ADIR - L'altro diritto

ISSN 1827-0565

6. A experiência brasileira: estudo de casos do STF e STJ

Adriana Dias Vieira, 2007

Com competência fixada no art. 102 da Constituição Federal brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) é o órgão supremo do poder judiciário brasileiro a que compete a guarda da Constituição Federal brasileira. No que concerne à proibição de tratamento ou penal cruel, duas atribuições do STF tornam-se essenciais para o estudo jurisprudencial da temática no Brasil.

Entre outras atribuições, o STF tem competência para processar e julgar originalmente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal (art. 102, I, a). O entendimento fixado pelo STF nestas duas ações, acerca da adequação de uma norma ou ato normativo à Constituição, tem eficácia erga omnes, e efeito vinculante, nos termos do art. 102, §2, da Constituição Federal.

No que tange ao habeas corpus, mandado de segurança e habeas data, nos termos do art. 102, I, da Constituição Federal, o STF tem competência para julgar:

Art. 102, I, d) o "habeas-corpus", sendo paciente qualquer das pessoas referidas nas alíneas anteriores; o mandado de segurança e o "habeas-data" contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio Supremo Tribunal Federal.

O STF julga ainda, em sede de recurso extraordinário, causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo da Constituição, declarar inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição ou de lei federal (art. 102, III, todas as alíneas). Com a emenda constitucional nº45 de 2004, um outro requisito de admissibilidade do recurso extraordinário foi imposto constitucionalmente, através da redação do inciso terceiro do mesmo art. 102, que trata da competência do STF.

Art. 102. § 3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros. (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, tem competência fixada no art. 104 da Constituição Federal brasileira e é órgão de revisão das decisões promulgadas pelos tribunais regionais federais e pelos tribunais estaduais, no âmbito da justiça federal e das justiças estaduais, respectivamente.

6.1. Penas Cruéis

Em virtude da legislação vigente, não há grande problemática em torno da delimitação do significado de penas cruéis, de acordo com um entendimento de "pena cruel" fixado pela CEDH. Ou seja: do ponto de vista formal, os tribunais brasileiros não enfrentam grande discussão em torno da temática, pois grande parte das sanções penais hoje consideradas "cruéis" ou na nebulosa área de confusão, não são legítimas no Brasil. A Constituição Federal brasileira proíbe expressamente, em seu art. 5º, XLVII e alíneas, a pena de morte (exceto em caso de guerra), pena de caráter perpétuo, de banimento ou que consistam em trabalhos forçados.

Exatamente por isso, nem o STF, nem o STJ têm decisões que contribuam para a construção jurisprudencial do conceito em questão. Entretanto, desde 1º de dezembro de 2003, quando foi decretada e sancionada a Lei 10.792/03, estes tribunais têm sido chamados, em sede recursal, a se pronunciar sobre a constitucionalidade do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).

O RDD é resultado de um processo que visa a tornar "o cárcere mais duro", nas palavras de Márcio Thomaz Bastos, para aqueles criminosos mais "perigosos", ligados ao crime organizado. A presente lei alterou o texto da Lei de Execuções Penais e do Código de Processo Penal e cria um regime de cumprimento de pena ainda mais duro. Nos termos do art. 52 da LEP, o RDD consiste em:

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2 Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

O Supremo Tribunal Federal jamais foi chamado a se declarar, através de uma ação direta de inconstitucionalidade, este regime diferenciado de cumprimento de pena.

6.2. Tratamentos Cruéis

6.2.1. Tortura

Inicialmente, a prática de tortura não constituía um crime autônomo, mas uma circunstância de agravamento da pena, nos termos do art. 61 do Código Penal brasileiro. Ou seja: a tortura era apenas um meio cruel de execução de um outro crime. Para Luciano Maia, "essa imagem, construída a partir da definição da tortura como meio de execução de outro crime, tornará difícil a compreensão de que o perpetrador do delito de tortura não é, necessariamente, nem brutal, nem sádico, nem impiedoso, nem insensível, nem cruel" (MAIA: 2006, p. 96). Para ele, esta é uma das razões pelas quais muitas vezes "é difícil ao Judiciário reconhecer que determinado agente da lei, por vezes tão eficiente no cumprimento do seu dever e tão eficaz na elucidação de crimes, possa ser um sádico impiedoso, já que a tal corresponderia ser acusado da prática de tortura" (MAIA: 2006, p. 96).

Em 1990, através do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a prática de tortura foi criminalizada, quando praticada contra crianças e adolescentes, sem, entretanto, defini-la.

Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: (revogado pela Lei 9.454-97)
obs.dji: Art. 1º, II, Tortura; Art. 1º, § 4º, II, Tortura
Pena - reclusão de um a cinco anos.
§ 1º Se resultar lesão corporal grave:
Pena - reclusão de dois a oito anos.
§ 2º Se resultar lesão corporal gravíssima:
Pena - reclusão de quatro a doze anos.
§ 3º Se resultar morte:
Pena - reclusão de quinze a trinta anos.

Em 1994, o Superior Tribunal Federal, quando do julgamento de um habeas corpus (1), por maioria de seis votos a cinco, julgou constitucional a referida norma (MAIA: 2006, p. 100). Para a Suprema Corte, tal preceito normativo

encerra tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado, eis que o delito de tortura, por comportar formas múltiplas de execução, caracteriza-se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade.

