ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

1. Surgimento da proibição de se infligir uma pena cruel: o mito da humanização da pena

Adriana Dias Vieira, 2007

Os medievos sistemas punitivos europeus tinham como legítimas uma grande variedade de penas corporais (açoite, decapitação, queimação, mutilação, suplícios públicos etc.). A literatura é farta quanto à narração das execuções públicas dos suplícios, com ampla aceitação e participação popular. Os cárceres do Ancien Régime eram lugares de exceção, onde ficavam os devedores e aqueles que esperavam a execução de uma sentença, ou a extradição. SANTORO: 2005, p. 11
Historicamente, com a vitória das revoluções burguesas e a criação do Estado Moderno, baseado na Constituição enquanto lugar de salvaguardas dos direitos deu-se a transição da "era dos deveres" para a "era dos direitos". A partir das declarações de direitos dos séculos XVII e XVIII, deu-se a consolidação de uma série de direitos, entre eles, o direito à integridade física, consolidado através da proibição de submeter qualquer indivíduo a tortura ou a tratamento cruel ou degradante. FIORAVANTI: 1999, p. 160

A Inglaterra é o primeiro país ocidental a criar limites ao direito de punir do Estado. Documentos antigos, como a Carta Magna (1215), já previam a necessidade de uma proporcionalidade entre o delito e a pena. Entretanto, é com a promulgação da Bill of Rights (1689) que se dá a primeira proibição moderna de penas cruéis:

Inglaterra. Bill of Rights, 1689: O valor exacerbado da fiança não deve ser exigido, nem multas excessivas, nem penas cruéis e inusitadas infligidas. (1)

Sobre o direito, afirma o prof. Berkson:

Entretanto, uma análise minuciosa de antigos documentos ingleses mostra claramente que a cláusula pretendia proibir punições excessivas, ao invés de modos particulares de as infligir. (BERKSON: 1975, p. 03) (2)

Verdadeiramente, mesmo após a Bill of Rightsinglesa, penas corporais continuaram a figurar como legítimas dentro do ordenamento jurídico inglês. Apenas no final do séc. XVIII, o Parlamento inglês começou, gradativamente, a abolir as penas corporais (3).

A segunda - e certamente mais importante - declaração de direitos advinda das Revoluções burguesas foi a declaração de direitos da Virginia (1776), idealizada por Thomas Jefferson. O texto, universalmente conhecido, integra o texto constitucional do Estado soberano da Virginia que, historicamente, antecede a criação do Estado norte-americano.

Virginia. Virginia Bill of Rights, 1776: O valor exacerbado da fiança não deve ser exigido, nem multas excessivas, nem penas cruéis e inusitadas infligidas.

Em 1787, com a passagem da confederação a federação, foram criados, enquanto estado soberano, os Estados Unidos da América, o primeiro exemplo real de federação. A Constituição americana de 1787, entretanto, por questões políticas, não contém uma declaração de direitos, mas tão-somente traça a organização federativa, pontuando as competências e limites federais, no âmbito legislativo, executivo e judiciário. Apenas em 1791 foi criada no texto constitucional norte-americano uma declaração de direitos, que ficou conhecida como as "10 emendas à Constituição". Através da oitava emenda, foi inserida a proibição de infligir a alguém penas cruéis. Do ponto de vista literal, segue a mesma escrita da proibição inglesa, mesmo tendo sido adotada um século depois. Do ponto de vista jurídico, a proibição norte-americana inaugura um novo momento da história da proibição de penas cruéis (BERKSON: 1975, p. 06).

Estados Unidos. Constituição dos Estados Unidos da América, 1791: O valor exacerbado da fiança não deve ser exigido, nem multas excessivas, nem penas cruéis e inusitadas infligidas.

Entretanto, grande parte das formas de punição do século XIX continuam vigendo no século XX e XXI nos Estados Unidos.

