqueles relatos: quando sair daqui vou vender pipoca e água mineral no sinal, vou fazer qualquer coisa, mas não aguento mais voltar para cá não. E lamentam a decepção e o cansaço da família em ter que vir visitá-la na cadeia.

Uma coisa interessante é a falta de qualquer menção à reprovabilidade de sua conduta por parte da comunidade em que vive, da sua vizinhança, mas uma menção à reprovação social da classe que emprega.

Durante todo esse contato e após as entrevistas, muito foi refletido e um forte impulso condutor partiu em busca de uma redução de danos no encarceramento de mulheres no Bom Pastor.

Notas

1. Esta Parte I foi construída a partir da vivência na pesquisa “Os efeitos do cárcere sobre a afetividade e a dificuldade de Reinserção Social: estudos de casos na Colônia Penal Feminina do Recife e na Penitenciária Professor Barreto Campelo em Pernambuco”, financiada pelo Governo do Estado de Pernambuco, realizada pelo Instituto Brasileiro Pró-Cidadania e por mim coordenada.

2. Escola Clássica do Direito Penal.

3. Escola Positiva do Direito Penal, além de modernas teorias criminológicas.

4.Vide: FOUCAULT, 1976; MELOSSI;PAVARINI, 1977; MATHIESEN, 1996 e VASCONCELOS, 2011.

5. Vide: GIRARD, 2000.

6.Temos, aqui no Brasil, uma experiência diferenciada na detenção de apenados, trata-se do método APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado), que consiste num modelo prisional voltado à preparação do condenado para ser devolvido à sociedade. Esse método, idealizado por Mário Ottoboni e aplicado em vários estados brasileiros, apóia-se em bases como: a participação da comunidade, o trabalho do detento, a participação dos detentos na administração da unidade, a religiosidade, as assistências médica e jurídica, a valorização humana, a recuperação dos vínculos familiares, o voluntariado e o mérito. A APAC vem servindo de modelo exitoso na prática humana de tratamento do preso, demonstrando, através dos baixos índices de retorno ao cárcere do preso APAC, que, punir com dignidade e acolhimento vem sendo a melhor saída para o preso e para o restante da sociedade. Dessa experiência, pode-se perceber que a grande e mais essencial reforma prisional é a da orientação humanista nas relações intersubjetivas. Não se trata de grandes somas depositadas em tecnologias eletrônicas, mas de educação social, com o social e para o social, na perspectiva de ações e práticas não violentas.

7. Esse material encontra-se no Anexo III.

8. O Roteiro de entrevista encontra-se no Anexo I.

9. Art. 88 - O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.

Parágrafo único - São requisitos básicos da unidade celular:

  1. salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;
  2. área mínima de 6 m2 (seis metros quadrados).

Art. 92 - O condenado poderá ser alojado em compartimento coletivo, observados os requisitos da letra a do parágrafo único do art. 88 desta Lei.

Parágrafo único - São também requisitos básicos das dependências coletivas:

  1. a seleção adequada dos presos;
  2. o limite de capacidade máxima que atenda os objetivos de individualização da pena.

10. O roteiro de entrevista decodificado a partir dos relatos encontra-se no Anexo II.

11. Sobre o tema, Vide: MELOSSI, 2002, WACQUANT, 2001 e VASCONCELOS, 2011.