ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

7. Análise dos dados: diferenças e convergências

Adriana Dias Vieira, 2007

O estudo de casos sobre a amplitude da proibição de infligir uma pena ou tratamento desumano e degradante no âmbito dos Estados Unidos, Europa e Brasil deixa antever dados que carecem de análise, de explicação, dos porquês da inexistência de uma unidade semântica.

Quanto ao significado de "pena cruel", as experiências brasileira e a européia se aproximam, já que historicamente o Brasil incorpora os valores europeus e, do ponto de vista formal, copia os códigos penais europeus. Assim, tanto no Brasil como no âmbito da CEDH, a pena de morte não é legítima. O Brasil avança na temática, proibindo também a pena perpétua, ao impor pena privativa de liberdade por período máximo de 30 anos que, no âmbito da CEDH, não é unânime, mesmo que vários países europeus já tenham imposto limites temporais à duração da pena privativa de liberdade. O federalismo estadunidense, por sua vez, se distancia dos valores humanitários que ele mesmo apregoa, mostrando mais uma vez sua face paradoxal: dos ordenamentos jurídicos em questão, é o único que admite a pena de morte como uma pena legítima, ainda que, nos últimos anos, a USSC tenha imposto fortes limitações à determinação e aplicação da pena capital.

No que tange ao significado de "tratamentos desumanos e degradantes", tem-se certa dificuldade semântica que não impede o entendimento, mas que impõe uma observação importante. No âmbito estadunidense não é muito usual esta terminologia, uma vez que ali se tratou o tema da "ambiência carcerária" dentro da proibição de "pena cruel", a partir Wolff vs. McDonell (1) (1974). Na mesma década, no âmbito europeu, a CEDH, quando da análise do Caso Grego e do Caso Irlanda do Norte, criou critérios de distinção entre as categorias jurídicas contidas na forma. A jurisprudência brasileira, entretanto, destoa das demais experiências, pois não trabalha os conceitos em âmbito constitucional. Todas as questões relativas à ambiência carcerária e violência policial são examinadas dentro da seara penal, quando do julgamento de ação penal, seja pelo crime de tortura, ou outros tipos penais correlatos que tipificam condutas em torno da questão (abuso de autoridade, maus tratos, lesão corporal). No que tange à tortura, desde 1997, muito se trabalhou o conceito na jurisprudência, com a promulgação da lei que criminalizou a prática de tortura no Brasil. Entretanto, quanto às condições penitenciárias, jamais o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre a temática. Entretanto, escassas decisões isoladas de juízes vanguardistas brasileiros acenam para a necessidade de se observar o que acontece para além dos muros que cercam e encerram as prisões brasileiras.

No campo jurisprudencial sobre a temática, a CEDH mantém-se como a Corte mais "humanitária", principalmente quando a discussão gira em torno de direito (ou violação de direito) de cidadão europeu. Quando a CEDH é confrontada com casos de expulsão ou extradição de estrangeiros, tem se posicionado de forma muito paradoxal: impôs limitações para autorizar a extradição de Soering, sob o argumento de que o procedimento legal a que ele se submeteria durante o período de preparação e execução da pena de morte constituía um tratamento cruel. Entretanto, no caso Narcisio, a CEDH entendeu legítima a extradição porque, quando da análise de extradição a países não partes da União Européia, a CEDH deve observar critérios distintos. Seguramente, o posicionamento da CEDH sobre a questão reflete a problemática em que vive a Europa em relação à imigração: precisa de imigração por diversos motivos, mas não tem a capacidade de impor um amplo processo de inclusão social dos imigrantes, gerando guetos e grande exclusão social contra os "extra-comunitários" que, atualmente, são marginalizados e criminalizados na Europa.

Entretanto, é difícil fazer uma análise das condições penitenciárias européias. Isto porquese faria necessário definir quais os Estados que compõem a Europa e, em teoria, o que significa ser "europeu". A questão não foi enfrentada durante toda a pesquisa tão somente porque entendeu-se por "experiência européia" as regras e casos decididos no âmbito do Sistema Europeu de Direitos Humanos e, conseqüentemente, dos signatários da Convenção Européia de Direitos Humanos. O que se buscou durante o trabalho foi identificar o padrão de ambiência carcerária imposta pela CEDH a todos os Estados a ela submetidos. O que se pode dizer é que certamente os países signatários da Convenção não guardam semelhanças entre si. Os membros fundadores formam o núcleo dito "europeu", e os novos membros (países do leste europeu, Turquia e Rússia) um outro segmento. A CEDH, desde a entrada dos "novos membros", tem procurado ser sensível às diferenças, mas historicamente (e até pela composição) tende a impor parâmetros de acordo com o nível dos países signatários fundadores que, via de regra, têm alto nível de renda e historicamente baixos níveis de violência em períodos de paz. As atuais questões levadas à CEDH que versam sobre as condições penitenciárias normalmente dizem respeito aos novos signatários da Convenção que, por questões culturais, legislativas e de ordem financeira, não conseguem impor o padrão "europeu" - leia-se da CEDH - em seu território.