A estes métodos foi adicionado o uso de gás letal. O desenvolvimento continuado de uma filosofia liberal e humanitária nos Estados Unidos, entretanto, assegurou que tipos de punição já percebidos como proibidos pelo conceito não seriam reinstalados. Verdadeiramente, a única nova forma de punição aprovada foi a esterilização. Com exceção de duas decisões judiciais, esta prática tem sido autorizada a permanecer, por fazer a distinção entre os propósitos punitivos e não punitivos da pena (BERKSON: 1975, p. 11) (4).

Inicialmente, a Suprema Corte dos Estados Unidos estava inclinada a dar uma interpretação histórica à proibição, verificando se uma pena era ou não "cruel e inusitada" apenas observando os parâmetros também tidos como "cruéis" em 1789 (Senate Document: 2004, p. 14). Entretanto, posteriormente, a interpretação norte-americana, através das decisões da Suprema Corte americana, deu à proibição um significado muito mais abrangente do que aquela feita pelos ingleses, elevando-a a direito fundamental e basilar da democracia norte-americana. O significado da proibição era realmente proibir todos os tipos de pena que, seja por sua natureza ou intensidade, fossem cruéis e inaceitáveis para a civilização (BERKSON: 1975, p. 07). Entretanto, a Corte jamais se pronunciou sobre a inconstitucionalidade, per se, da pena de morte.

Por fim, a Declaração de Direitos dos Homens e dos Cidadãos (França, 1789):

França. Declaração dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos, 1789. Art. VIII: A lei deve estabelecer penas estritamente e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão através de uma lei promulgada anteriormente ao delito cometido, além de legalmente aplicada.

Como se observa, a França utilizou uma outra expressão, impondo a exigência de que as penas fossem estabelecidas em função de sua necessidade (de punir), e não para fins de vingança ou punição exemplar.

Para a historiografia clássica, a criação e consolidação deste direito é resultado da vitória da corrente reformadora iluminista, cujo expoente é Beccaria, que teria convencido - através de um discurso racional - a sociedade da ineficácia da tortura e da ilegitimidade das penas corporais vigentes até meados do século XVIII em toda a Europa e na América (IGNATIEFF: 1981, p. 153). Esta narração histórica evidencia uma idéia redentora ou idealizada da reforma iluminista, que teria sido capaz de extinguir a "barbárie" e institucionalizar uma relação delito-pena mais humana e, exatamente por isso, mais condizente com os ideais democráticos e com o pacto do "contrato social". É importante marcar com bastante relevo que é nessa ambiência político-jurídica que se cria a distinção entre "pena humana" e "pena cruel", imbuída da idéia de progresso, de avanço, de não-primitivismo

O modelo humanitário progressista de abolição da tortura do século XVII e XIX representa a vitória da civilização sobre a barbárie, da razão sobre a superstição (EVANS&MORGAN: 1998, p. 21)

Os iluministas reformadores, entre eles Beccaria, pensavam em substituir as penas corporais por penas diversas (trabalho forçado, segundo a ideologia benthaniana; prestação de serviço público etc), mas não havia um consenso quanto ao estabelecimento da pena privativa de liberdade. Na verdade, Beccaria não se mostrava muito inclinado a esta idéia de encarceramento, por julgar inútil e custoso para o Estado. Somente depois de 1786 nos Estados Unidos, com a criação do primeiro cárcere, a pena privativa de liberdade começou a substituir as penas corporais (IGNATIEFF: 2005, p. 263).

Verdadeiramente, não se pode negar o valor do pensamento iluminista nesta questão. O livro clássico de Beccaria, Dos Delitos e das Penas, é um manifesto contra a tortura e outros tratamentos cruéis. O argumento é racional: Beccaria demonstra a inutilidade da tortura como instrumento de produção da verdade.