Neste entendimento fixado pelo STF, "há o reconhecimento de que, no mundo dos fatos, muitas condutas podem vir a ser qualificadas de tortura, quando forem suficientes a infligir tormentos e suplícios, capazes de produzirem sofrimento exasperado na vítima. Igualmente relevante é o reconhecimento de que tal sofrimento por ter dimensão física, moral ou psíquica" (MAIA: 2006, p. 101). Acrescenta ainda uma observação crítica importante:

Passagem preocupante na formulação, contudo, resulta da compreensão da Suprema Corte, que reproduz o conhecimento assumido de modo generalizado pelo aplicador do Direito, de que a tortura é "desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade". De certo modo, essa compreensão é resquício do entendimento do uso da tortura como modo de prática de outro delito, equiparável ao "emprego de veneno, fogo, explosivo" "ou outro meio insidioso ou cruel", previstos na letra "d" do art. 61, do Código Penal, como agravante genérica. O ponto de destaque, entretanto, resulta sendo o entendimento de que a tortura ali é um "tipo penal aberto suscetível de integração pelo magistrado". (MAIA: 2006, p. 102-03)

Ademais, é importante pontuar que a partir do momento em que o Brasil ratificou a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes, as cortes e tribunais nacionais tinham, à sua disposição, uma definição legal internacional da pratica de tortura. O que dificultou - e ainda dificulta - o processamento e julgamento do crime de tortura e outras tantas violações de direitos humanos é a falta de conhecimento e aplicação das normas internacionais de direitos humanos que, uma vez ratificados, integram o ordenamento jurídico interno.

Os resultados da pesquisa realizada em 2004, intitulada "Direitos Humanos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: Concepção, Aplicação e Formação", coordenada pelo prof. José Ricardo Cunha, comprovam a afirmação: através de entrevistas aos juízes e desembargadores, a pesquisa identificou que 73% dos juízes consultados não utilizam, na fundamentação de suas sentenças, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes. Apenas 11% declararam que a utilizam freqüentemente, enquanto 14% afirmaram raramente se utilizar daquele documento jurídico (CUNHA: 2003, p. 171).

No Estado do Rio de Janeiro, é pequeno o índice de aplicação das normas internacionais de direitos humanos, seja aquelas oriundas de Convenções ou Pactos internacionais das Nações Unidas, seja do pacto de San José, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Sabe-se que o Estado do Rio de Janeiro não é uma exceção, mas uma regra. Por fim, a pesquisa identifica que uma das mais relevantes razões que justificam esse "desprestígio" das normas internacionais de direitos humanos se deve à formação dos magistrados. À pesquisa, 84% dos magistrados responderam que não tiveram nenhum curso ou disciplina específica de direitos humanos durante o bacharelado, enquanto 40% responderam que jamais estudaram a disciplina, mesmo que de forma periférica. Apenas 16% dos magistrados entrevistados afirmaram saber como funcionam os Sistemas de Proteção Internacional de Direitos Humanos (CUNHA: 2003, p. 150 e ss.).

Depois da promulgação da Lei 9.455/97, aumentaram consideravelmente as denúncias por crime de tortura. Entretanto, importante realçar dois pontos que, de forma recorrente, são discutidos perante o STF e STJ: 1. como a lei brasileira não restringiu (ao agente público) o sujeito ativo do crime de tortura, muitas denúncias e condenações dizem respeito a crimes cometidos por agentes privados; 2. alto índice de desclassificação do crime de tortura por outros tipos penais correlatos.

A lei 9.455/97 tem sido utilizada amplamente para condenar agentes privados pelo crime de tortura. Analisando a questão, Luciano Maia afirmou que, uma vez admitida a tortura como crime comum, duas conseqüências advieram. Exaustivamente documentando e analisando caso a caso grande número de jurisprudências no país, afirma:

A primeira, mais evidente, com um exuberante número de condenações de padrastos e madrastas, pais e mães, até tios, sobre enteados e enteadas, filhos e filhas, e sobrinhos, todas no âmbito doméstico, nas relações privadas. A segunda, examinando a possibilidade - ou não - de desclassificação da imputação para o delito de maus tratos, ou outro, a partir da análise, em alguns casos, do elemento subjetivo - ou volitivo, como dizem muitos acórdãos -, em outros, da gravidade das lesões, aquele prevalecendo sobre este. São poucos os casos em que ambos os fatores foram apreciados (MAIA: 2006, p. 249).

Em documento oficial apresentado à Comissão de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, o governo brasileiro aponta que, para além dos avanços normativos, os tribunais brasileiros relutam em utilizar a lei contra a tortura para punir agentes públicos (MAIA: 2006, p. 284).

No plano concreto, porém, a aplicação da lei pelos poderes competentes não tem sido satisfatória. Em muitos casos posteriores a 1997, alegações de prática de tortura não têm tido seguimento através de processos penais, seja pela ausência de denúncia do Ministério Público, seja pelo redirecionamento da denúncia para crimes menos graves como lesões corporais ou abuso de autoridade, por parte de juízes. (2)

Como já observado, no Brasil, as fronteiras conceituais que distinguem a prática da tortura e os demais tratamentos ou penas cruéis se encerra dentro do âmbito da ciência penal. Sendo assim, a grande questão que se coloca é: quais são os elementos (objetivos e subjetivos) que distinguem os crimes de: tortura (art. 1º da Lei 9.455/97), lesões corporais (art. 129 do Código Penal), abuso de autoridade (arts. 3º e 4º da Lei nº 4898/65) e maus-tratos (art. 136 do Código Penal).

a) tortura como crime comum e desclassificação para o crime de maus tratos;

No que tange à desclassificação do crime de tortura, as jurisprudências consolidadas no âmbito do STF e STJ não corroboram para a pesquisa, uma vez que todos os recursos impetrados não são conhecidos, por exigirem um reexame das provas. A súmula 07/STJ expressamente impõe que: "a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial".

Em 2004 (3), quando no julgamento de um recurso especial impetrado com o intuito de reformar a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que desqualificou o crime de tortura para o crime de maus-tratos, o Ministro Gilson Dipp se pronunciou:

II. Enquanto na hipótese de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura, o propósito é causar o padecimento da vítima.

IV. Para a configuração da segunda figura do crime de tortura é indispensável a prova cabal da intenção deliberada de causar o sofrimento físico ou moral, desvinculada do objetivo de educação.