Nos Estados Unidos, por sua vez, a USSC, desde meados de 1970, tem imposto um standard mínimo às condições penitenciárias, logrando êxito e determinando novos padrões de respeito à dignidade humana, ainda que, na realidade, esteja distante o satisfatório cumprimento das decisões da USSC. Entretanto, no que tange às últimas decisões sobre a legalidade da Patriot Act, dos centros de detenção militares em Guantánamo, bem como todas as prisões ilegais efetuadas, a USSC, por razões políticas, tem se omitido do dever de declarar inconstitucionais as leis de segurança nacional promulgadas pelos Estados Unidos, e que impõem um regime de exceção que não se coaduna com a democracia e os fundamentos de um Estado de Direito. Mais uma vez, a sociedade estadunidense sangra seus paradoxos: onde se lê "guerra contra o terror", leia-se "guerra contra os direitos e liberdades individuais", nas palavras de Dworkin.

Atualmente, de acordo com os dados fornecidos pelo International Centre for Prison Studies (2), centro de pesquisa da Universidade de Londres King's College, os Estados Unidos têm uma população carcerária que ultrapassa dois milhões de pessoas, entre as quais 1.259.905 em prisões estaduais, 747.529 detentos em prisões locais, 179.220 detentos no sistema carcerário federal, 96.655 adolescentes que cumprem medida sócio-educativa em centros de reabilitação juvenil, 10.104 pessoas estrangeiras em centros de permanência temporária para imigrantes ilegais e, por fim, mais de 2.322 pessoas presas em centros de detenção militares estadunidenses. Os números são estarrecedores e, sem comparação, um recorde mundial. Os Estados Unidos são hoje o país com a maior população carcerária do mundo e com o maior aparato penitenciário.

Os cinco mil e sessenta e nove (5.069) estabelecimentos penitenciários têm oficialmente capacidade de abrigar dois milhões, trinta e nove mil e trezentos e setenta pessoas (2.039.370), segundo os dados oficiais estadunidenses. Sendo assim, em termos gerais, o nível de ocupação das penitenciárias estadunidenses é de 107%, ou seja, um excesso carcerário de apenas 7% o que, em relação à média internacional, é um índice baixo.

Matthew Silberman, em seu livro World of Violence, fez um estudo sociológico da realidade do sistema penitenciário estadunidense na década de 90, analisando suas ambigüidades e estruturas de poder. Há duas hipóteses centrais:

  1. as penitenciárias norte-americanas são lugares per se violentos onde todos os sujeitos envolvidos (presos e carcerários) precisam se adaptar à lógica interna e particular dessas instituições para sobreviverem nesse ambiente de coisificação do homem;
  2. as penitenciárias funcionam como microcosmo da sociedade norte-americana, reproduzindo suas características e, ao mesmo tempo, realimentando o sistema da violência, uma vez que o autor não despreza a influência dos presos e das penitenciarias na sociedade americana.

Para tanto, em um primeiro momento, Silberman analisa as condições da vida em cárcere: suas regras, seus códigos, sua lógica. Em um segundo momento, analisa a legislação e a jurisprudência estadunidenses no que diz respeito aos direitos e garantias dos presos, avaliando a retórica e a prática dos direitos humanos nos Estados Unidos.

O fenômeno das "prison gangs" nas penitenciárias americanas pode ser simbólico para demonstrar a complexidade das regras internas e não escritas das penitenciárias estadunidenses: os presos são organizados claramente em grupos (em razão de cor, religião, nacionalidade) que reproduzem os preconceitos e desigualdades da sociedade americana. São esses grupos que ditam as normas internas da instituição penitenciária e tratam de prover a segurança de seus membros: drogas e atividade homossexual são as moedas de troca nos presídios norte-americanos. Não ser "protegido" por algum grupo significa estar completamente vulnerável no cárcere. Silberman aponta a dificuldade de se identificar "como" e "quando" as prison gangs se consolidaram dentro do sistema penitenciário norte-americano, mas aponta a hipótese bastante razoável de que estas tenham surgido em função da falta de monopólio do poder pelo Estado na década de 1960, em função do movimento do direito dos presos e o falimento do antigo regime de reabilitação (3) (SILBERMAN: 1995, p. 42).

Toda a violência relatada por Silberman comprova que não há um monopólio da violência pelo Estado norte-americano dentro das prisões. Isso porque, se houvesse o monopólio, não haveria possibilidade de existência de "prison gangs", nem de códigos internos de conduta.