Direi ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem acuse-se a si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade por meio dos tormentos como se a verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz! A lei que autoriza a tortura é a que afirma: "Homens, resisti à dor. A natureza dotou-vos de um amor invencível ao vosso ser, e o direito inalienável de vos defenderdes; porém eu ordeno-vos que sejais vossos próprios acusadores e finalmente digais a verdade em meio a torturas que vos partirão os ossos e dilacerarão os vossos músculos. (BECCARIA: 2001, p. 38)

Entre 1770 e 1850 a Europa gradativamente aboliu de seus sistemas penais as penas corporais e se deu certo consenso em torno da proibição de penas cruéis. A discussão em torno dessa questão só voltará a ser polêmica mais tarde, com a criação da Organização das Nações Unidas - ONU - e a proibição universal de imputação de penas cruéis, por serem estas ilegítimas. A pergunta que permanece é: toda pena corporal é uma pena cruel? A detenção em alguns estabelecimentos penitenciários não pode representar hoje um tratamento cruel?

1.1 Consolidação histórica da pena privativa de liberdade: a criação do sistema penitenciário

O século XVIII assistiu à revolução de todo o sistema punitivo ocidental. Em menos de um século, uma vastíssima variedade de penas (linchamento, pena de morte, açoite, guilhotina, etc.) foram substituídas pela pena privativa de liberdade e a consolidação, nas legislações penais, de uma série de direitos dos presos. Observa-se que até hoje a pena privativa de liberdade é a pena mais utilizada nos sistemas penais ocidentais.

Deu-se, portanto, uma ruptura de paradigma. Antes, entendia-se que o delinqüente devia pagar com o sofrimento infligido em seu corpo o seu ato. Com as reformas iluministas, muda-se a compreensão do binômio delito-castigo. A teoria da pena liberal é consensualista e entende que o "certo" e o "errado" são categorias naturais. Assim, o crime é um fenômeno natural que o homem escolhe racionalmente segui-lo. Assim, é necessário que o Estado intervenha para "curar" este cidadão, fazendo-o enxergar como deve fazer suas escolhas. Dá-se a criação do sistema penitenciário, enquanto instituição estatal responsável por curar os autores de delitos. Há uma semelhança - arquitetônica e institucional - entre os cárceres, os manicômios e as escolas. Pois estas instituições - chamadas pelos revisionistas de "instituições totais" - têm o objetivo de curar indivíduos que devem permanecer nesses locais em reclusão.

Desta forma, ao invés de atingir o corpo, a lei penal começou a atingir o direito de locomoção do individuo, impondo penas privativas de liberdade que variam, quanto à duração, de acordo com a gravidade e natureza do delito cometido e o tempo necessário para a ressocialização do individuo. Em resumo: é o tempo, e não mais o corpo, o destinatário da pena no Estado ocidental moderno.

O primeiro cárcere construído para alojar os condenados a penas privativas de liberdade foi o presídio de Walnut-Street, no Estado da Filadélfia, Estados Unidos, em 1786. (TOCQUEVILLE: 1984, p. 156). Este presídio tinha as seguintes características: a) continha celas individuais e celas coletivas; b) subdividia os presos de acordo com a natureza dos crimes cometidos; c) impunha trabalho forçado, com exceção dos presos em regime de isolamento.

A prisão de Walnut-Street não estava todavia em condição de produzir nenhum dos efeitos que se esperava daquele sistema. Havia nela dois defeitos graves: corrompia, por contágio devido à mútua comunicação os condenados que trabalhavam juntos e, por indolência, os indivíduos postos em isolamento (BEAUMONT & TOCQUEVILLE: 1984, p. 156) (5).

Apesar dos problemas deste presídio, o sistema foi imitado em vários outros Estados americanos que, aos poucos, foram abolindo as penas cruéis e construindo presídios para o cumprimento da pena privativa de liberdade.

Em 1816 foi construído o presídio Alburn (Nova York, 1816) com o intuito superar os problemas do presídio Walnut-Street, evitando o contato entre os prisioneiros através da existência apenas de celas individuais e, por outro lado, impedindo o isolamento absoluto, instituindo o trabalho comunitário diário. O sucesso de Alburn foi imitado pelos demais Estados americanos: Sing-Sing (Nova York), Wethersfield (Connecticut), Boston (Massachussetts) e Baltimore (Maryland) foram construídos nestes dois pilares estratégicos: celas individuais e trabalho comunitário (BEAUMONT & TOCQUEVILLE: 1984, p. 164). O trabalho comunitário, nesta perspectiva, desenvolve uma função importante de suavizar a dureza do isolamento carcerário.