V. Evidenciado ter o Tribunal a quo desclassificado a conduta de tortura para a de maus tratos por entender pela inexistência provas capazes a conduzir a certeza do propósito de causar sofrimento físico ou moral à vítima, inviável a desconstituição da decisão pela via do recurso especial.

VI. Incidência da Súmula n.º 07/STJ, ante a inarredável necessidade de reexame, profundo e amplo, de todo conjunto probatório dos autos. (grifo nosso)

Analisando a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (4) que, em sede de apelação criminal, desqualificou o crime de tortura, observa-se que:

Na dúvida quanto à ocorrência do crime de tortura, porque não se sabe se os agentes infligiram o que a lei chamou de "intenso sofrimento físico e moral" à vítima, é conveniente desclassificar-se a infração para a do art. 136, §§ 2º e 3º, do Código Penal, que trata do delito de maus tratos de que resulta a morte da vítima, agravado pelo fato de esta ser menor de quatorze (14) anos de idade (...)
A diferença que existe entre o crime de tortura e o de maus tratos está em que naquele (tortura) o tipo penal exige que o agente inflija ao ofendido "intenso sofrimento físico ou moral", o que não se perquire no delito de maus tratos.

Entretanto, de acordo com jurisprudência consolidada no Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a temática, não é a intensidade do sofrimento, mas o elemento volitivo que distingue os tipos penais em questão:

Distinção entre maus-tratos e tortura: A questão dos maus-tratos e da torturadeve ser resolvida perquirindo-se o elemento volitivo... Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus-tratos. Se a conduta não tem outro móvel senão o de fazer sofrer, por prazer, ódio ou qualquer outro sentimento vil, então pode ela ser considerada tortura (TJSP, RJTJSP 148/280).

Machado ensina que o crime de maus-tratos tem elementos característicos, sendo delito próprio, pois exige uma específica relação jurídica entre os sujeitos ativo e passivo. Explica machado que "não havendo relação de subordinação entre o agente e a vítima - de direito público ou privado, não se tratará de maus tratos, mas de perigo para a vida ou saúde de outrem (CP, art. 132)". Ensina ele que "autoridade é o poder, derivado de direito público ou privado, exercido por alguém sobre outrem (v.g. diretores de escola/alunos; carcereiros/presos, também pais/filhos etc.). Guarda é a assistência permanente - e não apenas ocasional - prestada ao incapaz de zelar por si próprio e cuidar de sua defesa e incolumidade (v.g. pais, tutores e curadores, em relação a filhos, tutelados e curatelados); por fim vigilância é a assistência acautelatória, com vistas a resguardar a integridade pessoal alheia (v.g. guias alpinos/alpinistas; salva-vidas/banhistas".

Já o sujeito passivo é aquele que estiver sob a autoridade, guarda ou vigilância do sujeito ativo, para fins de educação (atividade docente que tenha por escopo aperfeiçoar, sob o aspecto intelectual, moral, físico, técnico ou profissionalizante, a capacidade individual); ensino (são os conhecimentos transmitidos com vistas à formação de um fundo comum de cultura - ensino primário, secundário etc.), tratamento (que reúne não apenas os processos e meios curativos, de caráter médico-cirúrgico, como também a administração de cuidados periódicos, destinados a prover a subsistência alheia e custódia (que é a detenção de uma pessoa para fim autorizado legalmente).

Um outro elemento através do qual o Tribunal de Justiça de São Paulo "criou" para diferenciar os tipos penais foi o elemento "sádico", inexistente na lei 9.455/97, mas consolidada na jurisprudência. De forma errônea.

Desclassificação de tortura (art. 233, § 3º, da Lei n. 8.069/90) para maus-tratos (art. 136, § 2º): Desclassifica-se para maus-tratos com morte, se o pai cruel impôs castigos físicos ao filho menor com o propósito de punir para corrigir e não por puro sadismo imotivado (TJSP, RT 699/308)

No dicionário Houaiss da língua portuguesa "sadismo" significa "perversão caracterizada pela obtenção de prazer sexual com a humilhação ou sofrimento físico de outrem, algolagnia ativa". Se a tortura é um instrumento de manipulação da dor para a permanência e afirmação do poder, utilizada de forma sistemática e disseminada no Brasil, nas palavras de Nigel Rodley, por que impor a necessidade de "sadismo imotivado" para a tipificação do crime de tortura? Aliás, sobre a expressão cunhada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, seria interessante fazer uma outra pergunta: existe sadismo motivado, e, portanto, legítimo e amparado pela legislação pátria? Acredito que não. Para Luciano Maia, a criação jurisprudencial de novos elementos. caracterizadores do crime de tortura "é tão mais preocupante quanto foge da apreciação dos contornos concretos da Lei 9.455/97 e vai se abrigar na construção doutrinária e pretoriana acerca da interpretação da tortura como agravante, ou causa de aumento de pena, por ser meio cruel de execução de um crime" (MAIA: 2006, p. 251).

b) tortura como crime próprio e desclassificação para o crime de lesão corporal;

No que tange à utilização da Lei 9.455/97 para a punição de agentes públicos (normalmente policiais civis e militares, delegados e/ou carcerários), o estudo jurisprudencial identifica um conflito aparente de normas entre o tipo penal de "tortura" e o de "lesões corporais". Para Damásio de Jesus, o termo "conflito aparente de normas" ou "concurso aparente de normas" é inadequado, pois "nao há conflito ou concurso de disposições penais, mas exclusividade de aplicação de uma norma a um fato, ficando excluída outra em que também se enquadra". São dois os pressupostos do conflito aparente de normas: a unidade do fato e a pluralidade de normas identificando o mesmo fato como delituoso. Soluciona-se o conflito aparente de normas através da aplicação de três princípios basilares: princípio da especialidade, princípio da subsidiariedade e princípio da consunção (JESUS: 1999, p. 109).