Os depoimentos dos presos e dos carcerários confirmam que é por necessidade de auto-preservação e exercício de poder que a violência é utilizada nos presídios. Afirma o prof. Silberman que "in one way or another, survival in prison depends on adapting to violence as either perpetrator or victim" (SILBERMAN: 1995, p. 16).

A realidade violenta do sistema penitenciário norte-americano também reproduz os valores da sociedade americana. O cidadão norte-americano está muito mais exposto à violência que um cidadão europeu (SILBERMAN: 1995, p. 65) e, por isso, é muito mais violento. A discussão remonta à Constituição Americana que permite o uso de armas para legítima defesa. Ou seja: a Constituição americana não impõe o monopólio da violência pelo Estado, mas, ao contrário: autoriza que os cidadãos exerçam a violência.

Por fim, em relação às decisões dos tribunais brasileiros, faz-se necessário observar o standard das condições penitenciárias reais no Brasil. Da análise dos relatórios e informes de direitos humanos, não resta dúvida que o sistema penitenciário brasileiro é aquele mais precário e desumano, ficando atrás apenas das prisões ilegais de Guantánamo e Abu Ghraib, e de algumas delegacias e penitenciárias dos países que recentemente assinaram a Convenção Européia de Direitos Humanos, como a Turquia e a Albânia. A leitura dos relatórios do CAT - Comitê das Nações Unidas contra a Tortura - comprova a situação caótica do sistema penitenciário brasileiro.

De acordo com os dados fornecidos pelo International Centre for Prison Studies, o Brasil tem uma população carcerária total de trezentos e oitenta e cinco mil e trezentos e dezessete pessoas, das quais 327.102 no sistema penitenciário e mais de 58 mil pessoas em delegacias ou centros de detenção provisória. O Brasil tem um mil e cinqüenta e um (1.051) estabelecimentos penitenciários e capacidade para abrigar 205.877 pessoas. Sendo assim, há um déficit de quase 50% de vagas no sistema penitenciário brasileiro que tende a aumentar, na proporção sempre crescente de população carcerária.

Tem-se um grande documento oficial que analisa as condições penitenciárias no Brasil, bem como o nível de efetividade das normas constitucionais e internacionais a que o Brasil está submetido: o relatório sobre a tortura no Brasil, produzido pelo relator especial sobre a Tortura, da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, Nigel Rodley (4). Ele ressaltou a importância das recentes reformas legislativas e elogiou o aparato legislativo que o Brasil dispõe para combater a tortura e as penas e tratamentos cruéis. Entretanto, afirmou que existe um grande abismo entre a realidade carcerária e o que impõe a lei brasileira.

As condições de detenção e de tratamento dos detentos devem ser humanas e, para menores infratores, devem, no mínimo, propiciar uma experiência educativa. O problema é que essas condições são amplamente ignoradas, somadas a um Judiciário muitas vezes complacente, que sustenta os desvios dos estados em relação a esses requisitos por várias razões, seja por indisponibilidade de recursos para se implementarem as obrigações, seja mediante a imposição, aos reclamantes, de um ônus insustentável para a comprovação de suas queixas. A Lei sobre Tortura é praticamente ignorada, sendo que os promotores e juízes preferem usar as noções tradicionais e inadequadas de abuso de autoridade e lesão corporal. O serviço médico forense, sob a autoridade da polícia, não possui independência para inspirar confiança em suas constatações (Nigel Rodley, §161, relatório contra a tortura).

Este relatório constitui o mais minucioso documento sobre a prática da tortura e as condições penitenciárias no Brasil democrático atual. É resultado de uma visita do relator das Nações Unidas ao Brasil, na qual ele visitou vários centros de detenção provisória e instituições penitenciárias do Distrito Federal e de cinco estados brasileiros: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Pará. Neste documento, Rodley faz duas tristes constatações que se devem ter em mente quando se trata da realidade brasileira: 1. A tortura é utilizada de forma constante e sistemática no Brasil; 2. As condições penitenciárias a que os detentos são/estão submetidos impõem um severo sofrimento e, de tão desumanas, por si sós constituem tortura.