Alexis de Tocqueville e Gustave de Beaumont, expeditores franceses, foram os primeiros estudiosos do sistema penitenciário recém-criado nos Estados Unidos. As observações feitas por eles, a priori, específicas do caso norte-americano, se tornaram, com o tempo, universais. Exatamente por isso, suas observações críticas são essenciais para a compreensão das limitações e paradoxos deste sistema.

Para eles, em tese, a adoção da pena privativa de liberdade e a criação de um sistema penitenciário deve implicar uma atitude estatal político-econômica na criação de um ambiente capaz de ressociabilizar o preso. Entretanto, a experiência concreta demonstra a ineficiência dos presídios como estrutura estatal hábil a possibilitar essa ressociabilização. Os dois estudiosos franceses observaram um alto índice de reincidência criminal e suicídio nos presídios norte-americanos. Para eles, não havia sido criado um verdadeiro sistema penitenciário, mas tão somente um "cruel sistema de encarceramento".

Se confundia na América a instauração do sistema penitenciário com a abolição da pena de morte. Se dizia: ao invés de matar os culpados, nós os colocamos na prisão, então temos um sistema penitenciário. A conclusão não era justa. É certamente verdade que a adoção da pena de morte por maior parte dos crimes é inconciliável com o sistema de encarceramento. Mas abolida esta pena não se está criado um sistema penitenciário: ocorre também que o criminoso cuja vida foi preservada seja posto em uma prisão em que o regime o deixe em uma situação melhor. Se, na prática, o sistema ao invés de reformar não faz senão corromper posteriormente o detido, não se terá um sistema penitenciário, mas somente um cruel sistema de encarceramento. (BEAUMONT & TOCQUEVILLE: 1984, p. 156) (6).

Em menos de um século, os demais paises ocidentais adotaram as mesmas estratégias político-econômicas de encarceramento. Com a independência das ex-colônias americanas - entre elas o Brasil - todas essas ideologias foram absorvidas pelos códigos jurídicos e reproduzidos os mesmos sistemas punitivos.

1.2 A escola revisionista e a desconstrução do mito da humanização da pena

Apenas nas décadas de sessenta e setenta do século XX, sob forte influência das teorias marxistas, surge a corrente historiográfica revisionista, cujos maiores expoentes são Michel Foucault, Michael Ignatieff e David Garland. Os estudos por eles efetuados nesse período tinham claras implicações políticas, nas quais, com relevo, romper com a historiografia reformista que defendia e impunha os argumentos iluministas de humanização e progresso.

Para tanto, os revisionistas trataram de reconstruir toda a história punitiva européia dos sécs. XVIII e XIX, com particular atenção para o estudo da lógica da criação e funcionamento das instituições totais, expressão criada por eles para denominar uma série de instituições criadas pelo Estado moderno europeu. O cárcere, o manicômio, o asilo e os hospitais são as instituições mais intensificamente estudadas por eles. Entre elas, o que primeiro salta aos olhos é a semelhança arquitetônica, já que foram construídos sob a forte influência do modelo benthaniano de "panóptico". Mas as semelhanças não ficam aí.

A historiografia revisionista, e Foucault em particular, evidenciou que, enquanto os regimes despóticos levavam em consideração, no momento da punição, os corpos dos indivíduos, a partir do iluminismo a teoria liberal-democrática se desenvolveu conjuntamente com a concepção dos sistemas punitivos que visavam a "alma": a pena se torna, em um primeiro momento, um instrumento de persuasão, uma técnica disciplinar (SANTORO: 2005, p. 13) (7).