Lesões corporais é crime comum e plurissubsistente. Afirma Damásio de Jesus que este crime "constitui delito consuntivo (princípio da consunção no conflito aparente de normas), integrando o delito de maior gravidade, que a absorve. É o que ocorre no homicídio, que necessariamente passa pela ofensa à integridade corporal ou à saúde da vitima" (JESUS: 1992, p. 111). Em relação ao crime de tortura, o crime de lesões corporais é consuntivo, ou seja, é absorvido pelo crime de tortura que, muito mais complexo e com mais elementos objetivo e subjetivo, incorpora os elementos objetivos.

Para determinar se o crime cometido é de tortura ou mera lesão corporal ou abuso de autoridade, essencial é a utilização do princípio da especialidade. Segundo Damásio de Jesus, "diz-se que uma norma penal incriminadora é especial em relação a outra, geral, quando possui em sua definição legal todos os elementos típicos desta, e mais alguns, de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes, apresentando, por isso, um minius ou um plus de severidade. A norma especial, ou seja, a que acresce elemento próprio à descrição legal do crime previsto na geral, prefere esta: lex specialis derogat generali, semper specialia generalibus insunt, generi per speciem derogantur" (JESUS: 1999, p. 109).

Em relação ao crime de lesões corporais que, prescrito no Código Penal brasileiro nos termos do art. 129, é crime "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem", o crime de tortura é crime especial, pois o tipo penal previsto tem mais elementos típicos, objetivos e subjetivos, que esta. Ou seja: sempre que o juiz se deparar com um caso em que reste comprovado que houve ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem, mas que contenha outros elementos (ou a severidade do sofrimento, ou cometido por agente público, ou por pessoa que detinha "poder, guarda ou autoridade", entre outros elementos típicos do tipo penal tortura), o juiz deve enquadrar a conduta dentro do tipo penal de tortura, pois este crime abrange o crime de "lesões corporais", de acordo com o princípio da consunção ("lex consumens derogat legi consumptae")

Entretanto, observando a jurisprudência brasileira, vários são os casos de desclassificação para outros delitos. Depois de análise exaustiva da jurisprudência brasileira sobre a temática, Luciano Maia afirma que "se são raras as decisões de condenações, por tortura, de agentes públicos, é farta a jurisprudência (5) do Tribunal de Justiça de São Paulo condenando padrastos e madrastas, pais e mães por abusos em enteados e enteadas, filhos e filhas, e até sobrinhos, nas penas da Lei 9.455/97" (MAIA: 2006, p. 242).

Maia acredita que "uma explicação para a (quase) inexistência de condenações de agentes públicos - leia-se, policiais - repousa, basicamente, sobre dois pontos essenciais: a pré-compreensão dos desembargadores, no sentido de que a confissão policial é feita sem coerção e pressão, e a retratação em juízo (pelo réu) decorre do fato de estes serem orientados a fazê-lo; a ausência de investigação, e, portanto, de prova da tortura, cujo ônus é inteiramente entregue à alegada vítima" (MAIA: 2006, p. 243). Claramente a dificuldade de punir agentes públicos pelo crime de tortura não repousa sobre nenhuma dificuldade conceitual, ou incapacidade de entender os elementos típicos da conduta.

É importante salientar que este "silêncio/ausência" do poder judiciário brasileiro se torna ainda mais grave se confrontado com os dados do relatório da campanha permanente contra a tortura no Brasil de 2002, pois este constata que são os policiais (civis e militares) que mais praticam tortura no Brasil. E que esta prática acontece principalmente nas delegacias e nas penitenciárias brasileiras contra os suspeitos e contra os presos (ver relatório do MNDH).

Em 2000 e 2003, respectivamente, quando do julgamento de uma apelação criminal, o Tribunal de Justiça da Paraíba por duas vezes entendeu que a violência policial não consistia em tortura, por carecer de comprovação do "severo" sofrimento físico e mental:

PROCESSO PENAL - Cerceamento de defesa - Agente, advogado, que, achando-se habilitado, patrocina sua própria defesa - Nulidade inexistente - Preliminar rejeitada. TORTURA Mera agressão física de policial a adolescente recolhido à Delegacia de Polícia - Inocorrência de sofrimento físico ou mental à obtenção de determinado objetivo Não configuração do delito definido na Lei 9.495/97 Desclassificação para lesão corporal. APREENSÃO DE ADOLESCENTES SEM A OBSERVÂNCIA DAS FORMALIDADES LEGAIS - Prova robusta e induvidosa - Materialidade e autoria comprovadas - Condenação mantida - Pretendida desclassificação para o crime de abuso de autoridade - Inadmissibilidade - Provimento parcial dos recursos. - Se o próprio réu se achou habilitado a patrocinar sua defesa, não há como se questionar o fato. Ademais, aceitar a tese de nulidade seria premiar aquele que concorreu para sua ocorrência. - O delito de tortura se configura com a submissão da vítima a um sofrimento físico ou mental, na busca do que se pretende alcançar. Não havendo nenhuma dessas formas de violência, não há que se falar no crime da Lei 9.455/97. - Desse modo, se a ação do agente é direcionada à prática de lesão corporal, através de chute, tapas e pontapés, ou qualquer outro meio do qual resulte ferimento, o tipo penal em evidência é o de lesão corporal, jamais o de tortura. - O ilícito penal da Lei 4.898/65 não é aplicável quando a vítima é adolescente, dada a especialidade da norma do citado art. 230 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). - É que, em ambos os casos, pune-se a prisão irregular, só que o diferencial está na condição do sujeito passivo. Na lei do abuso de autoridade, qualquer pessoa; no ECA, o adolescente, não havendo, assim, como prosperar a pretensão desclassificatória. (grifo nosso). (6)