A tortura e maus tratos semelhantes são difundidos de modo generalizado e sistemático na maioria das localidades visitadas pelo Relator Especial no país e, conforme sugerem testemunhos indiretos apresentados por fontes fidedignas ao Relator Especial, na maioria das demais partes do País também. A prática da tortura pode ser encontrada em todas as fases de detenção: prisão, detenção preliminar, outras formas de prisão provisória, bem como em penitenciárias e instituições destinadas a menores infratores. Ela não acontece com todos ou em todos os lugares; acontece, principalmente, com os criminosos comuns, pobres e negros que se envolvem em crimes de menor gravidade ou na distribuição de drogas em pequena escala. E acontece nas delegacias de polícia e nas instituições prisionais pelas quais passam esses tipos de transgressores. Os propósitos variam desde a obtenção de informação e confissões até a lubrificação de sistemas de extorsão financeira. A consistência dos relatos recebidos, o fato de que a maioria dos detentos ainda apresentava marcas visíveis e consistentes com seus testemunhos, somados ao fato de o Relator Especial ter podido descobrir, em praticamente todas as delegacias de polícia visitadas, instrumentos de tortura conforme os descritos pelas supostas vítimas, tais como barras de ferro e cabos de madeira, tornam difícil uma refutação das muitas denúncias de tortura trazidas à sua atenção. Em duas ocasiões (ver parágrafos acima/ São Paulo e Pará), graças a informações fornecidas pelos próprios detentos, o Relator Especial pôde descobrir grandes cabos de madeira nos quais haviam sido inscritos - pelos funcionários encarregados da execução da lei. (Nigel Rodley. §166. Relatório sobre a Tortura no Brasil).

Ajuda a corroborar com esta afirmação o premiado documentário dirigido por Paulo Sacramento, intitulado "O prisioneiro da grade de ferro", que traz um panorama do sistema carcerário brasileiro visto por dentro, filmado pelos detentos da Casa de Detenção do Carandiru, São Paulo, o maior presídio da América latina. As condições penitenciárias registradas no documentário impedem qualquer possibilidade de evasão ou diminuição do problema carcerário brasileiro. E o mais triste é constatar que as imagens ainda não mostram o pior, que são as delegacias, as centrais de polícia, e as celas de isolamento. Os corpos marcados pela detenção, somados às imagens dos ratos que dividem o espaço penitenciário com os detentos, e às quase inexistentes condições sanitárias e médicas, nas palavras de Rodley, constituem tortura, por imporem um sofrimento tão severo que, em interpretação extensiva da definição do crime de tortura, dispensa o elemento da "motivação".

Para além do problema da "ambiência carcerária", o sistema penitenciário brasileiro sofre um outro grave problema: ausência do monopólio da violência pelo Estado brasileiro dentro das prisões. Sabe-se que, dentro das prisões, comandam (e brigam entre eles) os líderes de facções criminosas que ali têm poder de vida e de morte sobre os demais detentos. Em maio de 2006, no Estado de São Paulo, o Brasil assistiu a um desfazimento da ordem, quando o governo do Estado tomou a decisão de transferir mais de 765 presos ligados à facção para a penitenciária 2 de Presidente Venceslau (620 km a oeste de São Paulo). Um dia depois, iniciaram os ataques. Marcola, líder da facção PCC (Primeiro Comando da Capital), foi transferido para a penitenciária Presidente Bernardes e colocado em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que prevê uma série de restrições aos direitos usuais do preso. A Secretaria de Segurança Pública contabilizou mais de 250 ataques criminosos. Segundo o jornal a Folha de São Paulo (5), o movimento de represália deixou 146 mortos, entre eles vinte e três policiais militares, seis policias civis, três guardas municipais, oito agentes penitenciários e quatro civis, além de mais de noventa "suspeitos", mortos em combates com a polícia.

Entretanto, a leitura atenta das noticias divulgadas pela imprensa brasileira deixou claro que as duas piores consequências do episódio foram: 1. o aumento do sentimento de insegurança por parte da sociedade brasileira, que, desinformada e amedrontada, pede o sangue dos culpados; 2. um desgaste da imagem do Estado brasileiro que, impotente diante da represália, reorganizou a paz mediante um acordo efetuado em reunião na sede da Penitenciária Presidente Bernardes, em que se fizeram presentes os representantes da Polícia Militar e o chefe do PCC, Marcos Willians Herba Camacho, conhecido como Marcola. A informação, apesar de negada pelo governo brasileiro, está nas primeiras paginas dos jornais brasileiros de maior circulação (6).

A violência nas prisões brasileiras reflete a violência urbana e rural que marca a sociedade brasileira. Organizada pela Universidade de São Paulo (USP), foi lançado o 3º Relatório

Nas áreas urbanas, a violência fatal continua a atingir de forma intensa e desproporcional os jovens do sexo masculino, moradores das áreas carentes das grandes cidades e regiões metropolitanas. De 2000 para 2004, as mortes por homicídio por 100 mil habitantes entre jovens de 15 a 24 anos aumentaram 1,10%, de 26,71 para 27,01. Apesar de uma redução de 12,2% na Região Sudeste, as taxas de homicídio por 100 mil habitantes entre jovens de 15 a 24 anos aumentaram nas regiões Sul (33,6%), Nordeste (19,9%), Norte (21,8%) e Centro-Oeste (1,4%). Rondônia (38,0/100 mil), Pernambuco (50,7/100 mil), Mato Grosso (31,6/100 mil), Espírito Santo (49,1/ 100 mil) e Rio de Janeiro (49,1/100 mil), e Paraná (28,0/100 mil) são os estados com as taxas mais altas em cada região.