Apesar das outras divergências, estes autores coincidiram quanto a algumas características impostas pelo novo sistema punitivo moderno. Primeiramente, eles apontam que, a partir de 1770 a 1850, deu-se a transição das penas corporais à pena privativa de liberdade em todos os Estados da Europa, em maior ou menor intensidade. Afirmavam que esta transição significava uma diminuição da inflição de dor no corpo do detido ou apenado, e um aumento substancial no sofrimento por este vivido internamente, na alma, em função do isolamento e do ritual de humilhação previsto nos códigos destas instituições totais. Outro ponto de convergência diz respeito ao entendimento de que estas instituições eram cercadas de muros que as isolavam do mundo externo, criando uma imensa distância entre a pessoa submetida a estes "tratamentos" e o mundo externo. Observaram ainda que esses lugares serviam de instrumento de disciplinamento dos corpos (IGNATIEFF: 1982, p. 159).

Os motivos e o programa da reforma foi mais complicada que a simples repulsão à crueldade ou impaciência com a incompetência administrativa - a crítica dos reformistas às formas de punição do séc. XVIII refletem um conceito não menos ambicioso de poder, desejando primeiramente alterar as bases do sistema criminal. Esta estratégia de poder não poderia ser entendida a não ser através da história da prisão incorporada dentro da história da filosofia da autoridade e o exercício do poder de classes em geral. A prisão era mais estudada não em si mesma, mas em que os rituais de humilhação podem revelar sobre as regras de concepção de poder de uma sociedade, obrigações sociais e sobre a maleabilidade humana (IGNATIEFF: 1981, p. 156) (8).

Em Vigiar e Punir, Foucault analisa o sistema penitenciário moderno, em particular, a função da pena privativa de liberdade. Mas o faz de forma inovadora, buscando não apenas observar os seus flagrantes efeitos negativos sobre o detento, mas, principalmente, analisando os seus efeitos positivos, ou seja, a função da pena enquanto tática política de dominação orientada pelo saber científico (FOUCAULT: 1994).

Assim, a criação do cárcere não é o resultado de uma demanda puramente humanitária ou do progresso que tirou o homem da "barbárie" das penas corporais, mas reflexo da mudança de paradigma efetuada pelo Estado moderno: para Foucault, o Estado deixa de punir o corpo, para apenas atingir diretamente a alma do apenado. A função do cárcere, neste sentido, é disciplinar os corpos para a máquina capitalista do mercado. A pena privativa de liberdade tem o condão de tornar os corpos dóceis para o trabalho nas fábricas.

Todo o estudo efetuado pela historiografia revisionista parte de premissas que precisam ser pontuadas para se entender a contribuição e as limitações de suas análises. Primeiramente, a escola revisionista entende que o Estado detém o monopólio do poder punitivo e é a maior fonte da ordem social, e que as relações sempre podem ser descritas em termos de poder e subordinação (IGNATIEFF: 1981, p. 153).

Além disso, da leitura dos textos em questão, sente-se facilmente a assunção destes à teoria marxista do controle social, que enxerga a pena, e todo o sistema punitivo, como um instrumento de reprodução das desigualdades e exploração do sistema capitalista (IGNATIEFF: 1981, p. 181).

À luz dos novos estudos sobre a temática, vislumbram-se algumas limitações teóricas dos estudos revisionistas. Diante da formação das gangues penitenciárias, é impossível aceitar o argumento de que o Estado detém o monopólio do poder punitivo, particularmente dentro das penitenciárias. O segundo grande problema diz respeito à redução da complexidade das relações travadas na sociedade a relações de poder e subordinação. Por fim, diante das novas teses escritas por médicos penitenciários, como Daniel Gonin, o terceiro ponto de convergência dos revisionistas é colocado em questão: será realmente que a pena privativa de liberdade não inflige sofrimento ao corpo dos apenados? Ou melhor: não será a pena privativa de liberdade uma pena corporal?