TORTURA - Absolvição - Irresignação ministerial - Espancamento de outrem no ato de execução de prisão - Conduta que não se submete ao disposto no art. 1º. II, da Lei nº 9.455/97 - Elementares "sob sua guarda, poder ou autoridade" e "intenso sofrimento físico" - Configuração não evidenciada - Inadmissibilidade - Figura típica não caracterizada - Desacolhimento. ABUSO DE AUTORIDADE - Ofensa à incolumidade física - Policiais que, arbitrariamente, agridem indivíduo - Pena máxima cominada em abstrato inferior a um ano - Prazo prescricional correspondente a um biênio - Seu decurso entre o recebimento da denúncia e o julgamento em segunda instância - Matéria de ordem pública - Extinção da punibilidade - Decretação "ex officio". - É indispensável, para aperfeiçoar-se a denominada tortura-pena, que a ação criminosa satisfaça integralmente a todas as elementares elencadas no art. 1º, II, da Lei nº 9.455/97, o que não se verifica quando ausente a circunstância "sob sua guarda, poder ou autoridade", que pressupõe já esteja a vítima submetida a alguma espécie de custódia, bem como, quando não se denote a efetiva ocorrência de "intenso sofrimento físico", que não se confunde com simples lesão corporal, sem maiores consequências. - Ocorrendo a perda do poder de punir do Estado, pela incidência da prescrição, o seu reconhecimento torna-se poder-dever da autoridade judiciária, por ser matéria de ordem pública, que suplanta até a expectativa de absolvição do réu. (7)

c) tortura e abuso de autoridade;

Nos termos da lei nº 4898/65, em seus arts. 3º e 4º, consiste em abuso de autoridade:

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:

  1. à liberdade de locomoção;
  2. à inviolabilidade do domicílio;
  3. ao sigilo da correspondência;
  4. à liberdade de consciência e de crença;
  5. ao livre exercício do culto religioso;
  6. à liberdade de associação;
  7. aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto;
  8. ao direito de reunião;
  9. à incolumidade física do indivíduo;
  10. aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. (Incluído pela Lei nº 6.657, de 05/06/79)

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:

  1. ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
  2. submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;
  3. deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;
  4. deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;
  5. levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei;
  6. cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor;
  7. recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;
  8. o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;
  9. prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.

Em 1997, o mesmo tribunal confirmou a condenação de dois policiais por crime de abuso de autoridade, cometido em delegacia, em virtude de uma prisão provisória. Eis o relato da "violência" cometida a José Maria da Silva, 71 anos, no dia em que foi preso em delegacia da comarca de São José (SC), em função de prisão preventiva decretada, acusado por crime de estupro:

Segundo a denúncia, no dia 26.1.95, por volta das 22 horas, a vítima José Maria da Silva, que estava preso por ordem do Dr. Juiz de Direito da comarca de São José, foi levada da 2ª delegacia de Polícia para a cadeia pública da comarca de Biguaçú, onde foi agredida pelos policiais Edgar e Sérgio com tapas e "coices", sendo obrigada, pelo primeiro, a desfilar pelas dependências da repartição em trajes femininos (calcinha) e a dizer palavras constrangedoras diante da platéia de detentos. Ato contínuo, o preso Edson Bonifácio de Sena, de posse de um bastão de plástico com vinte e quatro centímetros de cumprimento e com a finalidade de satisfazer sua concupiscência, introduziu-o no ânus da vítima por duas vezes, causando-lhe sangramento (8).

Por fim, há de se analisar aqui a distinção entre o crime de tortura e o crime de abuso de autoridade. Aqui também, a questão se resolve pelo princípio da especialidade, consunção e subsidiariedade que, como já analisado, são os princípios capazes de resolver um conflito aparente de normas. Do ponto de vista doutrinário, pouca dificuldade há para compreender a diferença conceitual entre estas figuras típicas. As constantes desclassificiações do crime de tortura para outras figuras típicas são efetuadas por razões outras que não pela dificuldade de compreender os elementos constitutivos do tipo penal.

6.2.2. Outros tratamentos cruéis

Ao contrário da experiência estadunidense e européia, o Brasil não trabalha o conceito de "tratamentos cruéis" em âmbito constitucional. Na jurisprudência brasileira, o estudo conceitual em torno da temática se dá quando do julgamento de uma ação penal, normalmente a tipos penais correlatos, como os maus tratos, abuso de autoridade e lesões corporais que já foram analisados quando da análise das desclassificações do crime de tortura (9).

Esta praxis tem conseqüências várias, em particular no que tange ao entendimento acerca do conteúdo das condutas/circunstâncias que consistem em tratamento cruel, desumano e degradante. O estudo dos casos demonstra que todos eles dizem respeito a uma conduta ilegal do agente público que se enquadra em tipos penais diversos. Sendo assim, a análise judicial e a decisão dos magistrados e dos tribunais brasileiros tratam de analisar e julgar a responsabilização penal deste ou daquele agente público, enquadrando-o nas penas cominadas, quando condenado pela prática de um ilícito penal. E todos os demais abusos e violações de direitos humanos sofridas no cárcere, tais como a superlotação, as celas inadequadas, falta de atendimento médico e insatisfatória alimentação? Para estas violações, é tanto mais útil quanto apropriado o arcabouço constitucional, que a ferramenta do direito penal.

Para além desta limitação brasileira no que tange à delimitação conceitual do significado de tratamento cruel, tem-se uma dificuldade imensa no que tange à produção de prova judicial, em caso de violência policial. Sobre o assunto, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, quando do julgamento de apelação criminal, fixou entendimento de que "as violências policiais contra pessoas presas, praticadas na prisão, entre quatro paredes, via de regra não têm testemunhas de vista, daí tanta impunidade. Mas, se os depoimentos dos ofendidos são convincentes, firmes, verossímeis, é possível a condenação" (10).