(3º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil: de 2002 a 2005: 2006, p. 13)

Enquanto a violência urbana se concentra nos grandes centros urbanos, fomentadas pela desigualdade social ímpar brasileira e pelo crime organizado, no mundo rural, a incapacidade estatal de gerir a reforma agrária tem, nos últimos anos, tensionado ainda mais a violência rural.

No que tange ao tráfico de drogas e à inexistência de monopólio da violência pelo Estado brasileiro, tem-se importante livro publicado em 2003 por Luke Dowdney, no que concerne às crianças que trabalham no tráfico de drogas nas favelas cariocas. Dowdney mostra dados oficiais da polícia brasileira sobre a taxa de mortalidade de crianças e adolescentes por armas de fogo. Para ele, as crianças do tráfico, expressão que dá nome ao livro, são crianças-soldados, ou seja, crianças recrutadas em hostilidades por forças armadas, paramilitares, unidades de defesa civil ou outros grupos armados (DOWDNEY: 2003, p. 204).

Durante a elaboração da pesquisa, tornou-se claro para os pesquisadores que as manifestações do comércio ilegal de drogas no Rio envolvem níveis de violência armada, índices de mortalidade por tiros, uma organização local paramilitar, a territorialização geográfica, a dominação quase política das comunidades pobres e a participação de autoridades do estado - principalmente da Polícia Militar e da Polícia Civil - em níveis até agora não documentados em nenhum lugar do mundo. Também se tornou claro aos pesquisadores que a compreensão desses fatores era uma questão-chave para apreender a participação de crianças e adolescentes nas disputas territoriais das facções da droga no Rio. Além disso, também ficou claro que uma definição correta dessa situação - que parece insuficientemente definida pelas expressões tradicionais tanto de "guerra" como de "crime organizado" - era fundamental para uma compreensão abrangente de sua realidade, levantar sua ocorrência em outros lugares e desenvolver as estratégias corretas para enfrentá-la com sucesso.

Em gráfico que compara as taxas de mortalidade de crianças e adolescentes por armas de fogo, Dowdney afirma:

O índice no estado da Califórnia em 1999, por exemplo, foi de 2,4 por 100.000, com 213 mortes; no mesmo ano, os valores no estado do Rio foram 12, 8 por 100.000, com 563 mortes, enquanto a cidade do Rio de Janeiro registrava 14,7 mortes por 100.000, com 259 óbitos. Igualmente em 1999, os números para o estado de Washington eram de 1,9 por 100.000, com 28 mortes, e no estado de Nova York, de 1,5 por 100.000, com 87 mortes. A mortalidade de menores de 18 anos provocada por armas de fogo em ambos os estados norte- americanos foi muito menor do que no estado e na cidade do Rio de Janeiro. Ao examinarmos mais atentamente os números nesses lugares selecionados, vemos que tanto a faixa etária dos 13-14 anos como a faixa dos 15-17 anos - isto é, as faixas mais afetadas pelas mortes por tiros - são consideravelmente mais elevadas no estado e na cidade do Rio de Janeiro do que naquelas unidades federadas dos Estados Unidos (DOWDNEY: 2003, p. 90).

Os dados confirmam o nível de insegurança e medo em que vive a sociedade brasileira. A inexistência de um monopólio da violência pelo Estado brasileiro faz com que a sociedade brasileira, cada vez mais acuada diante do sentimento de insegurança social, peça mais e mais punição. A desigualdade social e o nível médio da classe proletária, por sua vez, impossibilitam pensar uma reforma isolada no sistema penitenciário

As duas grandes questões que se colocam são: por que o significado de pena e tratamento cruel varia de uma a outra experiência jurídica, ou seja, por que a CEDH impõe jurisprudencialmente uma maior amplitude à proibição do art. 3º da Convenção do que a USSC, no âmbito americano? Por que cada sociedade percebe e assimila de forma diferente a violência estatal, ora repugnando-a, ora requerendo dela mais violência no momento da aplicação da sanção penal?

Os entendimentos evidenciados nas jurisprudências dos tribunais judiciais analisados são diversos, e esta diversidade reflete distintas esferas de proteção ao direito tão premente de não ser submetido a penas ou tratamentos cruéis. Os dados colhidos nesta análise jurisprudencial não são frutos do acaso, isto porque as decisões judiciais de uma sociedade refletem um tipo de cultura e de momento histórico de um povo.

