ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

Introdução

Karina Nogueira Vasconcelos, 2013

São tantos os olhares, são tantas as sensações, imensuráveis os afetos, duvidosa a convicção, sábio o silêncio, ansiosa a curiosidade, forte o empenho, doce com empatia a audição, por vezes árida, por vezes fluida e inspirada a reflexão.

O tema é o sofrimento, anterior ao cárcere, durante o cárcere, posterior ao cárcere e durante o cárcere, repetidas vezes.

Inicialmente, a indagação era: Será que o cárcere é o grande responsável pelo retorno a ele? Dessa, outras naturalmente surgiram: Como sabê-lo? Como comprovar? Nesse momento se iniciava uma pesquisa na Colônia Penal Feminina do Recife - O Bom Pastor - como é conhecida, nos anos de 2010 e 2011. Construir um referencial teórico, discutir a metodologia, ir ao campo, pesquisar, refletir, pesquisar, refletir e condensar. A curiosidade incipiente não permitia objetividade execessiva. Nada de questionários fechados. Nada de perguntas tão fechadas. O fundamento da pesquisa em mente são diálogos movidos pelo que se falava e direcionados pela curiosidade pela própria história narrada, a partir da proposta: "Fale-me sobre você."

Da enorme coleta de dados, foi possível contar um pouco das coisas do Bom Pastor e, sobretudo, de quem esteve ou está lá. Dos afetos positivamente produzidos ou não, uma constante preocupação: é possível fazer algo pelo Bom Pastor, capaz de reduzir o sofrimento das mulheres que lá estão, reduzir a violência do ambiente e contribuir para a reinserção social dessas mulheres?

Em busca dessa preocupação, surge o curso muito intenso com o Professor Massimo Pavarini - "Como liberar-se da necessidade do cárcere: um curso de pesquisa-ação sobre a penalidade em Pernambuco", durante 15 dias em Recife. Em seguida, o "Intercâmbio Internacional - Sistemas Penitenciários", entre Dirigentes Penitenciários do Brasil e da Itália, no ISSP (Istituto Superiore di Studi Penitenziari), em Roma, com foco no tema Detenção e Dignidade: a tutela dos direitos humanos em ambiente carcerário. Por fim, e reinício de tudo, o feliz encontro com a Mediação Humanista, em Paris, em 2012, com o curso de formação de mediadores no Centre de Médiation et Formation à la Médiation (CMFM).

A busca pela compreensão da instituição carcerária despertou na Graduação em Direito e foi tomando corpo e consistência durante o Mestrado dedicado à história da moderna instituição de aprisionamento de pessoas para cumprimento de pena, resultante no livro: "O cárcere: racionalismo da pena e adestramento do corpo na Modernidade". Essa busca vem amadurecendo com essa pesquisa de campo, pesquisa de contato, assim como com as experiências adquiridas durante as inspeções à malha carcerária pernambucana, com contatos frequentes com presos, ex-presidiários, agentes, diretores e técnicos penitenciários, juízes e promotores das Execuções Penais, intelectuais e técnicos do sistema penitenciário, no desempenho das atividades do Conselho Penitenciário do Estado de Pernambuco.

Este olhar sobre o Bom Pastor, o sofrimento, o retorno e a mediação nasce justamente dessa trajetória pela compreesão do cárcere somada à busca pela redução de danos resultantes do encarceramento, cuja engrandecedora formação na Mediação Humanista em Paris, é uma forte perspectiva.

Aparentemente, talvez, uma colcha de retalhos, um quebra-cabeça, um "camarão na moranga". Por outro lado, talvez, uma provocação da sensibilidade, guiada pelo forte teor das observações ao longo desse período e impulsionada pela forte inspiração do movimento pela construção de uma cultura da paz, mesmo num antro de violência, talvez mesmo sobretudo lá.

A partir desse outro olhar, questiona-se: O sofrimento é responsável pelo ciclo de retorno ao cárcere? Tratar o sofrimento é uma possibilidade de interromper esse ciclo? Essas são as indagações desse novo início, quando se revisita tudo, quando se avistam as partes e se parte para a construção do todo tão singular quanto as partes que o compõem.

O coração dessa pesquisa é saber até que ponto o acolhimento do sofrimento das mulheres encarceradas no Bom Pastor pela prática da Mediação Humanista pode auxiliar, a partir do processo catártico existente na mediação, o processo de reinserção social dessas mulheres e, portanto, a redução do retorno ao cárcere.