De acordo com entendimento fixado no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (11), há responsabilidade objetiva do Estado quando da morte de preso sob custódia estatal, seja em delegacia ou instituição penitenciária. Diz o acórdão:

EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO. MORTE DE DETENTO POR COLEGA DE PRISÃO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. CUMULATIVIDADE DOS DANOS MATERIAL E MORAL. DATA DO PENSIONAMENTO. VERBA HONORÁRIA. 1. É pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido da responsabilidade da Administração pela morte de detento recolhido em estabelecimento prisional, ainda que em cela da Delegacia de Polícia, que veio a sofrer agressão à integridade física que lhe causou o óbito, praticada por companheiro de presídio, porque a hipótese configura culpa "in vigilando", caracterizando a responsabilidade objetiva do Estado. 2. A teor do Enunciado n. 37 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, são cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriundos do mesmo fato, tendo também o Supremo Tribunal Federal consagrado a cumulatividade da reparação do dano moral com a do material. 3. Impõe-se o pensionamento durante a provável sobrevida da vítima em decorrência da norma insculpida no art. 1.537, II, do Código Civil, a qual é devida desde a data do evento até quando a mesma viesse a completar sessenta e cinco anos. 4. Nas ações de indenização por ato ilícito, na forma estatuída no art. 20, § 5º, do Código Civil, o valor da condenação, a título de honorários advocatícios, será a soma das prestações vencidas com o capital necessário a produzir a renda correspondente às prestações vincendas. Na hipótese, correta a sentença que arbitrou os honorários dos procuradores das autoras no percentual de 15% da soma da quantia fixada, a título de danos morais (150 salários mínimos), mais as prestações vencidas e 12 (doze) das vincendas, do dano material (pensionamento). 5. Confirmar a sentença, no reexame necessário, prejudicado o recurso voluntário. (grifo nosso)

MORTE DE DETENTO EM PENITENCIARIA. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. SENTENCA CONFIRMADA. Duplo grau obrigatório de jurisdição. Aplicação da teoria do risco administrativo, cabendo ao Estado a responsabilidade decorrente da atividade administrativa de guarda de pessoas perigosas. Nexo de causalidade entre a omissão específica do Estado, que deixou de cuidar da integridade física dos detentos, não reprimindo organização criminosa atuante no Sistema Penitenciário e a morte das vítimas. Sentença confirmada. (Tipo da Ação: DUPLO GRAU OBRIGATORIO DE JURIS. Número do Processo: 2000.009.00370.Órgão Julgador: DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL. Des. DES. GILBERTO FERNANDES. Julgado em 26/03/2003) (grifo nosso). (12)

6.2.2.1. Condições penitenciárias

No poder judiciário brasileiro, a "hands off doctrine" ainda está em vigor, pois em suas decisões e sentenças, os magistrados e tribunais se recusam sistematicamente a impor condutas mínimas de respeito aos direitos humanos dentro das prisões, limitando o número de pessoas ou punindo certas circunstâncias (como a superlotação) que causam imenso sofrimento para os detentos e que não têm um sujeito ativo individualizável, já que integram o rol dos grandes problemas estruturais brasileiros.

Como já foi assinalado, na jurisprudência brasileira a violência policial é sempre processada e punida no âmbito do direito penal. Quando a gravidade da violência não atinge aquele nível requerido para consubstanciar o crime de tortura, os tribunais têm punido os agentes policiais através de tipos penais correlatos. Entretanto, nenhum dos tipos analisados (maus-tratos, abuso de autoridade, lesão corporal). O poder judiciário brasileiro não tem atentado para a possibilidade de utilização da Lei 9.455/97 para punir estas violências. A lei brasileira, em seu art. 1º§1, equipara à tortura todo ato praticado por pessoa (normalmente agente público) que "submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal". Para Maia, os juristas não têm atentado para esta nova hipótese criada pelo §1º do art. 1º da Lei 9.455/97. E, portanto, "os tribunais, mesmo para situações subsumíveis no tipo previsto no art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.455/97 (subjugação de preso ou internado a medida não prevista ou não autorizada em lei), exigem os elementos dos incisos I ou II, do art. 1º, da Lei nº 9.455/97, e, não encontrando, desclassificam para o delito de abuso de autoridade, a conseqüência normal sendo, face à reduzida pena, o reconhecimento - até mesmo de ofício - da prescrição da pretensão punitiva" (MAIA: 2006, p. 161).

De acordo com esta hipótese legal, todos aqueles que submeterem pessoa presa a sofrimento mental, mesmo que sem os demais elementos objetivos (elemento volitivo e de intensidade do sofrimento), devem incorrer na mesma pena. De toda forma, deve restar comprovado o dolo do agente público, pois que esta hipótese legal não deve ser interpretada como uma lei que autorize a responsabilidade objetiva do mesmo (delegado, policial e/ou agente carcerário).

Portanto, como já foi assinalado, pouco ou quase nada há na jurisprudência brasileira sobre a temática das condições penitenciárias, desvinculadas da sistemática penal. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal acatou cautelarmente o pedido do Estado de Minas Gerais para suspender a eficácia de portaria que determinava a interdição de ala da cadeia reservada aos presos e a transferência de um alto número de detentos para a capital do Estado, em Belo Horizonte. A portaria, assinada pelo juiz e pelo promotor de justiça de Guaranésia, impunha a ordem de liberar os presos, caso a transferência não fosse efetuada satisfatoriamente em 30 (trinta) dias. A justificativa para a portaria residia na falta de vagas no sistema penitenciário no município, e a inadequada condição das mesmas. Em 09 de dezembro de 2005, o Ministro Hamilton Carvalhido (13), em decisão monocrática, se pronunciou:

A plausibilidade jurídica do pedido não é menos evidente, firme que se mostra a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça em que a questão da inexistência de vaga em estabelecimento penal e a conseqüente impossibilidade de execução das sentenças condenatórias penais, na forma de seus termos, é também de natureza jurisdicional, devendo o juiz decidi-la em concreto, caso a caso, aplicando as leis penais vigentes, materiais e instrumentais, e, sobretudo, a Constituição da República, de modo que se respeite os direitos do condenado, sem fazer tábula rasa da proteção dos demais membros da sociedade, requisitando, ainda, o Juiz, complementarmente, providências às autoridades políticas federais e estaduais, incluidamente ao Ministério Público, que segue tendo legitimidade para a ação civil pública.

