ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Introdução

Adriana Dias Vieira, 2007

No âmbito das instituições internacionais de direitos humanos, existe um consenso em torno da proibição de infligir tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas e degradantes. Pela relevância dos valores que protege, a proibição é norma imperativa do direito internacional e integra o chamado núcleo duro dos direitos humanos. Entretanto, na prática, subsiste uma dificuldade em identificar a esfera de abrangência desta proibição.

O significado de penas e tratamentos cruéis e desumanos foi alterado ao longo dos anos através da construção jurisprudencial sobre a temática. Condutas e circunstâncias que no início do século XX eram consideradas legítimas foram, paulatinamente, perdendo esta característica. Não resta dúvida que o entendimento acerca do conteúdo da proibição foi alterada ao longo dos anos e que essa mudança não é um dado casual, mas reflexo de uma mudança significativa no sistema punitivo moderno e na função do cárcere no mundo contemporâneo. A pergunta principal a que se busca responder é: em que consistem as penas e os tratamentos desumanos?

O objeto da presente pesquisa é identificar o significado atual da proibição de submeter alguém a penas e tratamentos cruéis no direito brasileiro, codificado na Constituição Federal brasileira de 1988 e nos diversos tratados internacionais de direitos humanos a que o Brasil está submetido. O objetivo principal é identificar o conteúdo jurídico destas categorias jurídicas, com o intuito de delimitar a amplitude da proibição, e identificar a quantidade de atos/situações/condições que constituem violação a este direito.

A primeira parte deste trabalho tem caráter histórico-sociológica. Busca reconstruir o momento em que foi possível a convergência nos ordenamentos jurídicos ocidentais quanto à proibição de penas e tratamentos cruéis a partir do século XVIII, identificando o conteúdo do discurso iluminista e do entendimento que se tinha do significado de penas cruéis, quando estas foram utilizadas nas primeiras declarações de direitos.

No primeiro capítulo, reconstrói-se o momento do surgimento da proibição de se infligir uma pena cruel, utilizando-se dos estudos efetuados por Alexis de Tocqueville e Beaumont, quanto à consolidação do cárcere moderno e da pena privativa de liberdade como a grande sanção penal. Traçaram-se também as críticas impostas pela escola revisionista, cujos expoentes são Michel Foucault e Ignatieff. Entretanto, o estudo vai além e propõe uma profunda discussão sobre a corporalidade da pena privativa de liberdade, em função da tese proposta pelo médico penitenciário Daniel Gonin. A comprovação de que o encarceramento deixa marcas não apenas na alma, mas também no corpo do encarcerado, traz uma reflexão sobre a legitimidade da distinção iluminista das penas em humanas e cruéis. Neste ponto, também foram imprescindíveis as reflexões efetuadas por An-Na'im sobre o significado de pena cruel, em perspectiva multicultural.

O segundo capítulo é dedicado à análise do surgimento histórico da proibição jurídica de "tratamento desumano ou degradante" na metade do século XX, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, que tem como marco histórico a Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, em 1948, primeiro documento oficial de direitos humanos a utilizar esta nomenclatura, traduzida em uma nova categoria jurídica, com o intuito de pontuar a necessidade de observância de padrões mínimos de condições de detenção, para o respeito à dignidade humana das pessoas sob custódia estatal. Em 1950, a proibição é incluída no rol dos direitos invioláveis da pessoa humana, no art. 3º da Convenção Européia de Direitos Humanos. Por uma questão metodológica, este capítulo também tratará da definição internacional da prática de tortura, uma vez que esta consiste em uma forma agravada de tratamento desumano, segundo jurisprudência consolidada no âmbito da Corte Européia de Direitos Humanos (CEDH).

O terceiro capítulo, com o qual se encerra a primeira parte desta dissertação, estuda o processo de incorporação destas proibições pelo recém criado Estado brasileiro. Para tanto, é necessário reconstruir a história do Brasil e entender em que medida, com quais objetivos, e com qual eficácia, foram introduzidas as normas européias nas terras brasileiras. Neste ponto, foram essenciais os estudos efetuados pelos prof. Nilo Batista e Vera Malaguti, bem como outras publicações preciosas do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) que, com farta documentação histórica, têm trabalhado a reconstrução deste período histórico brasileiro, marcado pela escravidão, patriarcalismo e clientelismo.