Para tentar responder a estas perguntas, utilizar-se-á a teoria do processo civilizatório de Norbert Elias e os estudos efetuados por Georg Rusche e Otto Kirchheimer sobre a relação entre o surgimento e consolidação do cárcere e a estrutura social vigente. A intenção é identificar quais as diferenças entre as realidades carcerárias estadunidense, européia e brasileira que podem justificar, ou ao menos, elucidar, alguns dos "porquês" das diferenças entre as três experiências jurídicas de direitos humanos, particularmente no que tange às condições carcerárias.

Elias explica a adoção da pena privativa de liberdade (e o abandono, no Ocidente, das penas corporais) como parte de um processo civilizatório que alterou gravemente o comportamento e a sensibilidade do homem europeu entre os sécs. XVII e XVIII. Segundo ele, este processo apontou para uma crescente repugnância do homem moderno à violência física e à criação de um processo de auto-constrição, ou seja, de disciplinamento social e pessoal (ELIAS: 1993, p. 195). De acordo com esta teoria, Elias explica por que paulatinamente em todo o continente europeu, durante o mesmo período, foram substituídos os espetáculos públicos de execução da pena pelo cárcere, lugar de cumprimento da pena distante dos olhos das pessoas que, "mais civilizadas", já não sentiriam mais prazer em ver a violência exercida pelo Estado nas ruas e praças públicas, outrora lugar pacífico onde as questões devem ser resolvidas de forma não violenta. Entretanto, no cárcere, ao Estado era autorizado o uso da violência contra os condenados. Elias utiliza-se dos estudos realizados por Freud e afirma que este processo civilizatório consiste em um grande processo de crescimento do super-ego e resolução de litígios por vias não violentas, mas através de complexo conjunto de regras de convivências. Para ele, "nenhuma sociedade pode sobreviver sem canalizar as pulsões e emoções do indivíduo, sem um controle muito específico de seu comportamento (...) nenhum controle desse tipo é possível sem que as pessoas anteponham limitações umas às outras, e todas as limitações são convertidas, nas pessoas às quais são impostas, em medo" (ELIAS: 1993, p. 270).

Verdadeiramente, antes de formular uma teoria que explicasse essa mudança no destino da sociedade, ele efetuou um acurado e profundo estudo acerca dos costumes do homem medieval e do homem moderno europeu. Fica claro que, em trezentos anos, as regras de boas maneiras ficaram mais severas e as pessoas mais disciplinadas, com preocupações muito mais evidentes em relação ao futuro, às prospectivas.

Para Norbert Elias, este processo começou ainda na Idade Média quando, em função da crescente divisão do trabalho, o homem europeu se tornou mais interdependente. De forma condensada, sublinham-se as características mais importantes deste processo: 1. a centralização do poder nas mãos do rei determinou o monopólio da violência pelo Estado; 2. o monopólio estatal da violência possibilitou a criação e consolidação de espaços pacíficos nas cidades; 3. os indivíduos vivem nesses espaços pacíficos e se relacionam por regras de disciplinamento que são, gradualmente, interiorizadas (autocontrole) e perdem o costume de ver a violência; 4. a crescente repugnância à violência física, tida agora como primitiva e não "humana".

Este é o ponto central da teoria de Norbert Elias, em que funcionam três variáveis: monopólio da violência, divisão de funções e violência. Para ele, onde o monopólio estatal da violência é mais forte e estável, há uma maior divisão de funções e os espaços pacíficos criados são mais fortes (ELIAS: 1993, p. 199). Nesses lugares, os riscos de uma ofensa física a um indivíduo são muito baixos, e, exatamente por isso, ele se sente muito mais protegido e não precisa dispor da violência física para se defender. Em tais lugares, a sociedade é muito mais "civilizada", pois não recorre com freqüência à violência que é exercida no cárcere. O Estado é responsável pelo sistema punitivo, estando este sempre obrigado a criar e consolidar mais e mais espaços pacíficos.

Elias tem uma visão otimista da "civilização", pois acredita que a exportação deste modelo é a única solução para a extinção da violência física. Para tanto, Elias justifica a criação e consolidação de um Estado cada vez mais forte e controlador, como aquele Estado temido no romance 1984, de George Orwell, numa espécie de Estado "big brother", que tudo vê e tudo pode. Os novos cárceres estadunidenses "super max" são exemplos da hipótese formulada, pois realmente ali nenhum tipo de violência física é contabilizada, já que os prisioneiros não têm contato físico, e as câmeras de vídeo monitoram a existência deles.

Elias é útil para entender grande parte da violência carcerária, particularmente no Brasil, pois parece ser precisamente a inexistência de monopólio da violência pelo Estado que, por si só, autoriza uma grande quantidade de violações, seja através de rebeliões, motins ou puras disputas carcerárias pelo poder entre facções criminosas inimigas ou detentos. Nada disso poderia acontecer se - e somente se - o Estado detivesse o monopólio da violência.