1.3 A pena privativa de liberdade como uma pena corporal: uma tese de Daniel Gonin

Em 1991, foi publicado, na França, o livro La Sante Incarcérée. Médecine et Conditions de Vie en Détention, do médico psiquiatra francês Daniel Gonin. Em minuciosa documentação sobre os efeitos do encarceramento no corpo do detento, Gonin vai além da crítica proposta pela escola revisionista, e constata que a pena privativa de liberdade impõe grande sofrimento ao corpo encarcerado, causando doenças e deixando cicatrizes patológicas, que vão desde vertigens e perda da capacidade visual e táctil, até a morte do detento, por suicídio ou automutilação. Lendo os estudos efetuados por ele, ao longo do seu exercício profissional como psiquiatra da penitenciária da região de Lyon, França, é impossível negar a corporalidade da pena privativa de liberdade, e as visíveis cicatrizes deixadas no corpo do encarcerado.

O estudo comprova que as normas e ambiências carcerárias (francesas) terminam por prejudicar a sensibilidade do preso, na percepção das coisas. Nos primeiros meses de detenção, 31% dos apenados afirmam ter sentido uma diminuição de suas capacidades visuais. Gonin aponta as causas: condições precárias de iluminação; excesso de leitura e televisão, como forma de distração para fazer passar mais rápido o interminável e inútil tempo de prisão; impossibilidade de olhar o horizonte e relaxar os olhos; obrigatoriedade de estar cabisbaixo. Na lógica panóptica, o preso não deve olhar, mas ser observado (GONIN: 2004, p. 80).,

A sensibilidade táctil também é sensivelmente diminuída, enquanto os detentos desenvolvem a capacidade auditiva, forma de reconhecer os acontecimentos na prisão (GONIN: 2004, p. 82).

A pobreza nutritiva do "cardápio" das penitenciárias francesas induzem a uma série de doenças gastrointestinais, já que a alimentação do preso carece de proteínas e nutrientes. Para ele, seguramente a alimentação integra a sanção (GONIN: 2004, p. 95). Além disto, o corpo do detento ainda sofre de doenças advindas das condições ambientais em que vive e do tratamento médico que lhe é dispensado. O problema dentário é o mais comum e reincidente nas cadeias.

Na nossa amostra estatística de controle efetuado em vida livre, as infecções dentárias estão em primeiro lugar, mas, no cárcere o que impressiona é sobretudo a gravidade dos danos causados à dentadura (...) em reclusão, o mal aos dentes se torna insuportável; ela é angustiante quando o único consolo é esperar no fundo da sua cela que alguém venha tratá-la (GONIN: 2003, p. 109-110) (9).

Em relação às desigualdades econômicas existentes entre os detentos, com diferentes tratamentos, impõe o médico:

A prisão não suprime as diferenças sociais. Os pobres têm poucos meios, mesmo se eles trabalham, salvo alguns raros empregos. Mas os ricos podem adquirir, ser servidos, dominar. Os pobres vivem na indigência das suas gengivas nuas, e os ricos no ouro da sua dentição (GONIN: 1991, p. 127) (10).

Em virtude das regras do encarceramento - pouco exercício e horas de sol - da umidade das paredes das celas, má higienização, unida à má alimentação e ao nível de stress psicológico em que vive o preso, a pele é a segunda parte do corpo a denunciar o sofrimento. Na detenção, as infecções cutâneas devem ser observadas com cautela porque uma pequena inflamação se torna um tumor, um edema, um lipoma. Além da intensa dor e incômodo, as inflamações deixam cicatrizes no corpo dos detentos, uma vez tratadas (GONIN: 2003, p. 117).

O corpo, como um painel, conserva os traços dos antigos registros: cicatrizes, úlceras, desenhos tatuados ou aquilo que resta depois da tentativa de apagar. É toda uma história que o velho preso inscreve na geografia complicada de sua superfície corporal e que, em alguns momentos de crise, ele recusa como tal e pretende destruir (GONIN: 1991, p. 146). (11)

Gonin segue descrevendo os efeitos do isolamento no corpo do detento: tentativas de suicídio, toxicodependência e, o mais grave, a certeza de que as marcas do cárcere acompanharão os detentos depois do período de cumprimento da pena. A análise das disfunções sexuais causadas pelo longo período de abstinência sexual e inexistência de privacidade para exercê-la. Gonin analisa ainda o homossexualismo e as repercussões mentais e físicas do apenado.