A segunda parte da dissertação tem caráter eminentemente hermenêutico. Constitui um estudo jurisprudencial de três importantes experiências jurídicas ocidentais sobre a temática: Estados Unidos da América, através da sua Suprema Corte dos Estados Unidos, Estado que inaugura, em meados do século XVIII, a atual concepção de pena e tratamento cruel; Europa, através da Corte Européia de Direitos Humanos, cujas jurisprudências norteiam o atual entendimento sobre a temática, exercendo forte influência inclusive sobre a definição legal de tortura, imposta em 1984 pela Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou penas cruéis, desumanas e degradantes; Brasil, através das decisões que emanam do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

Em relação à Europa, far-se-ia necessário definir quais os Estados que compõem a Europa e, em teoria, o que significa ser "europeu". A questão não foi enfrentada durante toda a pesquisa tão somente porque se entenderam por "experiência européia" as regras e casos decididos no âmbito do Sistema Europeu de Direitos Humanos e, conseqüentemente, dos signatários da Convenção Européia de Direitos Humanos. O que se buscou durante o trabalho foi identificar o padrão de ambiência carcerária imposta pela CEDH a todos os Estados a ela submetidos.

No âmbito dos três ordenamentos jurídicos, a proibição, do ponto de vista legal, é a mesma, salvo pequenas diferenças lingüísticas que não constituem obstáculo à construção de uma unidade semântica. Entretanto, o entendimento jurisprudencial acerca do conteúdo da proibição é diferente, em cada um dos três ordenamentos jurídicos.

Em relação ao significado de tratamento cruel ou desumano, o estudo da jurisprudência internacional mostra a dificuldade com que as Cortes têm enfrentado a questão. Pode-se, por motivos didáticos, dividir em duas grandes categorias as práticas que podem consistir em um tratamento desumano ou cruel, quais sejam: 1. Aqueles tratamentos que são resultado de uma ação por parte do agente público, como é o caso da prática de tortura, e todas as outras formas de exercício ilegal do poder por parte do agente publico envolvido na detenção e encarceramento do individuo acusado ou condenado por um crime; 2. Aqueles tratamentos que dizem respeito às condições ambientais das instituições penitenciárias.

O estudo da experiência estadunidense e européia mostra que, nestas últimas décadas, houve um crescimento de denúncias judiciais de violação deste direito, reproduzido na Constituição Americana (oitava emenda constitucional) e na Carta européia de direitos humanos (art. 3º da Convenção). Ao contrário, no Brasil, a discussão sobre o assunto ainda é limitada e poucas são as denúncias que chegam ao poder judiciário. Quase sempre, aquelas denúncias que são julgadas atualmente, dizem respeito à aplicação da Lei 9.455/97 (que criminalizou a prática de tortura no Brasil) que, em grande parte, vem sendo utilizada para punir agentes privados, já que a lei brasileira não seguiu os padrões internacionais de definição da prática de tortura, enquanto tratamento cruel agravado, cometido por agente público. Ao contrário, a lei brasileira prevê como crime comum o crime de tortura. O resultado desta análise comparativa será identificar o grau de amplitude que esta proibição tem em cada uma destas experiências.

Por último, busca-se analisar os dados colhidos, identificando as convergências e as divergências de entendimento e aplicação da norma jurídica em questão. Alguns pontos são particularmente paradigmáticos: quanto ao significado de pena cruel, os ordenamentos jurídicos brasileiro e europeu se aproximam, já que historicamente o Brasil incorpora os valores europeus e, do ponto de vista formal, copia os códigos penais europeus. Assim, tanto no Brasil como no âmbito da CEDH, a pena de morte não é legítima atualmente, e é proibida toda e qualquer pena corporal. O federalismo estadunidense, por sua vez, se distancia dos valores humanitários que ele mesmo apregoa, mostrando mais uma vez sua face paradoxal: dos ordenamentos jurídicos em questão, é o único que admite a pena de morte como uma pena legítima, ainda que, nos últimos anos, a USSC tenha imposto fortes limitações à determinação e aplicação da pena capital.