Através de outra perspectiva - aquela marxista da escola de Frankfurt - os estudos realizados por Rusche e Kirchheimer em Punição e estrutura social podem corroborar, já que trazem explicações sócio-econômicas que justificaram a consolidação do cárcere. Para eles, a pena privativa de liberdade se tornou a mais importante sanção penal, em virtude da necessidade burguesa de consolidar a mão-de-obra em meados do séc. XVIII, e a criação do cárcere um imperativo para construir os futuros trabalhadores das fábricas.

De todas as motivações para o novo sistema penal, "a mais importante era o lucro, tanto no sentido restrito de fazer produtiva a própria instituição quanto no sentido amplo de tornar todo o sistema penal parte do programa mercantilista do Estado" (RUSCHE & KIRCHHEIMER: 2004, p. 103). Entretanto, concomitante à implantação do novo sistema penal, observou-se o declínio das razões que o justificavam, em virtude da Revolução Industrial que a ele se seguiu e que alterou gravemente a estrutura social em vigor. Se à burguesia faltava mão-de-obra, as revoluções no método de produção proporcionaram um aumento do desemprego industrial, consolidando a fartura de mão-de-obra que se observa até os dias atuais. O cárcere deixou de ter a utilidade que tiveram as casas de correção. Para eles, "a base para o novo sistema penal, fundada na necessidade de força do trabalho, estava desaparecendo concomitantemente nesse mesmo período. Já havíamos indicado que a reforma encontrou um terreno fértil somente em função da coincidência de seus princípios humanitários com a necessidade econômica" (RUSCHE & KIRCHHEIMER: 2004, p. 123).

Quando foram feitas tentativas para dar expressão prática às novas idéias, parte da base sobre a qual elas emergiram deixou de existir. Esta situação refletiu-se nas condições da vida na prisão, como podemos ver, a partir das descrições contidas na quarta edição do livro de Howard, State of the Prison in England and Wales. Visitando a prisão de Osnabruck, ele desconsiderou completamente as informações dos carcereiros - nós nos reportamos vivamente a casos similares hoje em dia - depois que viu a miséria expressa nas faces dos prisioneiros. (RUSCHE & KIRCHHEIMER: 2004, p. 123)

A prisão passou a exercer um novo papel na sociedade: afastar os "indesejáveis", nas palavras de Rusche e Kirchheimer. Para tanto, deveria seguir o princípio da less eligibility que impõe que a prisão deve ser/estar pior do que a mais desafortunada pessoa que esteja fora das prisões. Este princípio, norteador da razão de ser do cárcere, é a concretização do efeito dissuasivo da pena. É essencial que as condições de vida dentro do cárcere sejam piores do que as condições de vida fora dele, para que as pessoas, por mais pobres que sejam, não desejem ir à prisão.

O limite mais alto para as despesas com os prisioneiros era, portanto, determinado pela necessidade de manter seu padrão de vida abaixo do padrão das classes subalternas da população livre. O limite mais baixo, aceito em toda parte e explicitamente descrito por uma comissão na Inglaterra (Royal English Commission) em 1850, foi estabelecido pelas exigências mínimas de saúde. Porém, as possibilidades de variação entre esses dois limites eram puramente teóricos. Os salários na primeira metade do século XIX eram freqüentemente menores do que o mínimo necessário para reproduzir a força de trabalho dos operários. Em outras palavras, o limite mais baixo prescrito pelos regulamentos das prisões não era sempre estabelecido pelo dos homens livres. Isto significa que as condições miseráveis da classe trabalhadora reduziam o padrão de vida na prisão para bem abaixo do que era oficialmente reconhecido como o nível mínimo. (RUSCHE & KIRCHHEIMER: 2004, p. 153)

Pelo princípio da less eligibility, as condições de vida dentro do cárcere variam em função das condições de vida daqueles que estão em torno à instituição penitenciária. Esta é uma variável que certamente diz muito acerca das diferenças, no que tange às condições prisionais, no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos e, conseqüentemente, fala muito acerca da maior e menor sensibilidade dos juízes e tribunais acerca da problemática.

Estas duas variáveis conjugadas- condições de vida das pessoas em geral e o grau de monopólio da violência legítima pelo Estado -, colaboram para entender o porquê de camadas de interpretações tão diversas para o significado das duas expressões neste trabalho analisadas.