A leitura e análise dos dados colhidos por Gonin, expoente da medicina penitenciária francesa, traz em si o questionamento sobre a "doçura", "humanidade" e "incorporeidade" da pena privativa de liberdade. A reflexão se coloca nos termos da proposição feita por An-Na'im, em análise multicultural do significado de "pena ou tratamento cruel": que pena impõe mais sofrimento, uma tradicional pena corporal prevista na Shari'a (12) como punição por um roubo, ou passar alguns anos em cumprimento de pena privativa de liberdade em uma penitenciária ocidental? An-Na'im acredita que esta resposta é relativa, em função do ponto de vista. O detento, conhecedor do sofrimento carcerário, provavelmente preferiria ter um membro amputado ou sofrer algum tipo de pena corporal. Já uma pessoa que sofreu uma pena de amputação de um membro ou linchamento, e sabe do estigma e dos problemas relacionados, provavelmente preferiria ser punido com uma pena privativa de liberdade (AN-NA'IM: 1992, p. 33).

As conclusões a que chegou o professor An-Na'Im são confirmadas nas palavras de Pavarini, professor da Universidade de Bologna encarregado de introduzir o livro de Gonin que, na sua versão em italiano, afirma:

Enquanto escrevo estas últimas linhas, a rádio ligada me comunica, em um de seus numerosos noticiários, que o mafioso Tutolo, uma vida inteira atrás das grades, e que nos últimos quinze em isolamento contínuo, pede piedade: a graça de ser condenado ao fuzilamento. O comentário do jornalista: é só uma provocação para chamar atenção do público para si. Talvez, tudo é possível. Em uma visita que fiz ao cárcere Bellizzi Irpino alguns anos atrás onde Tutolo era detento, a diretora me contava, entre o sério e o cômico, que o perigoso prisioneiro falava todos os dias com as moscas (PAVARINI in GONIN: 1994, p. 09). (13)

A dicotomia entre pena humana e pena cruel é ilusória, e parte de premissas falsas, somente admissíveis por quem não conhece a realidade carcerária, mesmo nos países em que o sistema carcerário é mantido em certos parâmetros ambientais vistos como "humanos" pelos sistemas internacionais de direitos humanos. Se esta proposição, entretanto, é posta em contraposição a países ocidentais não europeus, em particular países africanos e sul-americanos, a questão se torna talvez mais simples de ser respondida do ponto de vista teórico. Do ponto de vista prático, consiste em uma triste constatação que necessita de urgente transformação.

Notas

1. No original: "That excessive bail ought not to be required, nor excessive fines imposed, nor cruel and unusual punishments inflicted".

2. No original "However, a close examination of early English documents shows clearly that the clause was intended to prohibit excessive punishments rather than particular modes of inflicting them".

3. Apenas em 1790 foi abolida, na Inglaterra, a pena que impunha que mulheres fossem queimadas vivas "the burning of women". Em 1814, o esquartejamento deixou de figurar entre as penas. Ver Berkson, p. 04.

4. No original: To these methods was added the use of lethal gas. The continuing development of a liberal and humanitarian philosophy in the United States, however, insured that the modes of punishment already perceived as prohibited by the concept would not be reinstaled. Indeed, the only new form of punishment approved was sterilization. With the exception of two rulings, this practice has been allowed to stand by making the subtle distinction punitive and non punitive objectives.

5. No original "Cependant la prison de Walnut-Street ne pouvait produire aucun des effets qu'on attend de ce système. Elle avait deux vices principaux: elle corrompait par la contagion des communications mutuelles les condamnés qui travaillaient ensemble ; elle corrompait par l'oisiveté les individus plongés dans l'isolement".