É importante deixar claro que o objetivo da prática da Mediação Humanista aqui não é a redução da reincidência, essa seria um dos reflexos colaterais. O objetivo é o acolhimento do sofrimento daquelas mulheres e a promoção de um ambiente carcerário menos sofrido, menos violento, menos danoso. Valendo-me da forma de abordagem de Howard Zehr (2002), ao informar o que a Justiça Restaurativa não é, antes mesmo de abordar seus princípios e sua prática, gostaria de anunciar que a proposta de introdução da "Mediação Humanista" no cárcere feminino de Recife - O Bom Pastor, como forma de redução de danos resultantes do encarceramento, não pretende oferecer solução ao problema carcerário ou mesmo afirmar uma redução nos índices de reincidência.

Amenizar o problema do encarceramento e reduzir os índices de reinicdência podem se apresentar como consequências da prática da "Mediação Humanista", mas o objetivo da inserção desse processo cartático é somente um: acolhimento e libertação do sofrimento. Forma particular de atender às necessidades do homem e da sociedade, "engrossando a fileira" das práticas de cuidado de si, cuidado das pessoas, bem-estar, plenitude e pacificação social.

Embora a Mediação Humanista tenha se tornado uma prática tão difundida para pensar diversos problemas sociais nas mais diferentes áreas, é uma prática singular, voltada ao sujeito e às suas particularidades. É comum diante dessa afirmação a seguinte interrogação: como uma prática pode se dar conta da diversidade, das singularidades e mesmo assim desenvolver-se num mesmo processo? E mais, qual o limite na aceitação dessas singularidades, tendo em vista a perspectiva do reconhecimento de emoções e de sentimentos?

São questões como essas, atreladas à capacidade humana de refazimento - resiliência e à busca pelo aumento de potência positiva, que envolvem esse trabalho na construção da proposta de levar a Mediação Humanista ao Bom Pastor.

Seguindo uma perspectiva coerente com a compreensão da singularidade e ciente do processo histórico da pena carcerária, parte de nossa análise se volta a desvendar o Bom Pastor. O que ele é? O que se passa lá dentro? Quem são as pessoas presas? Quais suas histórias? Quais seus sofrimentos?

Pesquisar uma realidade complexa, como é o cárcere, apresenta seus obstáculos logo de saída: o que conhecer? Como é possível conhecer? É melhor focar no objetivo ou se deixar levar pelas múltiplas provocações daquela realidade? Há muitos aspectos a serem conhecidos e diversos vieses de interpretação dos fenômenos.

Após os estudos em torno da história da instituição carcerária na Modernidade, da sua crise e do seu reafirmar-se na atualidade, vários eram os focos de investigação, havia muita coisa a desvendar. Como era a rotina de um cárcere? Quem era o seu público alvo? Havia muita violência? De onde vinham as pessoas presas? Quais os crimes mais frequentes? Havia muita reincidência? Por quê? Como evitá-la?

Assim como eram diversos os questionamentos, diversas eram as formas de investigar esses dados. Abordar tudo parecia inalcansável, selecionar aspectos parecia se fechar ao que o campo pudesse mostrar. Por mais que o objetivo da pesquisa fosse claro, toda distração do foco contribuia para afrofundar a investigação que se fazia. A pesquisa era sobre o porquê do retorno ao cárcere e a proposta era como esse retorno poderia ser evitado. O porquê da "reincidência" e o como da "reinserção social".

Ao tentar desvendar o porquê do retorno ao cárcere, algo se destacava sobremaneira, até nos relatos mais descontraídos, o sofrimento. Ao tentar compreender a viabilidade de um processo de reinserção social singular, algo correlacionado à libertação do sofrimento parecia se evidenciar enormemente. A grande questão é que o sofrimento, na verdade, são vários e por diversos motivos e tratar deles, certamente, não poderia se resumir a uma fórmula.

Este trabalho se divide em mostrar o sofrimento de mulheres, em grande parte com diversos retornos ao cárcere, mostrar uma prática de acolhimento e liberação do sofrimento e a possibilidade de desenvolver essa prática na unidade prisional, alvo da pesquisa, com reais possibilidades de redução de danos no encarceramento, com prováveis reflexos na reinserção social.