No que tange ao significado de tratamento desumano, a questão é ainda mais controversa, porque diz respeito à ambiência carcerária, ou seja, a tentativa de imposição de um padrão mínimo de respeito à dignidade da pessoa detida em centros de permanência provisórias ou em instituições penitenciárias. A discussão é enriquecida pelas novas jurisprudências sobre o tema, que datam de meados da década de 90 do século XX. Superpopulação, inadequada assistência médica, restrições alimentares, precárias condições de ventilação e iluminação começam a ser analisadas pelos Tribunais como violações à proibição de não submeter alguém a tortura e a pena ou tratamento cruel.

A partir da teoria do processo civilizatório proposta por Norbert Elias, conjuntamente com o princípio da "less eligibility" e os estudos efetuados por Rusche e Kirchheimer, busca-se entender por quê cada sociedade percebe e assimila de forma diferente a violência estatal, ora repugnando-a, ora requerendo dela mais violência no momento da aplicação da sanção penal. A questão que se coloca aqui é: por que o significado destas categorias jurídicas variam de uma a outra experiência jurídica, ou seja, por que a CEDH impõe jurisprudencialmente uma maior amplitude à proibição do art. 3º da Convenção do que a USSC, no âmbito estadunidense? Busca-se aqui uma explicação sociológica para a diversidade de entendimento.

Esclarecem-se assim as razões que impulsionaram o desenvolvimento desta tese, intimamente ligada à situação brasileira: a leitura dos jornais, periódicos, ou relatórios sobre a situação carcerária no Brasil, efetuados pelo Governo brasileiro, por Relator das Nações Unidas ou pelas mais variadas organizações não-governamentais nacionais e internacionais que se ocupam da temática mostram, com maior ou menor intensidade, as condições profundamente desumanas em que vivem as pessoas detidas no Brasil, e a vulnerabilidade destas frente às autoridades policiais e carcerárias que, por puro autoritarismo ou necessidade de "impor ordem" no caos penitenciário brasileiro, utilizam-se abundantemente da violência física e psíquica contra estas pessoas. Em visita às delegacias e penitenciárias brasileiras, o Relator das Nações Unidas, Nigel Rodley, facilmente encontrou, escondidas atrás de portas, janelas e cortinas, os pedaços de ferro, eletrodos e outros instrumentos clássicos de violência e tortura. Aliás, o corpo das pessoas presas, particularmente no Brasil, fala por si só. São cicatrizes, marcas ou feridas ainda abertas, de violência direta ou estrutural. Doenças de pele, depressão e perda dos sentidos, bem como outras tantas disseminadas nas penitenciárias brasileiras, falam por si sós. Não parece que o Brasil carece de um estudo científico para a constatação do óbvio. Não parece haver necessidade de comprovar que a amontoação de 40 pessoas em uma cela de 10 metros quadrados impossibilita qualquer gestão de direitos humanos: privacidade, integridade física, mental, psíquica, reeducação etc. São situações inaceitáveis aos olhos de qualquer pessoa. O problema é que são poucos os agentes públicos que querem ver esta realidade que se busca esconder, ou deixar escondida.

Então por que analisar o significado de termos que, diante da realidade brasileira, parecem distantes e inaplicáveis? Primeiro, para entender o porquê do descompasso entre a lei e a realidade na sociedade brasileira. Segundo, porque o estudo jurisprudencial em perspectiva de direito comparado pode invocar e fortalecer argumentos jurídicos que convençam os atores do poder judiciário brasileiro a trabalhar melhor as categorias jurídicas em questão, de acordo com as atuais concepções de dignidade humana. Um último objetivo, aparentemente distante, é demonstrar que uma reforma penitenciária, por si só, não resolverá o problema dos cárceres brasileiros, como não está resolvido nem nos Estados Unidos, nem nos mais ricos Estados europeus que, do ponto de vista orçamentário, destinam bilhões de dólares em seus sistemas penitenciários e, ainda assim, têm fracassado. É necessário que haja mudanças estruturais no Brasil, no que concerne à temática de penas e tratamentos cruéis, ao entendimento da penalidade e das políticas penais no Brasil. A taxa de encarceramento não influencia a taxa de criminalidade, particularmente em um país tão singular cujos problemas, no que dizem respeito à (des)igualdade social, precisam ser resolvidos. E certamente não será através do cárcere.