O Brasil certamente é, entre as experiências jurídicas analisadas, o país com as maiores taxas de violência (urbana e rural) e, portanto, aquele em que os "espaços públicos passivos" estão menos consolidados. Ruas, praças e parques são lugares em que a violência acontece, seja em parte pela imensa desigualdade sócio-econômica brasileira, seja em parte pela inexistência de um freio cultural ou religioso à prática do delito. O fortalecimento do crime organizado, bem como a conscientização das classes subalternas, tem destruído a imagem do brasileiro como sujeito passivo e sempre cordial. O acirramento das tensões sociais (muito em virtude da desestruturação do estado de bem-estar social que, bem ou mal, foi instalado no Brasil no pós-guerra) tem grande reflexo no sistema punitivo brasileiro. O agravamento da concentração de renda e o desemprego em massa da atualidade são elementos pontuais que tencionam ainda mais a malha social brasileira. O discurso do medo que, como afirma Vera Malaguti, é sempre utilizado para afastar os "indesejáveis" no Brasil, volta a ser utilizado para justificar políticas criminais mais agressivas contra os moradores dos subúrbios e das favelas. A polícia não age preventivamente nestes lugares, mas chega apenas para matar e prender, afirma Rodrigo Pimentel que, de 1990 a 2001, foi capitão da policia militar, tendo inclusive feito parte do batalhão da polícia militar de operações especiais, conhecido como BOPE. A polícia tem batalhões especializados para combater o "tráfico de drogas" e o hino de luta destes esquadrões já diz muito: "homem de preto / qual é sua missão? / é invadir favela / e deixar corpo no chão" (SOARES: 2006, p. 08). A opinião pública brasileira concorda e pede mais severidade na punição de todos aqueles que ameaçam a paz e a ordem.

O argumento do medo também elucida o porquê da criação de Guantánamo, no âmbito da jurisdição estadunidense. O medo gerado pela violência tem sido sempre inversamente proporcional ao respeito dos direitos humanos. Bastou um ataque terrorista bem-sucedido com conseqüências graves no coração de Nova York para que os Estados Unidos criassem um estado de exceção para punir os suspeitos de terem tido algum envolvimento com o atentado, com base no direito penal do inimigo (7). A intenção é claramente política, e não judicial. Por isso este não segue o princípio clássico do devido processo legal, mas aquele princípio político de imposição de poder pela força, pelo medo e pelo terror, e não pelo direito garantista.

É neste quadro cultural de violência e pobreza que está imersa a consciência material dos juízes e promotores brasileiros. Sabe-se que a violência nas delegacias e penitenciárias é "necessária" - seja pela precariedade do sistema de segurança pública no Brasil, concomitante à necessidade de impor a ordem nos estabelecimentos públicos, seja pela necessidade de não deixar "mal-acostumado" o preso às regalias - então por que punir o policial ou o carcereiro, se são eles que diariamente mantêm afastados os "indesejáveis", e contra os quais tudo se pode? Por este motivo dificilmente um policial é condenado pelo crime de tortura no Brasil.

Neste quadro, como justificar um cárcere "humano" no Brasil, ou seja, condizente com as normas internacionais de direitos humanos? Pelo princípio da less eligibility, sem uma mudança significativa no nível de qualidade de vida da população brasileira, é inviável pensar uma mudança significativa nas condições de vida dentro do cárcere. Com isso não se busca significar que nada se pode fazer pontual e circunstancialmente. Ao contrário: muitas reformas e vontade política podem em muito colaborar para significativas mudanças, mas sempre insuficientes para garantir um minimum de qualidade de vida àqueles que estão sob custódia estatal, seja em delegacias ou em instituições penitenciárias.

Este contexto tenebroso não é um privilégio brasileiro, apesar de aqui apresentar contornos mais fortes e conseqüências mais drásticas. Nos países europeus mais ricos, a situação é dramática em relação à imigração ilegal. Os centros de permanência temporária (conhecidos como CPT) não têm o mesmo standard que as demais instituições penitenciárias. Também aqui vige o princípio da less eligibility: os centros de detenção - com o intuito de evitar uma inversão e que estes se tornem lugares almejados - devem apresentar piores condições e vida que as dos demais imigrantes.

Notas

1. 418 U.S. 539 (1974).

2. International Centre for Prison Studies, da Universidade de Londres King's College.

3. O antigo regime de reabilitação norte-americana se baseava na crença de que o sistema penitenciário era um lugar capaz de reabilitar o preso. Esta crença foi fortemente abalada neste período, em virtude da publicação de vários estudos que comprovaram a ineficiência do sistema, seja em função do alto índice de reincidência nos presídios, seja em função das estatísticas que comprovavam um aumento do fenômeno da criminalidade. Neste sentido, tanto na função repressiva, quanto na função preventiva, o regime de reabilitação havia falhado.

4. Relatório em Missão, 20/8 a 12/9/2000 E/CN.4/2001/66/Add 2.

5. Ver versão online.

6. Ver reportagem completa.

7. Sobre direito penal do inimigo, ver Raul Zaffaroni.