Em 2005, foi amplamente divulgada na mídia a polêmica decisão do juiz da vara de execuções criminais da comarca de Contagem, em Minas Gerais, o magistrado Livingston José Machado, que ordenou expedição de alvará de soltura a todos os presos, bem como suspendeu a execução das penas de todos os condenados, que ali se encontram recolhidos, até que fossem disponibilizadas vagas no sistema penal.

Em carta aberta à sociedade brasileira, a Comissão Pastoral de Direitos Humanos se pronunciou, no dia 29 de novembro do mesmo ano, no sentido de apoiar a decisão do juiz. Para eles, "o juiz, Dr. Livingston José Machado, no exercício de sua função, buscava enfrentar a situação, comunicando sistematicamente aos órgãos competentes o drama vivido no sistema carcerário local. Porém, o governo se mostrou inoperante. Esforçou-se, em vão, para transferir os detentos daquelas unidades" (14). No mesmo documento, a Comissão descreve a condição em que pessoas estavam cumprindo pena em Contagem:

Membros da Comissão Pastoral de Direitos Humanos estão acompanhando, há meses, a situação dos presos em Contagem. Estiveram no 2º Distrito de Polícia Civil daquela cidade, apurando denúncias de familiares dos detentos, que reclamavam de tratamento degradante, desumano e cruel (maus-tratos, espancamentos etc.)
Foram testemunhas de barbáries cometidas contra os detentos, ao visitar, em 27 de setembro p.p., todas as celas daquele Distrito. Constataram que vários presos eram portadores doenças de pele infecto-contagiosas. O espaço reservado a cada preso correspondia a 32 cm2; alguns declararam ter projéteis de arma de fogo alojados na cabeça, na perna e até no olho, sem que lhes fosse dispensado tratamento médico adequado (não havia remédio sequer para aliviar-lhes a dor!). A situação era de absoluta desumanidade: paredes mofadas, teto prestes a desabar, falta de iluminação, esgoto passando na porta da cela, detentos seminus.

Em sede de recurso perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o Estado de Minas Gerais anulou a decisão do juiz.

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA - EXECUÇÃO PENAL - INTERDIÇÃO DE CARCERAGEM - CADEIA PÚBLICA - SUPERLOTAÇÃO - DETERMINAÇÃO DE SOLTURA DE PRESOS. A superlotação e as precárias condições dos estabelecimentos prisionais não permitem a concessão da liberdade aos sentenciados ou presos provisórios. A soltura dos presos, fora das hipóteses previstas em lei, importa em afronta à exigência legal de que cumpram as penas que lhes foram impostas no devido processo legal. O controle da legalidade da atividade administrativa a cargo do Poder Judiciário deve se ater ao exame da legalidade e legitimidade, ou seja, o Poder Judiciário não pode dizer sobre o mérito administrativo (oportunidade ou conveniência), antes devendo examinar somente o seu cabimento e a regularidade formal do ato. (grifo nosso) (15)

Também em 2005, quando do julgamento de apelação cível em caso de reparação de danos morais, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul se posicionou de forma ainda mais reacionária, culpabilizando os presos por todos os "dissabores" que experimentam no cárcere.

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS - SUPERPOPULAÇÃO CARCERÁRIA - RESPONSABILIDADE DO ESTADO - RESPONSABILIDADE DO ENCARCERADO PELOS DISSABORES EXPERIMENTADOS - VIOLAÇÃO AO ORDENAMENTO JURÍDICO - TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL - RAZOABILIDADE - IMPOSSIBILIDADE MATERIAL DO ESTADO - RECURSO PROVIDO - A Lei de Execuções Penais traz alguns programas a serem cumpridos, tais como assistência material à saúde, à alimentação, à instalações higiênicas etc., porém o Estado encontra-se impossibilitado materialmente de cumprir tais determinações, de acordo com a "Teoria da reserva do possível". A superpopulação carcerária é uma realidade indiscutível, porém o direito à vida, ao patrimônio e a tantos outros direitos da coletividade deve se sobrepor ao interesse de determinado indivíduo, por dizer respeito ao bem estar comum, alicerce primordial do direito, não se pode olvidar que o encarcerado, por ter desrespeitado o ordenamento jurídico, éo único responsável por todos os dissabores que ora experimenta. (TJMS - AC-O 2005.016737-4/0000-00 - Corumbá - 2ª T.Cív. - Rel. Des. Luiz Carlos Santini - J. 13.12.2005) (Ementas no mesmo sentido)

Estas últimas decisões comprovam que a discussão constitucional sobre a temática começa a chegar nos tribunais e que, pouco a pouco, vai sendo minada a hands-off doctrine. Há menos de um ano, o Tribunal de Justiça de Pernambuco teve que se pronunciar diante de um habeas corpus que requeria a transferência imediata de pessoas detidas em presídio, ou o relaxamento da prisão pela não adequação do presídio aos preceitos constitucionais. Por unanimidade, entretanto, a ordem foi denegada.

Processo Penal. Habeas Corpus liberatório em favor de pacientes acusados da prática de tentativa de roubo qualificado. Preliminar de legitimidade ativa acolhida. Alegação de que o presídio em que se encontram os pacientes não está em condições condizentes com as prescrições constitucionais e legais, tendo em vista a situação de "superlotação", ociosidade, insegurança, condições precárias de higiene e de saúde. Pedido de encaminhamento do paciente a outro estabelecimento prisional ou ainda a concessão de regime domiciliar, ou alternativamente o relaxamento da sua prisão, com a conseqüente expedição de alvará de soltura. Ordem denegada. Decisão unânime. (16)

Já em 2007, o TJ/RS foi chamado a se pronunciar sobre o mesmo argumento. Diante da superlotação de certo presídio, pode o poder judiciário alterar o local de cumprimento da pena, sob pena de impor uma pena cruel à pessoa presa. Nesta ocasião, por unanimidade, entendeu o referido tribunal que o poder judiciário não detinha competência.