6. No original: « Si l'on demande pourquoi ce nom fut donné au régime d'emprisonnement qui venait d'être établi, nous répondrons qu'alors, comme aujourd'hui, on confondait en Amérique l'abolition de la peine de mort avec le système pénitentiaire. On disait: au lieu de tuer le coupable, nos lois le mettent en prison: donc nous acons un système pénitentiaire. La conséquence n'était pas juste. Il est bien certain que la peine de mort appliquée à la plupart des crimes est inconciliable avec un régime d'emprisonnement ; mais, cette peine abolie, le système pénitentiaire n'existe pas virtuellement: il faut encore que le criminel dont on a épargné la vie soit placé dans une prison dont le régime le rende meilleur. Car, si ce régime, au lieu de le réformer, ne faisait que le corrompre davantage, ce ne serait plus un système pénitentiaire, mais seulement un mauvais système d'emprisonnement ».

7. No original: "la storiografia revisionista, e Foucault in particolare, ha sottolineato che mentre i regimi dispotici prendevano di mira, al momento della punizione, i corpi degli individui, a partire dall'illuminismo la teoria liberal-democratica si è sviluppata in simbiosi aço la concezione di sistemi punitivi che miravano alle "anime": la pena diventa in primo luogo uno strumento di persuasione, una tecnica disciplinare".

8. No original: The motives and program of reform were more complicated than a simple revulsion at cruelty or impatience with administrative incompetence - the reformer's critique of eighteenth-century punishment flowed from a more not less ambitious conception of power, aiming for the first time at altering the criminal personality. This strategy of power could not be understood unless the history of the prison was incorporated into a history of the philosophy of authority and the exercise of class power in general. The prison was thus studied not for itself but for what its rituals of humiliation could reveal about a society's ruling conceptions of power, social obligation, and human malleability.

9. No original: Dans l'échantillon de référence en vie libre, les affections dentaires sont au premier rang. Mais en détention, ce qui frappe, c'est la gravité de l'atteinte de la denture. La douleur dentaire est toujours difficile à supporter ; elle se fait angoissante lorsqu'il n'y a pour la soulager qu'à attendre dans le fond de sa cellule qu'on veuille bien venir la soigner (GONIN: 2003, p. 122).

10. No original: La prison ne supprime pas les différences sociales. Les pauvres ont peu de moyens, même s'ils travaillent, à quelques rares emplois près. Mais les riches peuvent acquérir, se faire servir, dominer. Les pauvres vivent dans le dénuement de leurs gencives, les riches dans le plaqué or de leur denture (GONIN: 1991, p. 127).

11. No original: La peau, comme un panneau, garde les traces des anciens affichages: cicatrices éruptives, ulcères, dessins tatoués ou ce qu'il en reste après les tentatives d'effacement. C'est toute une histoire que le vieux détenu inscrit dans la géographie compliquée de sa surface corporelle, et que, dans certains moments de crise, il récuse comme telle et prétend détruire (GONIN: 1991, p. 146).

12. A Shari'a não é formalmente um código legal. Consiste em um vasto corpo jurisprudencial no qual juristas expressam a interpretação da Qur'an e Sunna e as respectivas implicações legais (An-Na'im in MARTIN e outros: 2006, p. 950).

13. No original: Mentre scrivo queste ultime righe, la radio accesa mi comunica, in uno dei suoi innumerevoli notiziari, che il camorrista Tutolo, un'intera vita dietro a quelle sbarre, e per agli ultimo quindici in isolamento continuo, chiede pietà: la grazia de venire giustiziato per fucilazione. Il commento del giornalista: la solita provocazione per attirare su di sé l'attenzione del pubblico. Forse, tutto è possibile. In una mia visita al carcere di Bellizzi Irpino di alcuni anni fa ove Tutolo allora era detenuto, la direttrice mi raccontava, tra il serio e il faceto, che il pericoloso prigioniero parlava tutto il giorno con le mosche.