EXECUÇÃO. PRISÃO DOMICILIAR. LOTAÇÃO DE PRESÍDIO. HIPÓTESE NÃO CONTEMPLADA. CASSAÇÃO. O agravante não se enquadra em qualquer dos itens do artigo 117 da LEP: ele não é maior de setenta anos, não está gravemente doente e não é mulher nas condições dos itens III e IV. O pedido de concessão de prisão domiciliar teve, como base, a superlotação do presídio da comarca. Ora, o Supremo Tribunal Federal, a quem cabe zelar pelo cumprimento da Constituição, já decidiu, em sessão plenária, que o benefício da prisão-albergue só poderá ser deferido ao sentenciado, se houver, na localidade de execução da pena, casa do albergado, ou outro estabelecimento que se ajuste às exigências legais do regime penal aberto. A impossibilidade material de o Estado instituir casa do albergado não autoriza o Poder Judiciário a conceder a prisão-albergue domiciliar, fora das hipóteses contempladas, em caráter estrito no artigo citado acima. DECISÃO: Agravo defensivo desprovido. Unânime. (Agravo Nº 70019519446, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em 21/06/2007) (17)

Do exposto, vislumbram-se as limitações com que os atores do poder Judiciário brasileiro têm tratado os argumentos em torno da necessidade de respeitar os direitos dos presos, não só quando da punição de agentes públicos, mas também (não) impondo padrões humanos mínimos de respeito à dignidade dos presos. O argumento de que o poder judiciário não pode tomar decisões que interfiram na organização penitenciária (que integra o poder Executivo) é ultrapassado em outros ordenamentos jurídicos, como aquele dos Estados Unidos, desde meados de 1960. E mesmo no Brasil este argumento não é mais sustentado quando da discussão de outros assuntos que interferem no poder executivo. Na triste constatação de Nilo Batista, os juristas e magistrados ainda sofrem de imensa "doença profissional, proveniente do contraste entre as altas temperaturas de fundição do discurso do poder e as neves eternas da legalidade compreendida pelo viés positivista, que congela este discurso na lei". Para ele, esta enfermidade habilita os juristas a perceberem "conflitos sociais como simples deficiência de normatização, que o inesgotável Estado de bem-estar jurídico tratará logo de suprir, motivo pelo qual adquirimos a capacidade mágica de superá-los com dois ou três artigos e parágrafos" (BATISTA: 2002, p. 163).

Notas

1. HC 70.389-5 SP. Relator para o Acórdão o Min. Celso de Mello. Julgamento em 23.6.1994.

2. BRASIL. Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. VI Conferência nacional de Direitos Humanos.

3. STJ REsp 610395 / SC; RECURSO ESPECIAL 2003/0175343-3. Data do julgamento: 25/05/2004. Publicado em DJ 02.08.2004 p. 544.

4. Apelação Criminal nº 2002.022861-9, Des. Rel. Jaime Ramos. Data do Julgamento:18/02/2003.

5. Vejam-se, por exemplo: Acórdão 00307641, na Apelação Criminal 302.219-3/2, Quinta Câmara Criminal, Rel. Des. Gomes de Amorim, julg. 28.09.2000; Acórdão 00239037, na Apelação Criminal 291.176-3/2-00, Terceira Câmara Criminal Extraordinária, Rel. Des. Tristão Ribeiro, julg. 15.3.2000; Acórdão 00294946 na Apelação Criminal 264.409-314, Sexta Câmara Criminal, Rel. Des. Pedro Gagliardi, julg. 28.09.2000; Acórdão 00702427 na Apelação Reclusão 313.068.3/8-00, Oitava Câmara Extraordinária, julg. 17.06.2004.

6. TJ/PB. AC 888.2002.014834-2/001. Julgado em 09 de outubro de 2003. Des. Relator Raphael Carneiro Arnaud.

7. Apelação criminal nº 888.2000.002591-7/001, Data Julgamento: 22/8/2000, Data de Publicação: 3/9/2000.

8. Apelação criminal nº 97.003218-8, desemgardaor relator Des. Nilton Macedo Machado. Data da Decisão: 27/05/1997.

9. Também os tribunais brasileiros utilizam o critério da intensidade do sofrimento para diferenciar tortura dos demais tipos penais correlatos. Ver julgamento da apelação criminal AC 055.2003.001673-1 do TJ/PB. Julgado em 14 de dezembro de 2005.

10. Ap. crim. nº 31.600, da Capital, relator o subscrito, julgada em 31.10.95, JC 25/436.

11. Processo nº 1.0000.00.173835-0/000 (1). Des. Relator Célio César Paduani. Data do acórdão: 11/05/2000. Data de publicação: 30/05/2000.

12. Apelação criminal nº 888.2002.014834-2/001, Data Julgamento: 30/9/2003, Data de Publicação: 9/10/2003.

13. MEDIDA CAUTELAR Nº 10.902 - MG (2005/0203855-2.

14. Observatório da Imprensa, A situação carcerária e o juiz de Contagem, 06/12/2005.

15. Número do processo: 1.0000.05.429879-9/000(1). Relator: Paulo Cézar Dias. Data do acórdão: 07/03/2006. Data da publicação: 09/08/2006.

16. TJ/PE. HC 129264-8. Julgado em 15 de março de 2006.

17. Sobre este argumento, o TJ/RS tem jurisprudência consolidada neste sentido. Ver agravo nº 70019484575, julgado em 23 de maio de 2007. Agravo 70019096478, julgado em 20 de junho de 2007. Agravo nº 70017931502, julgado em 13 de junho de 2007. Agravo nº 70019104223, julgado em 31 de maio de 2007. Ver também AC nº 692052715, de 1992, a mais antiga decisão do referido tribunal que trata da superlotação penitenciária.